A alma dos seres é o seu perfume.
Patrick Süskind,O Perfume
Mas graças sejam dadas a Deus, que, em Cristo, nos conduz sempre em seu triunfo e, por nosso intermédio, difunde em toda a parte o perfume do seu conhecimento. Porque somos para Deus o bom odor de Cristo, para aqueles que se salvam e para aqueles que se perdem: para uns, odor da morte que conduz à morte; para outros, odor da vida que conduz à vida.
Paulo, 2 Coríntios 2:14-16
Ferro em brasa no flanco de um só dia, um buraco
de perfume: a rosa florescendo o seu lugar interior.
Herberto Helder, Ofício Cantante
1. A essência do mundo antigo
Herberto Helder desde muito longe começou a fazer versões de poemas étnicos, próprios de literaturas e culturas antigas: dos índios da América do Norte e do Sul, do Antigo Egipto e do Antigo Testamento, entre outros. A sua primeira recolha, com data de 1968, recebeu o título de O bebedor nocturno. Essa poesia faz parte da inspiração pessoal, de tal modo que, volta e meia, vem à tona, mais ou menos declaradamente. É assim que, no mais recente dos seus novos conjuntos de poemas, A faca não corta o fogo, [1] reencontramos o “Cântico do Cânticos” - com as falas de Sulamite a inclinarem a estrutura dialogal do poema para o travesti [2] -, cuja versão ele publicara pela primeira vez n' O bebedor nocturno, quarenta anos antes.
O antigo, o primordial, é uma das duas facetas que definem a sua obra: de um lado é um poeta muito moderno, com contributo ativo nos mais importantes movimentos de vanguarda em Portugal, caso do Surrealismo e da Poesia Experimental. Não se tratando tanto de participação direta, mas de sintonia com a agitação cultural da juventude na segunda metade do século XX, não devemos subestimar a afinidade existente entre Herberto Helder e a beat generation. Ela é mais óbvia n’Os Passos em Volta, narrativas em que, à temática da viagem e da vagabundagem, acresce a construção da personagem do poeta, numa vertente marginal, psiquiátrica, sexualmente transgressora, boémia, consumidora de estimulantes, partidária da contracultura, com sobrevivência mal assegurada por tarefas de ocasião, como vimos já em extratos da vida do poeta fixada por Maria de Fátima Marinho. [3] Refletem-se como objeto e imagem, em certos momentos, a biografia de Herberto Helder e das grandes figuras da beat, como Kerouac e Ginsberg, nas várias inclinações da marginalidade, caso do uso de estimulantes. Neste domínio é ilustrativo o ciclo de poemas “Cinco canções lacunares”, em especial “Um deus lisérgico” e “Os brancos arquipélagos”. [4]
Jack Kerouac esteve internado três meses como louco, antes da sua viagem de alto risco à Gronelândia. Claudio Willer traça esse retrato:
Antes do sucesso de On the road, ganhou a vida com ofícios modestos: na ficha que preparou como prefácio de Lonesome Traveler (Viajante solitário), diz que foi ajudante de cozinha e lavador de pratos (em bares e não só nos navios), balconista, guarda-freios em ferrovias (em companhia de Cassady), frentista em postos de gasolina, carregador de malas, colhedor de algodão, guarda florestal. [5]
O próprio poeta manifesta a intimidade com a beat generation, ao comentar, na sua fase africana, um dos maiores temas da beat, o apelo à viagem. Na Poesia Toda, ela assume nomes diversos, seja “Retrato em movimento”, seja “Movimentação errática”, e noutro tipo de textos, como os jornalísticos, exprime-se pelo ataque ao turista. [6] Vejamos então como Herberto Helder fala do autor de Pela estrada fora, tradução portuguesa deOn the road:
Isto mesmo (ou mais ou menos) se passou na Marginal de Luanda, enquanto, com toda a minha (ninguém suspeita) riqueza interior em laboração, eu me lembrava de Jack Kerouac, cadáver desacreditado, andando pela estrada fora com a dourada astronomia do México impressa nas meninges. A minha astronomia era infindamente mais humilde, e consistia em imaginar que a vida não tem grande importância, podendo-se ir por aí fora “evidentemente de qualquer maneira”. O processo é de uma excelência incontroversa e até se pode morrer dele. O que a gente inventa como exercício espiritual! [7]
Do outro lado da contemporaneidade, Herberto Helder é um poeta inspirado, como os profetas, e isso implica a herança da Tradição, com os seus pontos fortes no esoterismo e nas práticas xamanísticas e sacerdotais antigas. Acabámos de o ver referir essa circunstância a propósito das viagens místicas à pátria dos índios, em Jack Kerouac. Herberto Helder não viajou pelo México, pelo menos que se saiba, mas foi ao encontro da mesma “astronomia”, vertendo para português poemas dos Maias, dos Quechuas, dos Incas e de outras etnias índias da América do Sul, como vemos nas coletâneas O bebedor nocturno, Ouolof, As magias e outros livros de traduções.
Citemos de novo Claudio Willer, desta feita acerca da publicação da antologia O Corpo O Luxo A Obra, no Brasil:
Foi bem assinalado, em matérias já publicadas, que Herberto Helder é um representante - talvez, hoje, o maior deles - da linhagem de poetas visionários, sistematicamente desregrados, inaugurada pelo Rimbaud de Iluminações e Uma Temporada no Inferno. [8]
Já em 1961, no poema-prefácio ao livro A Colher na Boca, [9] ele define o poema como casa, túmulo, barca a sulcar o rio que leva à eternidade, e entende a poesia como “exercício de um poder/ tão firme e silencioso como só houve/ no tempo mais antigo”. [10] Que poder é esse, detido pelos antigos? É o poder dos construtores, o poder dos poetas, que também constroem casas, catedrais e túmulos. “Mansões filosofais”, como lhes chamaria Fulcanelli. Construir casas é imagem para construção da alma. Essa é a desconhecida função da Arte: ela modela a alma, por isso está na base da evolução do cérebro. Por alma entenda-se a sublimidade do Homem, a sua “essência”, já que estamos a tratar de perfumes, e o termo “essência” é portador dessa polissemia. Quando S. Paulo declara que os cristãos são o perfume de Cristo, não se afasta muito de Jean-Baptiste Grenouille, ao entender que o perfume é a alma dos seres. [11]
Vejamos a parte final de "Prefácio", em que, à ideia de barca para passagem dos mortos para o Oriente Eterno, ou morada dos deuses, se acrescentam o tão importante elemento aromático, no caso proveniente das rosas, e a indispensável condição de beleza que todo este cortejo fúnebre deve exibir para exaltação da alma:
Falemos de casas, da morte. Casas são rosas
para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança nos abandona para sempre.
Casas são rios diuturnos, nocturnos rios
celestes que fulguram lentamente até uma baía fria - que talvez não exista,
como uma secreta eternidade.
Falemos de casas como quem fala da sua alma,
entre um incêndio, junto ao modelo das searas, na aprendizagem da paciência de vê-las erguer e morrer com um pouco, um pouco de beleza.
Em toda a obra herbertiana, é no corpo de versões de poemas de culturas antigas que encontramos mais perfumes, pois bem sabemos do uso variado que tinham entre as classes governantes e sacerdotais: na morte, para embalsamar os corpos e agradar aos deuses; e na vida, para os purificar, conservar, e também para os tornar sedutores, bem com ao espaço doméstico e de culto.
As substâncias aromáticas também se usam nos alimentos, sob a forma de especiarias. Porém não é só neste caso que os aromas se relacionam com os sabores: não é possível separar aquilo que é do domínio do olfato do que é do domínio do gosto. No poema que tem por primeiro verso “o fogo arrebata-se do gás até à cara, e lavra-a”, em que a matéria a sublimar é algo de tão raso como a sopa de grão que se cozinha e o ato de a comer, nele reaparecendo a mítica colher de A colher na boca, encontramos essa mistura alquímica ao forno, exalando o perfume que resulta da transmutação dos corpos:
cantam:
[…]para chamar como quem toca na cabeça e se inclina entre cru e cozido?
e talha uma ferida na têmpora esquerda, quando a pessoa está mais dentro de um lado e mais fora de outro, e legumes, sal, azeite, especiarias, ervas, suam, rebenta-lhes a flor na fervura ¡que de perfume, que de lume até ao fundo da boca!
E se considerarmos que os perfumes são frios e quentes - “frio aroma respirado muito”, [12] escreve o poeta -, entramos na esfera do tato, com a vastíssima capacidade de percepção sensorial da pele. Na realidade, como anota Miriam Agostinho, o olfato é o órgão da imaginação, [13] por isso a sua complexidade é ainda maior do que a implícita nesse título de Herberto Helder tão revelador do movimento que vai do comezinho ao sublime, como é A Colher na Boca. A complexidade, de amplitude antropológica, pois o aroma que a nós, ocidentais do século XXI, anuncia uma boa refeição, não corresponde ao que anuncia a mesma comida a um indígena da Amazónia, e vice-versa, é justamente a analisada por Rousseau no texto que contém a sua muito citada frase sobre ser o olfato o órgão da imaginação: “L’odorat est le sens de l’imagination; donnant aux nerfs un ton plus fort, il doit beaucoup agiter le cerveau”. [14] O alimento só se ingere se o nariz o autorizar, mas lembremo-nos de que “comer” é uma expressão larga. A colher não leva o alimento só à boca, também o leva ao espírito. Com a ideia de alimento abarcamos desde o erotismo à comunhão religiosa, e é precisamente neste ponto que os perfumes tocam o seu ponto mais alto, ao manifestarem a emoção do sublime.
Vejamos o que escreve Havelock sobre um assunto que de novo reenvia para Rousseau:
Aucun sens n'a une si forte puissance de suggestion, aucun n'a la force d'évoquer des souvenirs anciens avec une réverbération émotionnelle plus large et plus profonde, tandis qu'en même temps aucun sens ne fournit des impressions qui modifient aussi facilement leur couleur et leur ton affectifs, en harmonie avec l'attitude générale du patient. Les odeurs sont ainsi spécialement appropriées tant à contrôler la vie émotionnelle qu'à en devenir les esclaves. Par l'usage de l'encens, les religions ont utilisé les vertus imaginatives et symboliques des odeurs agréables. Toutes les légendes des saints ont insisté sur l'odeur de sainteté qu'exhalent les corps des personnes saintes, surtout au moment de la mort. Dans les conditions de notre civilisation, ces associations affectives primitives de l'odeur ont une tendance à se dissiper, mais, d'autre part, le côté imaginatif du sens olfactif s'accentue, et des idiosyncrasies personnelles de toute nature se manifestent dans la sphère de l'odorat. Rousseau regardait l'odorat comme le sens de l'imagination. [15]
Os perfumes podem ser inebriantes, deixarem-nos em êxtase. Por isso estão associados aos rituais e aos milagres. Daí que se fale do aroma de santidade e do perfume de Cristo. Não dispomos de metáfora melhor para o que nos cumula de prazer e de felicidade. Nada mais alto que o perfume e o mel, que também é um perfume. Motivo caro a Herberto Helder, bastante frequente na sua poesia, o mel pode surgir no entanto desviado da função alimentar. Mais geralmente, corre nos regatos do cérebro, como um dos fluidos viscerais na imagem do corpo. O mel é afeto, alimento da mente amorosa.
Os aromas mais comuns do mundo antigo, preservados na poesia de Herberto Helder, são a mirra, o incenso e o perfume de lótus. Não esquecendo a sensualidade de imagens como a do nardo que exala o seu perfume, e a do corpo concebido todo ele como jardim perfumado, do “Cântico dos Cânticos”. No “Fragmento do Cairo”, pertencente aos poemas do Antigo Egipto, que só tem os três versos da citação abaixo, encontramos o perfume na relação amorosa, a exprimir a ideia de inebriamento e felicidade, num enquadramento idêntico ao do “Cântico dos Cânticos”:
Quando eu a cinjo e ela me abre os braços,
Sou como um homem que regressa da Arábia, Impregnado de perfumes. [16]
NOTAS
1. Lisboa, Assírio & Alvim, 2008.
2. A propósito do travesti, ver o meu livro Herberto Helder, Poeta Obscuro, 1979.
4. Ofício Cantante, 2008, pp. 241-254.
5. Claudio Willer, Geração Beat. São Paulo, L&PM Pocket Encyclopaedia, 2009.
6. O meu turista preferido. Notícia, 26 de Fevereiro de 1972.
7. Seca!. Notícia, 15 de Abril de 1972.
8. "Herberto Helder e a grande poesia contemporânea". Em Agulha, 2001. Ver Bibliografia.
9. Ofício Cantante, pp. 9-12.
10. In Ofício Cantante, 2009, pp. 9-12.
11. Patrick Suskind, O Perfume.
12. Ofício Cantante, p. 589.
13. Miriam Priscila Gonçalves Lopes Agostinho, Os perfumes na vivência religiosa das antigas civilizações pré-clássicas. Tese de Mestrado em História e Cultura Pré-Clássicas, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2006.
14. Wikipédia, em:
15. ELLIS, Havelock (1964) - Études de psychologie sexuelle. Tome II – L’odorat. Paris, Éd. Mercure de France, 1ª ed. 1935. Em linha:http://membres.lycos.fr/papidoc/506Ellisodoratchap1.html.
16. Herberto Helder, “O bebedor nocturno”. In Poesia Toda, 1973, p. 162.
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Maria Estela Guedes (Portugal, 1947). Escritora, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa. Dirige o TriploV [http://triplov.org]. Autora de livros como Herberto Helder, Poeta Obscuro (1979), Lápis de Carvão (2005) e Ofício das Trevas (2006). Contacto: estela@triplov.com. Página ilustrada com obras do artista Carlos Colombino (Paraguai).
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