A crônica é tida como
gênero menor. No entanto, sendo o principal ponto de encontro entre literatura
e jornalismo, o espaço mais propriamente literário na imprensa periódica,
ensinou muita gente a ler, e certamente estimulou alguns a escrever. Tivemos
poetas que também foram cronistas, a exemplo de Drummond, e, reciprocamente,
cronistas poéticos, como Paulo Mendes Campos. Sua coletânea O amor acaba - Crônicas líricas e
existenciais (Civilização
Brasileira, 1999 e reedições) começa com uma exuberante prosa poética e termina
com epigramas irônicos. No prefácio, seu organizador, Flávio Pinheiro, promete
mais edições de sua obra; subentende-se, assim, que na sequência viria também
sua poesia propriamente dita. Enquanto esta não chega, retomo algo que escrevi
em 1991, logo depois de sua morte (no caderno Ideias do Jornal
do Brasil). Lá, observava que, já no primeiro dos poemas de O domingo azul do mar (obra incluída em Poemas de Paulo
Mendes Campos, Civilização Brasileira/INL, 1979), intitulado Os domingos, encontramos
argumentos em favor da sua qualificação como poeta importante. São imagens de
uma poesia visual, descrições de paisagens fantásticas onde as pétalas caíam no dorso das
campinas, e nos deparamos com os
vidros fáceis das horas preguiçosas, enquanto, entre outros paradoxos, a noite aclarava sofrimentos.
Imagens como essas lembram Pierre Reverdy, o primeiro Paul Eluard,
surrealista lírico, ou um Murilo Mendes menos agônico. São recorrentes em Paulo
Mendes Campos, assim como o domingo de seu poema-título, especialmente em Os dias da semana:
Só o domingo não é um dia da semana,
Só o domingo é
Alto e anterior ao calendário,
Só o domingo pertence
Ao que é invisível ao homem,
Só o domingo se põe como um cavalo vermelho
Sobre as nuvens do Rio de Janeiro.
Só o domingo é
Alto e anterior ao calendário,
Só o domingo pertence
Ao que é invisível ao homem,
Só o domingo se põe como um cavalo vermelho
Sobre as nuvens do Rio de Janeiro.
Este poema está em uma das partes de O
domingo azul do mar intitulada O tempo da palavra, assim
mostrando que o dia não-útil da semana é uma metáfora do "outro
tempo", dos instantes privilegiados da poesia, bem distantes do prosaico
dos dias úteis, embora neles a poesia também se faça presente: Quinta, quinta há de ter insetos na
serra, pois Os dias da
semana são crivados de enigmas.
Como poeta, e como personagem e protagonista de sua própria obra,
vivendo o que escrevia e escrevendo sobre sua vida, Paulo Mendes Campos quis
que os domingos invadissem o restante da semana, impregnando-a com seus temas e
obsessões: a morte, o amor, a memória, a experiência do poético, a leitura da
poesia.
Ainda a observar, neste poema inicial, outras das suas qualidades
literárias, o modo como terminava poemas, com uma frase curta a interromper o
fluxo das imagens, sintetizando-as e fechando-as: Eu, prisioneiro, lia poemas nos
parques,/ Procurando palavras que espelhassem os domingos./ E uma esperança que
não tenho. Ou no lírico Poema
de dezembro: Nós adoramos
a praia e ficamos eternos. Esse talento para fechar poemas, talvez o
houvesse adquirido na leitura de Paul Eluard. Não há mais como esclarecer isso,
mas quando ele termina Sentimento
do tempo afirmando que O tempo é meu disfarce, lembra
um pouco Capitale de la douleur, onde Eluard encerra com Le temps se sert des mots comme l'amour.
Ele nos dá muitos outros exemplos de poetização do calendário. No Poema de dezembro há um jogo ou confronto entre uma
referência temporal, o mês do título, e a anulação do tempo através da
experiência poética. Dela faz parte a presença do mar, recorrente neste que
talvez tenha sido o mais carioca dos escritores mineiros, não só por sua
participação na vida literária do Rio de Janeiro, mas também pelo modo como, em
crônicas e poemas, celebrou sua paisagem, suas cenas urbanas, seus crepúsculos
à beira-mar. Há nele um Rio de Janeiro até implícito, pois seu O bêbado certamente vagava por Copacabana,
enquanto via que já vomita no
mar a lua pálida.
Virando a página dessa esgotada e inencontrável edição de O domingo azul do mar, vemos,
coexistindo no mesmo espaço, dois poemas bem distintos. Um deles, o soneto Autorretrato, além de curto, é
conciso. O outro, longo, em prosa, é o importante Poema das aproximações, com seu
turbilhão de imagens afins ao surreal, e com mais paradoxos: Dos deuses movia-me o pensamento a
crueldade nativa. Há, aqui, um manifesto romântico em favor da imaginação,
da plena liberdade de criação: Deixai
que eu fale. Permiti-me a ventura. O verbo copia a alma. Tudo o que a alegria
consente é bom. Deixai que eu fale. Calai a palpitação da máquina.
Os dois poemas, Autorretrato e Poema
das aproximações, lado a lado, na mesma sequência, evidenciam outra
qualidade da poesia de Paulo Mendes Campos, sua natureza plural. Como poucos,
até mais que seu amigo Vinícius de Moraes, foi capaz de trafegar dos mais
delirantes poemas em prosa, passando pela dicção coloquial, até belos sonetos,
formalmente impecáveis, como Amor
condusse noi ad una morte, Tempo-Eternidade e o denso O Visionário.
Disponível no mercado, encontrável em livrarias, existe a coletânea Os melhores poemas de Paulo Mendes
Campos (Editora Global, 1990)
avalizada por Guilhermino César, que a preparou e prefaciou. Pode ser um viés
de apreciador, querendo que o impossível, que tudo conste de uma antologia, mas
é uma pena que nela não esteja incluído o Poema
das aproximações, nem estejam a Elegia
1947, também com ecos surreais, e Sentimento
do Tempo, especialmente interessante pelo modo como, em seu interior,
acomoda-se a pluralidade, passando da forma aberta à metrificada e rimada, sem
quebrar o equilíbrio.
Esse caráter plural da obra de Paulo Mendes Campos - fonte de muitas vozes, no dizer
de Fábio Lucas - talvez explique porque ele foi tão conhecido como cronista, e
por fazer parte de uma confraria mitológica de mineiros radicados no Rio, todos
excepcionais cronistas (Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino,
acrescidos ainda do capixaba Rubem Braga), e relativamente pouco reconhecido
como poeta, com uma crítica ainda reduzida, aquém de sua qualidade. Estudiosos
e comentaristas de literatura gostam de classificar e catalogar, transformando
a história da poesia em uma série temporal de movimentos e tendências. E Paulo
Mendes Campos é difícil de ser classificado e catalogado. Pode, ou não, ser
tido como integrante da Geração de 45. De um lado, há sua poesia metrificada,
coerente com a restauração tradicionalista de 45 em seu sentido mais estrito,
especialmente nos sonetos. De outro, o que sua obra tem de desarrumado e
anárquico. E não apenas pelas imagens afins ao surrealismo. Há, ainda,
ressonâncias do primeiro modernismo, de 22, e uma propositada confusão entre
poesia e crônica, evidente nos textos em prosa que inseria em seus livros de
poesia, sobretudo em O tempo
da palavra. Reciprocamente, muito do que ele publicava na revista Manchete e em outros lugares em que colaborou,
e que está nessa edição da Record, era poesia em um espaço para crônicas.
Enfim, pode ter sido tudo, menos um poeta sectário, preso a uma só
matriz ou ideário. Isso fica mais evidente ainda pela amplidão de suas escolhas
de traduções e paixões literárias, bem documentadas na interessantíssima
coletânea Diário da Tarde (Civilização Brasileira/Massao Ohno,
1981), também merecedora de releitura e reedição, na qual, sempre no modo
coloquial, vai do futebol e dos roteiros de bares a Christian Morgenstern e
Borges, passando por Dante, Cummings, Eluard, Montale, Auden e tantos outros.
Voltando ao roteiro por sua poesia, sempre acompanhando a sequência de O domingo azul do mar, chegamos
à Ode a Federico García Lorca,
importante para que se entenda a própria poética de Paulo Mendes Campos. Essa
homenagem a Lorca é quase toda uma montagem de citações de seus poemas,
articulados em um fluxo, em algo contínuo. É interessante como ele deu
preferência a passagens do Poeta
em Nova York, obra mais anárquica do andaluz, e a mais pautada por um
confronto entre vida e morte (inicialmente, Lorca quis chamá-la de Introdução à Morte). Ao
valorizar o Poeta em Nova York,
antecipou-se a estudiosos e comentaristas modernos como Ian Gibson, que a
consideram sua obra mais importante, matriz para a compreensão do restante. Diferiu
da visão, corrente nos anos 40, quando escreveu esse texto, que deixava de lado
o aspecto mais radical e cosmopolita de Lorca, em favor da imagem de poeta
regional e apolíneo.
Nessa Ode, Paulo
Mendes Campos mostra que a criação poética é uma leitura e um diálogo, mesmo
frustrado por ser impossível, pela ausência do interlocutor: Devolvo-te meu canto imperfeito no
espanto de um menino que lançasse uma pedra no fundo de um poço e em vão
esperasse o baque final tão cheio de paz. Poeta da intertextualidade, da
leitura da poesia, insiste nisso na Loa
literária do desengano, onde comenta e santifica personagens de seu amplo
leque de preferências, que abrangeu de Dante Alighieri até Colette, mais as
irmãs Brontë, Baudelaire. Ibsen… E no autobiográfico Fragmentos em prosa, que se
inicia informando que: Nasci a
28 de fevereiro de 1922, em Belo Horizonte,/ No ano de Ulisses e de The Waste
Land,/ Oito meses depois da morte de Marcel Proust,/ Um século depois de
Shelley afogar-se no golfo de Spezzia. Assim, outros escritores constituem
um calendário, são marcos que conferem sentido à passagem do tempo e à vida.
Referências como essas justificam lembrar a ênfase de Octavio Paz, em
seus ensaios, na afinidade ou nas analogias entre leitura, tradução e criação
na poesia moderna. Por exemplo, em Los
hijos del limo, ao dizer que o
poeta não é o "autor" no sentido tradicional da palavra, porém um
momento de convergência das distintas vozes que confluem em seu texto. E em
seus ensaios sobre tradução, ao insistir que tradução
e criação são operações gêmeas. Paulo Mendes Campos tinha consciência da
relação íntima entre essas três operações, como fica evidente no já mencionado Diário da Tarde, pelo modo como
alternou, dentro de cada capítulo, artigos, crônicas, traduções e epigramas.
Sob esse aspecto, procedeu corretamente Guilhermino César, em Os melhores poemas, ao incluir
algumas dessas traduções. Além disso, utilizou como epígrafe da antologia a
seguinte frase do poeta-cronista-tradutor: Não
entendo a poesia; a poesia é que me entende. Não há como deixar de associar
uma frase dessas ao que Octavio Paz havia dito, em Los hijos del limo, a propósito
da soberania do texto sobre
seu autor-leitor e seus sucessivos leitores, e, em El arco y la lira, na famosa
afirmação de que o poeta não
se serve das palavras: é o seu servidor. Possivelmente, algo do que Paulo
Mendes Campos teve de retraído, avesso ao exibicionismo, relacionava-se a essa
concepção do autor como veículo, servidor da poesia.
Apesar de reduzida em suas dimensões, a obra poética de Paulo Mendes
Campos, por ser tão plural, ainda deixa muito a ser comentado. É claro que a
presente leitura é algo enviesada, destacando a imagética, as associações
livres mais presentes em sua obra de juventude. Esses são, contudo, traços de sua
poesia indispensáveis para a compreensão do restante, para se enxergar o quanto
a simplicidade e o tom coloquial de alguns textos de maturidade são o resultado
de uma depuração, uma espécie de ascese literária. Um ensaio mais extenso
também deveria tratar de sua dimensão memorialística, da recuperação do passado
no período final de sua criação literária. E, ainda, do modo como a memória
individual vai se confundindo com a tentativa de reconstituição de uma memória
coletiva, nacional, especialmente em Testamento
do Brasil.
É preciso examinar, sem transformar um ensaio em réquiem, o tratamento
dado por ele ao tema da morte, especialmente no poema-crônica Em face dos últimos mortos. Ou
em Os lados, onde dizia: Há um lado em mim que já morreu./
Às vezes penso se esse lado não sou eu. E, mais ainda, em A morte, ao proclamar: Vai comigo a morte, vou comigo à
morte, concluindo: Morte,
tens em mim tua vitória. Mas Paulo Mendes Campos não foi um poeta fúnebre
ou mórbido, um Augusto dos Anjos moderno, nem um corroído por um novo mal du siècle. Esses trechos
coexistem com outros de poderosa afirmação, como o Hino à vida.
A propósito da complementaridade vida/morte, pode-se voltar a citar
Octavio Paz, ainda em Los
hijos del limo: Viver no
agora é viver cara a cara com a morte. O homem inventou as eternidades e o
futuro para escapar da morte, porém cada um desses inventos foi uma armadilha
mortal. O agora nos reconcilia com nossa realidade: somos mortais. Só diante da
morte nossa vida é realmente vida. No agora nossa morte não está separada da
nossa vida: são a mesma realidade, o mesmo fruto.
Sem qualquer intenção de sacralizá-lo, reconhecendo que sua obra poética
tinha algo de inconcluso, desigual e às vezes circunstancial, mesmo assim cabe
insistir que uma edição completa de sua poesia, além de satisfazer leitores,
provavelmente viria a estimular críticos e estudiosos.
***
Agulha Revista de Cultura # 20. Janeiro de 2002.
Página ilustrada com obras de Otto Apuy (Costa Rica), artista convidado desta
edição.
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