RP O segundo volume de O Começo da Busca vai ser uma
continuidade do primeiro ou vai propor outras diretrizes poéticas e conceituais
que convirjam para o Surrealismo? Fale um pouco do projeto como um todo.
FM A princípio não havia
nenhuma ideia de segundo volume, por mais que o assunto não pudesse ser
responsavelmente resolvido em 300 páginas. Confesso que já foi um obstáculo e
tanto vir a editar este livro. A acolhida da Escrituras foi providencial e o
objeto final me é bastante simpático. Ao vê-lo publicado é que comecei a pensar
em lacunas que deveriam ser preenchidas, todas dentro da mesma perspectiva. Não
há porque buscar uma ótica outra se estamos tratando de um tema de tamanha
amplitude e ainda não de todo ambientado. Há uma pressa entre nós brasileiros
de mudar de assunto ou diretriz que reflete apenas uma frivolidade. Somente
agora é que começo a pensar no que chamas “do projeto como um todo”. Em carta
enviada, pouco antes de morrer, ao grupo surrealista de Chicago, escreveu
Pierre Naville “que o mundo atual deverá conhecer uma explosão surrealista
muito maior do que aquela que se deu em Paris, em 1924” . Isto foi em 1992, e
até então o Brasil não conhecia absolutamente nada do surrealismo em suas
vertentes hispano-americanas. Mesmo hoje há ainda muito a ser revelado e bem
sabes que sou uma voz praticamente isolada nesse processo. Na continuidade de
meu trabalho vou chamar a atenção sobre outros poetas, frisar as relações entre
vários deles – em termos de ação e poética – e apresentar novas entrevistas.
Além disso, estou escrevendo um volume apenas de ensaios, em que vão se
revelando cronologicamente os dados essenciais para uma leitura dessa explosão
a que se refere Naville, já em ambiente latino-americano.
RP Em O Começo da Busca você demonstra justamente que é possível traçar
uma história da literatura latino-americana a partir do Surrealismo. Você
defende um Surrealismo policêntrico, que emergiu por aqui em diversas etapas e
sob diversas circunstâncias, ao contrário da ideia de um movimento epicêntrico,
com sua origem datada nos manifestos de André Breton. Fale um pouco sobre isso.
FM Não havia ideia de
epicentrismo nem mesmo naquele bando mesclado de ex-dadaístas que se reunia em
torno de Breton. Acho que há algo em comum, o princípio libertário que norteia
o Surrealismo, não resta dúvida. Mas a manifestação desse princípio na América
Latina se deu investida de um otimismo, inclusive uma crença voluptuosa na
linguagem e não apenas na ação. Não cabe falar em emancipação porque a relação
entre os países latino-americanos e a Europa possui vários matizes. Não há o
que se possa chamar de “nossa história”. Não temos uma história comum, no
sentido em que jamais a percebemos sob tal ângulo. No caso brasileiro, nossa
relação com a Europa estava mais acentuadamente ligada à França de Claudel,
Verlaine, Valéry. Desnecessário dizer que me refiro a um mapa oficial dessa
cultura. Tzara, Reverdy ou Breton eram nomes pouco mencionados por aqui. E uma
imediata aproximação entre Surrealismo e marxismo, por exemplo, afastou de vez
toda possibilidade de uma filiação do Brasil a essa corrente libertária que se
anunciava. Nenhuma história corre independente, pois a história é uma mescla de
fatores, e sequer pode ser tão levianamente lida como tardia ou antecipatória
em relação a qualquer aspecto que se coloque. Quando se pretende um recorte
isolado o que se está fazendo é falsear a história – a exemplo do que tivemos
tanto na Semana de Arte Moderna quanto no Concretismo.
RP Como você situa algumas
vozes fortes como César Vallejo e Vicente Huidobro nesse panorama?
FM Grande dilema o de
atestar vínculos. O Surrealismo procurou romper com a ideia de clubismo, e
mesmo assim muitos se aproximaram dele como se buscassem apenas uma carteira.
Essa ambigüidade – se cabe o termo – gerou rejeições famosas, manifestas de
várias maneiras. Vallejo e Huidobro são dois casos paradigmáticos. O chileno é
apontado pelo romeno Stefan Baciu como um dos precursores do Surrealismo na
América Latina. Já o espanhol Ángel Pariente situa o livro Trilce, de Vallejo, como sendo de recorte surrealista. Huidobro
tinha um ego assombroso e jamais admitiria influência de quem quer que seja, o
mundo começava nele. Creio que foi o poeta que mais redigiu manifestos – há um
largo volume que recolhe todos eles –, manifestos de um homem só. Já o peruano
estava tão impregnado de comunismo que a própria ruptura de linguagem que
alcança em Trilce seria
posteriormente enfraquecida em outros livros. De qualquer maneira, creio que a
desconstrução neste livro do Vallejo tende mais ao dadaísmo – embora não tão
nítida como no caso de En la masmédula,
de Girondo – do que ao Surrealismo. E Huidobro estava, como o sabemos,
demasiado impregnado de Cubismo.
RP No Brasil, nosso
conhecimento da literatura latino-americana se restringe à trinca Borges, Paz e
Neruda. Quanto a Lezama Lima, há ainda o agravante de ter penetrado aqui por
intermédio do Concretismo, que importou a imagem deformada e afetada que o Neobarroso de Nestor Perlonguer fez
dele. Fale de outros poetas e poéticas americanos.
FM Talvez seja melhor
começarmos falando dos prejuízos advindos da limitação e, sobretudo, do
falseamento dentro desse âmbito restrito. É precário aceitar a presença de
Borges, Paz e Neruda como grandes poetas, ainda mais sob o crivo de fundadores
da modernidade na poesia hispano-americana. Borges era um fabulista, mestre
imbatível na arte de tornar a si mesmo o grande personagem de sua obra e, por
conseqüência, da tradição literária moderna. Gerardo Deniz está completamente
correto ao dizer que se trata de um poeta de imagens e recursos previsíveis,
enfadonhos. Paz possuía uma aguda percepção da realidade à sua volta – soube
ser inicialmente o crítico dessa realidade, mas acabou por converter-se em
cúmplice dela. Poeticamente cristalizou-se muito cedo. Neruda jamais buscou
outra coisa que não fosse tocar a imensidão do ego, e não reside em outro
aspecto a máscara cosmogônica com que
revestiu sua poética nos incontáveis experimentos estéticos a que a submeteu.
Já o caso de Lezama possui uma graça particular: há algo de enciclopédico na visão de mundo do cubano que o aproxima de
figuras como Peter Greenaway ou Haroldo de Campos. A verdade é que todos querem
ser Deus. E cada vez me parece que a grande tradição poética é consubstanciada
por quem se recusa a sê-lo. O venezuelano José Antonio Ramos Sucre, por
exemplo, matou-se por não suportar mais a presença de visões que lhe
assombravam a existência. Não vivia em um plano literário, mas sim na mesma
dimensão excessiva de um Artaud. Após o suicídio, em 1940, não foi mais
lembrado de maneira consistente. O Chile possui uma vertente múltipla que
encontra em Pablo de Rokha, Rosamel del Valle e Humberto Díaz-Casanueva uma
fonte de renovação que não desconsidera o autóctone e se manifesta no diálogo
com a Europa. No colombiano León de Greiff encontramos o mais surpreendente
caso de polifonia na tradição poética latino-americana. O guatemalteco Luiz
Cardoza y Aragón soube buscar na algazarra da modernidade uma voz que fosse a
soma de todas; uma nova relação com o mito proposta pelo nicaragüense Pablo
Antonio Cuadra etc. O que me pedes não é fácil, toma um livro. Sobretudo quando
no Brasil desconhecemos toda essa tradição. Acho que a todo momento atestamos a
infelicidade de nossa ausência de mundo. Toda a sociedade brasileira desmonta-se
por esse desconhecimento de si mesmo, um mínimo estalo que nos leve à relação
com o outro. Sem ele, não há nada.
RP Você é dos poucos
poetas brasileiros que se preocupam com a dimensão política da arte, o que é,
mais do que louvável, necessário, em um momento em que intelectuais, escritores
e artistas oscilam entre uma burocracia mental aviltante e um espírito gregário
cada vez mais acentuado, ou, na pior das hipóteses, em seu idiotismo, mal sabem
o que vem a ser a dimensão política de uma poética. Como você vê a articulação
entre essas duas esferas?
FM Se não me falha a
memória certa vez o Augusto de Campos referiu-se ao afazer poético como uma
afasia. Isto é curioso porque carece de autocrítica, ou seja, a quem exatamente
ele estava se referindo? Por aqui começamos nosso curso de idiotismo. Este é um formoso termo de alheamento da realidade, de
criação de uma linguagem isolada, que não se relaciona com nada. O idiotismo é
a anti-poesia, mas tem sido a tônica da poesia que se pratica no Brasil de
algumas décadas para cá. É curioso observar as maneiras distintas do ser idiota
no poeta brasileiro. Há os que se tornam reféns da pós-modernidade, que fazem
questão de serem reconhecidos como contemporâneos, por mais desarticulada ou
retrógrada que seja essa pós-modernidade. Na outra ponta estão aqueles que
detestam a atualidade, os passadistas de carteira e louvor, que pousam em bando
como uma equipe de resgate da história. Evidente que em um cenário desses,
reforçado por uma tradição positivista, brigadas da TFP, política cartorial, amiguismos, uma relação responsável de
complementaridade entre poética e política está fadada ao ideário das charges. Não te parece que o mais
importante na vida dos brasileiros é que algo te faça rir? Rir da própria
miséria pode ser uma tática de resistência, mas ser levado a isto é aceitar-se
como instrumento de uma perversão, com o qual somos todos coniventes. A chamada
arte tornou-se mecanismo de idiotização de uma sociedade carente de si mesma. O
pão convertido em circo e vice-versa. Somos todos absolutamente responsáveis
por esse crime em larga escala. A maneira como tocadores de violão são aceitos
como músicos, modelos fotográficas como atrizes, músicos como romancistas,
jornalistas e redatores publicitários como poetas ou roteiristas de cinema,
enfim, a forma espúria como a mediocridade ascende ao poder cultural em nosso
país já se tornou um caso de polícia.
RP Você diz que o
Surrealismo teve pouca penetração no Brasil exatamente por causa de nossa
tradição positivista, o que eu considero uma análise agudíssima e correta. O
que é curioso é essa estética ter se imiscuído entre nós pelas mãos de dois
poetas católicos e com interesses místicos: Murilo Mendes e Jorge de Lima. Ao
mesmo tempo, você tece algumas críticas a esses poetas e sugere outros nomes.
Isso está relacionado às eternas idiossincrasias brasileiras? Como você analisa
esse fato?
FM O Surrealismo estava na
pauta de rejeições de todas as culturas que buscavam uma identidade em meio
àquela eclosão destemperada de ismos das primeiras décadas do século XX. Basta
pensar que Lezama Lima ou Gaitán Durán possuíam articulações essenciais com o
Surrealismo, mas que não as admitiam em circunstância alguma, imbuídos que se
sentiam da necessidade de fundar algo em Cuba e Colômbia, respectivamente. É
possível que o mesmo tenha se dado com o Mário de Andrade, conhecedor que era
dos vislumbres anunciados ao mesmo tempo em que não lhes correspondiam – nem
ele nem Oswald – em termos estéticos. Então nos pegamos com réstias ou pequenos
sinais de vida. Basta ler manifestos assinados por ambos. Já em relação a Jorge
de Lima e Murilo Mendes, façamos o seguinte: troquemos catolicismo por
cristianismo e misticismo por ocultismo, por exemplo, e já teremos aí um novo
ambiente conceitual onde o assunto começa a ganhar clareza. Vincule-se
cristianismo a comunismo e ressalte-se o interesse do Surrealismo pelas
ciências ocultas e ganhamos ainda mais em nitidez nessa relação por ti
sugerida. O que chamas de “idiossincrasias brasileiras”, é sempre o mesmo fruto
podre de nosso desconhecimento de causa. Eu não tenho nenhuma rejeição aos dois
poetas. Acho impressionante que se mencione tão amiúde o Drummond como nosso
grande poeta, este sim tão católico, tão conservador, tão transigente, tão acomodado
às circunstâncias, sob quaisquer aspectos que se mencione. O que digo em meu
livro é que nossa crítica literária necessita sair do lugar comum de tratar o
Murilo como único surrealista no Brasil. Isto não passa de um refúgio para
evitar referir-se à questão como ela merece. Murilo foi um grande transgressor,
e mesmo naquele ambiente interiorano de uma Jandira, por exemplo, já se
ressaltava uma visão mais profunda de mundo, com um recorte filosófico que não
tínhamos em nós nem mesmo de maneira caricatural. É leviano – quando não
criminoso de vez – reduzir a poética de ambos ao que se chama de “poesia em
Cristo”. Como esperar que se manifestasse a explosão do ser em poetas marcados
por uma exasperada chaga católica que tanto define a história brasileira? Diante
da irrelevante obra poética de nomes como Mario e Oswald de Andrade, por
exemplo, tento buscar outra explicação, que não de ordem estética, para que
poetas como Jorge de Lima e Murilo Mendes não tenham sido até hoje lidos com a
isenção que a obra de ambos cobra de nossa crítica.
RP Falando em
idiossincrasia, há uma curiosa. Enquanto na América do Norte o fenômeno Walt
Whitman já tinha acontecido há décadas e na Europa tínhamos uma plêiade
composta por Rilke, Valéry, Eliot, Pound, Apollinaire, Joyce, Lorca, Breton e
Proust (desconto Kafka e Pessoa por causa do seu anonimato incipiente), Mário
de Andrade resolve se agarrar a uma estrela cadente, e importa a tagarelice de
um italiano cuja fortuna mental e o talento irrisórios deixaram para a
posteridade um manifesto e algumas frases tão ridículas quanto ele próprio:
Tommaso Marinetti. Sabemos que o futurismo estava no front de toda a proposta modernista, e que esse mesmo Modernismo,
por razões muitas vezes meramente ideológicas, é a cartilha sobre a qual reza a
maior parte da arte que se fez e faz até hoje. À parte o valor inquestionável
da obra de Mario e Oswald de Andrade, há um legado bastante negativo da Semana
de 22, não? Como você avalia isso?
FM O legado da Semana de
22 equivale à leitura de curso das águas em uma lagoa. É nossa principal
metáfora da permanência, com a ambígua leitura de que é nossa entrada na
modernidade. Mário estava menos interessado nela do que em um projeto pessoal
de afirmação de leitura dessa modernidade. Os nomes ligados à Semana eram os do
rebanho possível. Como Alberto Nepomuceno morrera dois anos antes, embora
deixando volumosa pesquisa sobre cantos populares em todo o Brasil, e mesmo
tendo posto o pescoço a prêmio ao colocar a Sinfônica brasileira a tocar com
Catulo da Paixão Cearense, por exemplo, inúmeros fatos foram apagados e hoje
cabe ao modernismo e em especial a Villa-Lobos essa aproximação entre o popular
e o erudito em nossa música. Também nas artes plásticas teríamos muito a
conversar sobre o injustamente reduzido prestígio de um artista como Vicente do
Rego Monteiro. Não se trata de “legado negativo”, mas sim de falseamento da
história e com a larga conivência de toda uma casta intelectual envolvida. O
mais curioso é quando escuto dizer do nacionalismo exacerbado do Nepomuceno,
por exemplo. Ora, ninguém fala em tal coisa quando se trata dessa íntima
relação que o Mário assumiu com o Futurismo, nitidamente de ordem nacionalista.
Nacionalismo, ressalte-se, no sentido de preparação para regime de exceção.
PR Fale um pouco mais
desse falseamento da história e desse regime de exceção. É ele que endeusa o
Fernand Léger de saia (Tarsila do Amaral) e praticamente risca do mapa um
artista excepcional como Ismael Nery? Que devolve o Concretismo ao centro do
seu próprio umbigo cósmico e torna opaca uma série de coisas em volta? Que
eclipsa Augusto dos Anjos e confere qualidade à versalhada de Mario de Andrade?
Tenho a impressão que se Augusto dos Anjos tivesse escrito em alemão haveria
uma miríade de pedantes usando-o como epígrafe em seus estudos sobre o
expressionismo.
FM Acho que podemos rir um
pouco. Em uma das edições de dezembro de 2002, a revista Época publica um artigo de Antonio
Gonçalves Filho onde menciona a decorrência ingênua da pintura de Anita
Malfatti, o realismo socialista para onde escorreu a obra de Tarsila do Amaral,
a decadência suburbana de Di Cavalcanti e o exílio no academicismo em
Brecheret. A princípio este é um atestado de que a Semana de Arte Moderna não
manteve a chama acesa nem mesmo enquanto o bolo do primeiro aniversário era
cortado. Ora, mas de que nos servia o cubismo de Fernando Léger e a concisão de
Brancusi, se não sabíamos o que propor, a partir deles, em termos de um Brasil
aclamado como bandeira da (nossa) modernidade? Trocar xenofobia por xenofilia?
Ismael Nery sabia o caminho. Mas ia de encontro à pretensa ousadia nacionalista de nossos modernistas. O mesmo vale para
Cícero Dias. Uma coisa que tenho observado nessas leituras comemorativas de
nossa entrada na modernidade é que uma crítica de arte se manifesta de maneira
mais efetiva do que o correspondente, por exemplo, na música ou na literatura.
Nem falar em Niemeyer, que tornou-se um mito intocável de nossa arquitetura,
uma curiosidade na perspectiva de uma arquitetura funcional esse encantamento
por um declarado comunista que planejou espaços onde é bastante dificultado o
encontro entre duas almas. Bom, no caso da música o lobby de Mário de Andrade em favor de Villa-Lobos foi decisivo.
Agora, por que aceitamos tão passivamente a importância de Mário e Oswald como
poetas se não atendem, em circunstância alguma, a uma perspectiva estética em
que deveriam quando menos apontar certos traços renovadores? O falseamento da
história é exercido por um corte abrupto em relação ao passado. Nossa modernidade
parte do nada. O mesmo se repetiria no plano-piloto do Concretismo, décadas
depois. O regime de exceção é decorrente desse comportamento. Basta cotejar
cronologia artística e política – como se fossem entidades inconciliáveis! – e
veremos que a Semana de Arte Moderna é precursora do Estado Novo e que o
Concretismo e o Golpe de 64 são consanguíneos.
RP A propósito, temos no
Brasil duas correntes que se desenvolvem paralelamente e que parecem formar a
esquizofrenia fundamental de nossa intelligentsia.
De um lado, uma forte tradição dialética advinda do Idealismo Alemão, mais
especificamente de Hegel, busca o Bildung,
o caráter formativo da nossa nacionalidade por intermédio da análise da
literatura. De outro, há uma via que finca raízes na linguística, na semiologia
in nuce, na ciência positiva do
século XIX e mais tarde no Estruturalismo, que se preocupa com os aspectos
imanentes da arte, e que nos deu os jogos florais e formais de toda essa poesia
de véu e grinalda feita nas últimas décadas. Em decorrência disso, ora fazemos
da literatura um mero instrumento que expressa uma hipotética essência (a
nacionalidade), ora a tomamos nela mesma e reduzimos seu sentido a um enunciado
discursivo (a linguagem), em contraste com o “mundo”, que confesso francamente
não ter a mínima ideia do que venha a ser. Isso demonstra que as duas grandes
diretrizes do pensamento e da produção poética estão concentradas na dualidade
Forma versus Conteúdo. No seu livro Fogo
nas Cartas, você diz que a poesia, mesmo sendo intransitiva, é filha da
alteridade. Essa definição, além de ser muito bonita, parece negar de saída
essas ambiguidades falazes. Como você se posiciona diante dessas questões?
FM Tua leitura é
cristalina e incontestável. Quem primeiro me chamou a atenção para isso foi o
Roberto Piva. Não podemos nos tornar reféns ou cúmplices dos crimes de lesa
pátria ou língua. A rigor, a poesia é a contestação desses conceitos. Há um
aspecto aparentemente negativista na poesia, o de recusa essencial. Mesmo a
afirmação é uma negação, e isto porque ela parte do princípio de que algo deve
ser contestado. Condição ambígua? Não se trata propriamente de um sofisma. Não
posso me pôr dentro da linguagem se não estou dentro de mim mesmo, com as
implicações naturais do cidadão que sou. Mesmo que vivesse isolado do mundo,
essa seria uma forma de relacionar-me com o mesmo. Então não tenho como fugir
de mim e de minha circunstância – por mais que o deseje. É por isso que me
refiro a muitos de nossos poetas como autistas. A pretensa autonomia – ou voz
própria, seja lá que nome se queira dar – é fruto não de isolamento, mas de
mergulho em todas as águas. A rigor não escolhemos o inferno onde queremos ser
Dante. Mas jamais chegaremos a gare alguma pela via inexpressiva de nossos poetas
incultos.
RP Você defende a união
indissolúvel entre a vida e a arte. Isso não pode gerar algumas dificuldades de
avaliação da obra artística e seu valor objetivo, na medida em que a liga de
maneira muito direta a seu criador e à sua biografia?
FM Não creio nisto. A
biografia de um poeta está intrinsecamente ligada a uma perspectiva de
errância, do matutar em peregrinação, de maneira que não vejo como dar à vida
ou à obra uma dimensão inquestionável. Os valores objetivos são um encargo da
sociedade de consumo. A criação artística possui um valor intrínseco, soma do
objetivo e do subjetivo. É o retrato falado de quem a cria. Prova maior do que
falo a obtemos quando do encontro com o autor de qualquer um desses versos
anódinos que se publicam a rodo. Qual a biografia possível dos poetas
brasileiros, por exemplo, da minha geração?
RP Boa parte da nossa
miséria econômica deita raízes na e coroa a nossa dependência cultural. Mesmo
assim, parece que há cada vez menos debate artístico em âmbito civil, ou seja,
motivado por projetos impessoais e coletivos sobre a arte. Qual o seu
diagnóstico da poesia brasileira atual, com o perdão da amplitude do tema e da
questão?
FM Não há perdão para a
amplitude. Não padecemos propriamente de uma dependência cultural nos moldes de
uma invasão, se cabe o termo. Há cultura suficiente no país para torná-lo uma
grande nação. Eu sempre penso no caso da música e me indago como é possível que
o choro tenha se convertido em algo de quase nenhuma percepção em nossa
tradição musical. Ora, o choro praticamente funda um legado essencialmente
brasileiro. A bossa nova vem depois. Mas claro, é música de branco
universitário. Eu acho um absurdo que não se consiga conversar com poetas
brasileiros sobre música ou teatro ou cinema, por exemplo. Que espécie de mundo
à parte eles estão construindo? E mesmo sobre a matéria queimante da poesia,
raros cruzam os cercados dos lugares comuns, e alguns ostentam ainda com
peculiar parvoíce sintomas de obsessão enciclopédica. Ora, vivemos em um país onde
a miséria intelectual determina a miséria social. Bem podemos compreender todo
o despejar de preconceitos ou rejeições em torno de qualquer maneira distinta
de tratar do assunto. Para que fosse possível um diagnóstico teríamos que
evocar toda uma tradição fraudada, o que significaria revolver túmulos,
reconsiderar decretos de genialidade, rever diários de bordo etc., pois de
outra maneira não alcançaríamos uma justa relação entre passado e presente.
Teríamos, enfim, que enfrentar um largo processo de desmi(s)tificação. Acontece
que os novos talentos são dados à luz dessa deformação cultural, gerando um
círculo vicioso que a ninguém interessa romper. Não quero dizer com isto que
padecemos de um mal incurável. Cabe, no entanto, lembrar que somente através da
revolta, da negação, da insubmissão, em relação a quaisquer cânones é que
encontramos uma razão de ser da poesia.
RP Pela primeira vez,
desde a instituição da República, vamos ter um governo de esquerda gerido pelo
maior partido de esquerda do mundo. No que isso pode mudar o curso do Brasil e
dos países dependentes? Você arriscaria alguma opinião sobre a América Latina?
FM Tenho a impressão de
uma dádiva queimante. Um grande dilema da América Latina tem sido a recusa a
entender que a solução encontra-se em casa. Este é nosso maior desafio. Não
vejo isoladamente o assunto como de ordem política. Caberá ao novo presidente o
que sempre coube a seus antecessores: buscar vínculos substanciosos, que não
sejam regidos apenas por uma falácia de crise. Não arrisco opinião alguma.
Afirmo um caminho que já trilho com meu trabalho. Mínimo sinal, mas que
considera uma relação continental até então inexistente. O mundo deixou-se
tragar pela falácia econômica, sempre cartorial, onde a ameaça terrorista
possui até um dado positivo, que é o de nos despertar dessa hipnose
estatística. Mas não cabe apelar a uma antevisão agora. Há muito o que ser
inicialmente conversado. Lula naturalmente tem suas prioridades. É aguardá-lo,
antes de qualquer outra coisa.
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Originalmente publicada em Agulha Revista de Cultura # 32, Janeiro de 2003.
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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Floriano Martins
Retrato do artista © 2014 Michael Pichardo
Agradecimentos a Márcio Simões
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS
DO SURREALISMO
3 O RIO DA
MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve
em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio
Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011
restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha
Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012
retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano
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