quinta-feira, 3 de agosto de 2017

ANDREA OBERHUBER | O livro surrealista como espaço transfronteiriço: Lise Deharme e Gisèle Prassinos


Com a pesquisa sobre surrealismo e cultura literária conduzida por Henri Béhar (1982), François Chapon (1987), Renée Riese Hubert (1988), Lothar Lang (1993), Johanna Drucker (1995) e Yves Peyré (2001), [1]  entre outros, estamos hoje familiarizados com a importância da colaboração entre escritores e artistas plásticos no desenvolvimento de uma estética “transfronteiriça”. Inspirada no conceito surrealista de ars combinatoria, essa colaboração entre artistas evoluiu para um conjunto a que hoje nos referimos como livres d'artiste. [2]
Por exemplo, pode-se pensar nas contribuições visuais de Max Ernst para as obras de Crevel, Tzara, ou Péret, nos assim chamados livros “surrealistas”, ou nas ilustrações de Magritte e Man Ray para Éluard, além das de Masson para Aragon, Bataille e Leiris. Menos familiar e o desenvolvimento de um novo tipo de “livro” criado por escritoras e artistas plásticas que foi além das práticas tradicionais de scrapbooking, encadernação e ilustração, ou outros acréscimos a posteriori à produção literária, como a capa ou o frontispício. Muitas dessas artistas vanguardistas de 2ª ou 3ª geração, embora reescrevessem ou redesenhassem ativamente topoï do surrealismo, utilizaram plenamente o espaço do livro para criar obras versáteis. Esses livros, ou, melhor dizendo, livros-objeto, são produtos de colaborações entre mulheres e homens ou – como neste estudo – entre duas mulheres: poetas e pintoras, escritoras e fotógrafas ou ilustradoras. Essas formas de colaboração e diálogo interartísticos entre pelo menos dois meios são regidas por um princípio criativo que estabelece relacionamentos dinâmicos entre a redação e a iconografia. Segundo a estética transfronteiriça dos ditos vanguardistas históricos, [3] os artistas apropriam-se do livro enquanto objeto, oferecendo uma ideia da obra de arte que transcende as fronteiras entre diversos gêneros artísticos e os seus suportes. Ao explorar variáveis como o “feminino” e o “intermeios”, essas artistas situam-se em contraponto às figuras convencionais da “mulher-criança”, da “musa”, ou da “colaboradora de poetas, pintores e fotógrafos reconhecidos”, distanciando-se muito, assim da Mulher Automática de Katherine Conley. [4] Figuras emblemáticas desse tipo de criação surrealista — Claude Cahun, Lise Deharme, Leonor Fini, Bona de Mandiargues, Unica Zürn e muitas outras — consideram o livro uma entidade em que os dois artefatos são inseparáveis, suas práticas iconográficas e textuais garantindo a continuidade dos valores poéticos e estéticos do movimento. [5]
No contexto de uma reflexão sobre o “livro”-objeto como espaço para inovação e experimentação, discuto dois casos que considero bons representantes dos modos de repensar o novo livro-objeto proposto pela estética surrealista. Por um lado, com Lise Deharme, Claude Cahun e Leonor Fini, o livro abre um espaço para colaboração, intercâmbio e diálogo. Por outro, com Gisèle Prassinos, torna-se um palco para jogos de metamorfose e humor enlouquecido. Estou interessado na fronteira entre o visual e o textual e entre palavras e imagens no que se refere ao seu grau de “coincidência”, que pode ser “completa” (como nas formas tradicionais de livros ilustrados), “parcial” (comum nas formas híbridas de texto/imagem do século 20), ou “oculta” (como às vezes se dá em livros de artista). [6] Subjacentes a esta análise, as seguintes perguntas: Que “regime” iconográfico e textual rege os livros gerados por essas autoras e artistas plásticas? E, no encalço dessa pergunta, que nova atitude deve o leitor adotar ante um livro que abre mão da bidimensionalidade para manifestar-se como um espaço reconfigurado de leitura e contemplação?
Por meio de três tipos de colaboração entre artistas, pretendo demonstrar que texto e imagem tendem a preservar um equilíbrio que pode variar, dependendo do exemplo específico em questão, mas favorece sempre o sentido cocriado na interseção de palavras e imagens: esse sentido é por vezes óbvio, especialmente quando texto e imagem se defrontam na página dupla para abrir um espaço de convergência, e por vezes precisa ser reconstituído pela imaginação do leitor-contemplador. Da mesma forma, ficará demonstrado que a fragmentação das páginas a serem lidas e contempladas dentro do livro-espaço vai além da ideia de livros aos quais ilustrações tenham sido agregadas em retrospecto. Esses livros questionam a relação mimética entre texto e imagem, exigindo um leitor capaz de interromper o hábito de leitura linear tradicional para mergulhar nesse novo espaço de leitura e contemplação, uma vez que imagem e texto contestam-se mutuamente.
Em 1937, Lise Deharme publicou um livro infantil chamado Le Cœur de Pic, ao qual Éluard se referiu, no prefácio, como um “livre d’images, [qui] a l’âge que vous voulez”. [7] Nessa coleção, Deharme, bem conhecida do meio surrealista – a escritora e poeta era, afinal, frequentadora habitual dos salões de Paris e fazia as vezes de musa surrealista – reuniu uma série de poemas dedicados às maravilhas da flora e da fauna: era “Belle de nuit”, para quem Jehan du Seigneur “donnerai[t] [s]a vie”, uma “Immortelle” que somente poderia morrer de arrependimento, azaléas em “un beau petit panier”, uma “capucine” que deitava lágrimas de “glycine / pour la mort du papillon blanc / son amant”. Entre essas paisagens plácidas, essas flores em rápido murchar e animais estoicos em meio à relva, surge Pic, decidido a compartilhar seus problemas com o leitor (“Les ennuis de Pic”). Em vez de “jouer / avec les petites filles dans les hôtels”, pede “qu’on lui amène / le Diable”, ou que lhe emprestemos uma caixa de fósforos por um instante — “Ah quelle belle flambée / mes enfants”, grita o heroizinho de casaca verde e boina basca. O surgimento de Pic desloca o humor poético diretamente para o mundo maravilhoso e irracional da infância. O leitor agora – e retroativamente – associa a voz narrativa com a do maroto Pic, que nos diz que de uma pena caída irá crescer um “plumier”, que “trois petits souliers” podem subir as escadas por conta própria, e que se o nervo de seu dente o provocar, Pic irá tomar um “petit bâton pointu / pan”, e o nervo se transformará em uma “petit serpent / mort”.
Logo de início, a capa do livro diz ao leitor que se trata do trabalho colaborativo de duas artistas, já que os 32 poemas bastante fora do comum são explicitamente “illustré[s] de vingt photographies par Claude Cahun” (fig. 1). O universo surreal de Pic, repleto de aventuras invisíveis, é um par perfeito para a imaginação onírica que Cahun evidenciara em seus breves textos anteriores, como Carnaval en chambre e especialmente, nas fotomontagens que incorporou a Aveux non avenus. [8] Abordada por Deharme, a escritora e fotógrafa Claude Cahun criou um novo tipo de imagem que François Leperlier chamou de “tableau fotográfico” para dar conta tanto de sua teatralidade (objetos encenados) e características pictóricas (forma composta). [9]
À primeira vista, essas vinte fotografias, como a capa as caracteriza para além de qualquer dúvida, parecem fotomontagens. A foto colorida escolhida para a capa é um exemplo perfeito. Assim como cada uma das outras imagens do livro, sugere um trabalho específico de colagem e montagem, representando neste caso Pic, o herói de grande coração de ata, em frente a sete cartas de baralho enquanto uma oitava – a Rainha de Copas – surge montada como uma bandeira, ou flâmula, numa vara comprida de madeira. As demais imagens do livro em preto e branco, representam uma gama de objetos, bonecos e diversas estatuetas de crianças que, identificadas, manufaturadas, redirecionadas, são dispostas em cenário natural ou doméstico. A cenografia desses mundos – com ovos antropomórficos sub uma gaiola (prancha III), um cervo sobre um dedal, um porco-espinho com um par de tesouras (Prancha IV) – é tão eclética e surpreendente que poderia facilmente ser tomada por montagem. Como se lidasse com um cenário teatral, Cahun dispõe esses agrupamentos de objetos, flores, animaizinhos, estátuas, sapatos, tecido e estatuetas sobre um só palco delimitado, como se procurasse capturar momentos específicos de um estranho espetáculo. Localizadas em um ponto entre o instantâneo e a fotomontagem surrealista, essas imagens em trompe-l’œil criam um falso senso de realidade, justamente por causa de sua semelhança com um palco teatral.
Dão dimensão palpável ao “petit théâtre d’enfance [...], précieux et intimiste” [10] encenado nos poemas de Deharme. Dessa forma cada simulação teatralizada pareceria corresponder a um momento da vida pelos olhos de personagens em miniatura dos quais Pic é o principal herói. Em ressonância com cada um dos trinta e dois poemas tristes e um tanto maliciosos, esses tableaux fotográficos dão ao livro infantil não só um certo valor simbólico, mas também um elemento altamente dramático, como o da própria infância.
O trabalho colaborativo em Le Cœur de Pic resulta e uma obra a quatro mãos que permite um diálogo entre a palavra poética e a imagem fotográfica: A colaboração é equitativa e complementar, o visual e o textual em tal estado de “completa coincidência” que se tornam inseparáveis, ecoando-se mutuamente, às vezes, da maneira mais causal. [11]
Texto e imagem se encaixam como se tivessem sido feitos um para o outro. A obra como um todo dá testemunho de uma só força criativa, como se, depois dos muitos romances de Deharme e dos muitos experimentos estéticos de Cahun, fosse chegada a hora de combinar palavra e imagem em um só espaço-tempo indefinido, simultaneamente o tempo da recreação e da recriação espacial do universo infantil. Isso, de fato, é o que sugere a ilustração no centro do livro, em que uma cama de boneca coberta com um véu branco e plantas acompanha “La débonnaire Saponnaire” e “La Centaurée déprimée” (Prancha XIII).
Le Cœur de Pic é um livro-objeto precioso e verdadeiramente surrealista, como evidencia a concepção especular do textual e do visual, que permite variações e discrepâncias entre poema e fotografia, seja pelo mundo de sonhos invocado a cada pagina dupla, seja pela semelhança de espetáculo teatral que se manifesta quando os leitores-espectadores seguram o livro verticalmente à sua frente, seja pelo formato e pela encadernação de alta qualidade.
Quase vinte anos depois, Deharme embarca em outra colaboração interartística. Desta feita, associa-se à pintora e ilustradora Leonor Fini para ilustrar a capa e as pranchas que acompanham a prosa poética de Deharme. Inspirado em contos de fadas e histórias fantásticas, Le Poids d’un oiseau [12] de Deharme se compõe de diversas micronarrativas independentes que se resolvem em uma reflexão sobre o tempo e a finitude da condição humana. Desaparecimento e espectros são temas recorrentes da coletânea e a voz do narrador muitas vezes parece vir do além-túmulo. Como se dá com muitos dos trabalhos de Deharme, a narrativa se concentra em figuras femininas e na sua identidade híbrida, especialmente em suas afinidades ecléticas com o reino vegetal. A escrita assemelha-se à prática da escrita automática: o tom é frequentemente cômico ou paródico, especialmente em relação a gêneros poéticos tradicionais e no seu rapport jocoso com a língua. [13]
AO contrário do exemplo anterior, os desenhos art-deco e preto-e-branco de Fini parecem confinados a uma função ilustrativa, o diálogo entre texto e imagem em relação um-para-um. Os desenhos caracteristicamente febris e sinuosos de Fini referem-se explicitamente ao texto respectivo, que abrem ou encerram ao surgir sutilmente perante o leitor-espectador. Com efeito, os cinco desenhos de mulheres, todas de véu, parecem surgir subitamente no texto como figuras espectrais, como se para surpreender o leitor e interromper a leitura por um instante.
A coincidência entre texto e imagem permanece “parcial” nesse caso, seu diálogo fragmentado. Sem uma narrativa unificadora, a coletânea recebe unicidade formal por meio de cinco lustrações que representam a mesma mulher em diferentes poses. Em inspeção mais detida, a obra como um todo parece sustentar-se, já que uma unicidade de tom e estilo percorre tanto as histórias quanto as ilustrações de Fini. Uma passagem em especial de “C’est la fin d’un beau jour” nos permite identificar a inspiração dos desenhos: “[Les] fantômes sentent la poussière et parfois même un peu le parfum. Ils portent des voiles, des fleurs, des bijoux et des souliers de bal d’une couleur exquise absolument impossible à trouver dans le commerce courant.” (PO, n.p.) Com efeito, como fantasmas, as mulheres dos desenhos parecem percorrer o livro e desaparecer no final. Apesar da ligação um tanto convencional entre texto e imagem, uma estética mais sugestiva da ilustração do que de um livro surrealista, o que captura a atenção do leitor é a capa de Le Poids d’un oiseau. Servindo como portal de entrada para a obra, revela coincidências “ocultas” entre as histórias e as ilustrações.
Tudo aqui conspira para atrair o olhar do leitor, transformado em espectador, ou até em voyeur, para as profundezas da gravura, enquanto procura decifrar a imagem das duas mulheres de cabeça de peixe engolindo-se. A mulher da esquerda mergulha o bico no bico aberto de seu par híbrido, que, simbioticamente, insere seu seio-adaga em um pequeno corte em forma de vulva no peito da primeira. Insetos (moscas?) também parecem tentar penetrar o corpo, enquanto outra colônia de insetos marcha pelo braço da mulher à direita, em direção ao seu pescoço. A gravura meticulosamente detalhada de Fini é uma prévia do peculiar universo de pássaros estranhos de Deharme: um fantasma que assombra o Castelo de Versailles; uma mulher atingida por um raio; uma criada morta pela queda de um elevador; uma jovem enterrada viva pelas irmãs de um convento; uma rainha que mata lobos e camponeses e os prepara para o jantar “avec des petits lardons d’enfants”, como no irônico conto “Ah! Mon beau château!” (PO, n.p.). A dimensão surrealista da imagem ecoa a imaginação descontrolada dessas micronarrativas, seu universo predominantemente espectral e suas imagens de morte.
Le Poids d’un oiseau é um livro leve, para ser lido como entretenimento, um momento para relaxar e permitir que os pensamentos fujam às distinções entre real e irreal e viajem. O tom altamente distante desses quinze “contos para adultos”, seu humor negro e a escrita paródica de Deharme convidam o leitor a agir como as personagens vaporosas das gravuras: pousar por um momento, observar e desaparecer na expectativa de um livro vindouro, de “des jours meilleurs”, como diz a narradora ao fim de “La Dame à la harpe” (PO n.p.). Como as imagens fugidias de mulheres, as personagens fantasmagóricas são leves como penas, sem qualquer gravidade. Quando se olha com mais atenção para os textos e imagens, relacionando-os à imagem da capa, a discrepância inicial entre literal e figurativo começa a se dissipar. Se os leitores-espectadores se permitirem entrar nessa terra de fantasia, podem muito bem ver-se submersos nesse universo fugaz e duplo do entremundos. No espaço liminar do livro, as paredes erguidas entre os dois regimes de representação podem ruir, convidando-nos a uma leitura cruzada que persiste muito depois de chegarmos ao fim da história.
Ao contrário da maioria dos artistas surrealistas cuja prática era de fato intermeios, Gisèle Prassinos, a mulher-criança imortalizada por Man Ray durante sua leitura do poema “La sauterelle arthritique” para o grupo dos surrealistas, chega ao casamento de escrita e artes plásticas muito mais tarde em sua carreira. [14] Em Brelin le frou ou le Portrait de famille, [15] Prassinos explora o livro pela primeira vez como objeto e como espaço de experimentação iconográfica e textual. Leitores familiarizados com trabalhos anteriores, como Une demande en mariage (1935), Le temps n’est rien (1958), Les Mots endormis (1967) descobrem uma nova dimensão da autora como ávida ilustradora e artista em tapeçaria.
Brelin le frou foi publicado pela Belfond em 1975, [16] mas os desenhos que o acompanham, originalmente previstos para tapeçaria em cores, foram realizados em 1966-1967. A obra é fundamental para o senso de realização e para a mitologia pessoa de Prassinos, aqui construída, analisada e comentada de maneira mais divertida d que em sua auto(bio)grafia, Le temps n’est rien. Brelin, protagonista e anti-heroína desse retrato de família — “enfant débile mental, castré à l’âge de seize ans par ses parents honteux des nombreux esclandres qu’il avait provoqués par son exhibitionnisme” (BF 19)—, age como um duplo, um alter-ego de Prassinos, que busca lugar numa família com sete filhos. No prefácio, a narradora, G.P., leva o leitor à longínqua terra de Frubie-Ost. Esse reino imaginário se compõe de palavras e imagens que encantam o leitor. A narradora recorda a lenda que, no “quotidien de la capitale frubienne-ost” (BF 12), acompanha a pintura anteriormente citada: “Cet intéressant tableau, intitulé LE PORTRAIT DE FAMILLE et composé de morceaux d’étoffes cousus sur de la toile, est, parmi beaucoup d’autres, l’ouvrage d’un frou, [17] récemment décédé dans un rbi [18] où il vivait seul depuis vingt-quatre ans.” (BF 11-12)
A única ilustração colorida de Brelin le frou é a da capa, uma “tapeçaria” que também é o fulcro da história do físico Berge Bergsky e de sua família, inclusive Brelin, o irmão mais velho. Ao mesmo tempo lúdica e fantástica, a imagem representa os sete protagonistas da narrativa, braços estendidos, como se saudassem o leitor ao chegar. As estranhas personagens, todas geométricas – corpos quadrados ou retangulares, chapéus, narizes, boas e orelhas triangulares, olhos redondos —, estão dispostas em uma série de tecidos com padronagem em estrela, oval ou quadrada. A acolhedora imagem revela uma família unificada e próxima, cada membro contando com os demais para permanecer firme e ereto. Brelin, vestido de cor-de-rosa e vermelho, encontra-se simetricamente oposto ao patriarca, de azul claro e escuro. Apesar do aparente equilíbrio, o leitor atento irá notar a distância que a artista mantém entre si e o agrupamento dominante de pai e filho acadêmico.
A imagem ao fim desse estranho “romance de família”, intitulada “Portrait idéal de l’artiste”, é completamente diferente. Logo fica claro que não só Brelin – como todos os protagonistas do livro – é um tanto “f(r)ou”, mas também que transcende seu estado de artista marginal por meio da busca ávida da perfeição artística. É apresentado encarando o leitor, seus olhos grande e redondos fixos; parece alguma figura mítica, até da realeza, com numerosos ornamentos pregados em suas vestes (inclusive uma representação decuplicada do sexo masculino), [19] uma coroa sobre a cabeça e diversas camadas de vestimenta, dando-lhe o aspecto austero de um monarca. Embora Brelin pareça melancólico por causa da ausência de uma boca na imagem, ainda assim se percebe um senso de compostura e presença. O rosto parece uma máscara mortuária, com marcas em branco e preto, e participa do senso de terror e tragédia que emana da pintura. Brelin permanece, decerto, uma personagem apartada, mesmo na auto-representação em que se consagra como artista.
Palavras podem emergir de imagens, instantâneos que se poderia encontrar em uma caixa. Prassinos inventou na íntegra sua biografia em patchwork de Berge Bergsky, o “inoubliable physicien” (BF 13), e de Brelin le frou. Reunida em uma edição comemorativa, a série Brelin, que já fora objeto de exposição, é aqui dotada de narrativa. [20] Os doze capítulos, como tantos ekphrases, [21] dão um relato vívido das configurações familiares, do estilo de vida frubiano e da arte desse “[p]ays d'Europe situé entre la Bronze septentrionale et l’Hure orientale” (BF 12, note 3). Os desenhos, que a narradora cria a partir das tapeçarias de Brelin, mantêm uma relação integral com as doze histórias: literalmente geram palavras. O que Annie Richard observa em relação às tapeçarias bíblicas de Prassinos também se aplica à prática iconográfica e textual da artista em Brelin le frou: “Texte et image sont étroitement imbriqués [...]. Les limites s’effacent [...] entre le verbal et le visuel [...]. Nous sommes en plein processus poétique.” [22]
Em suma, Brelin le frou é o que eu chamaria de “livro surrealista desviado”, no sentido de que o livro é tanto distorcido quando mascarado. É “distorcido” porque Prassinos toma como reféns grandes princípios da colaboração interartística, assim revelando uma imagem dupla de si não só como autora reconhecida, mas também como sujeito criativo que assume indiretamente seu novo papel de artista plástica. E é “mascarado” porque esse outro self produz sua tapeçaria sob o disfarce do artista louco. [23] O livro assim se torna um espaço (auto) ficcional em que se pode dar tal metamorfose, graças à dupla estratégia de distorção e mascaramento. Brelin le frou funciona como uma “camera obscura” que leva a luz até um “intérieur protégé”, um “espace intime de l’histoire des mots et des formes du poète”. [24] Entremeado com a história de uma família, esse espaço permite a existência de todo um país e de suas personagens meio reais, meio fictícias, que o leitor-espectador descobre por meio de desenhos em preto e branco realizados a partir de tapeçarias coloridas. A palavra-imagem, dessa forma, carrega significado e poesia, mas também um segredo, algo oculto que somente se pode revelar dando-se ao trabalho de realmente olhar para as figuras em relação ao texto a elas atribuído e vice-versa.
Os três exemplos de que tratei revelam possibilidade e novos caminhos de experimentação com o livro, enriquecidos pela prática colaborativa ou por inovações em torno de palavra e imagem dentro do conceito do “livro-objeto”. Se a escrita de Lise Deharme precede a imagem, tendo Cahun e Fini sido chamadas a contribuir com sua arte visual para Le Cœur de Pic e Le Poids d’un oiseau, no caso de Prassinos, em Brelin le frou, a escrita deriva sua inspiração narrativa de imagens encontradas ao acaso. [25] Frente às ilustrações enquadradas pela narrativa, cabe ao leitor buscar obras que combinem alegremente a poesia das imagens com o significado por vezes oculto da palavra. Novas formas para o livro parece, assim, emergir da fragmentação do espaço – aquele entre as páginas reservadas para palavras e as ocupadas por imagens. Essa fragmentação do espaço do livro pode assumir diferentes formas e transgredir os limites do textual e do visual de diversas maneiras. Primeiro, duas artistas podem preferir um equilíbrio entre palavras e imagens, permitindo intercâmbio entre as duas entidades (Deharme e Cahun). Segundo, a fragmentação espacial e temporal do livro pode ampliar o conceito de livro ilustrado, com variações, ao mesmo tempo que confere às imagens alguma autonomia (Deharme e Fini). E, terceiro, um livro-objeto poético pode permitir que palavra e imagem participem integralmente da criação de um mundo paralelo – meio ficcionalizado, meio autobiográfico – em que as fronteiras entre realidade e sonho, entre história (pessoal) e ilusão parecem ter sido abolidas; às vezes, como no caso de Prassinos, esses livros oferecem a possibilidade de dividir a identidade do autor entre a escrita e a de um artista plástico.
Independentemente de haver entre esses sistemas heterogêneos de representação colisão ou conluio, o fato de que imagem e texto encontram-se no livro abre a possibilidade de espaços intersticiais. Esse jogo de coincidência variável permite novas práticas de leitura e incentiva o exame formal do continuum entre o livro ilustrado do século 19 e o livro tido como “objeto surrealista”, cuja artesania e edição limitada exigem exposição. [26] Esses novos livros pedem ao leitor que modifique sua prática de leitura e adote uma forma plural de leitura perceptiva. [27] É preciso abrir mão do princípio da leitura linear e, na posição de leitor-espectador, varrer o livro, às vezes por meio de manipulação física, em um ir-e-vir frequente entre texto e imagem, para detectar significados ocultos na página, nos interstícios íconotextuais. Assim, como leitores curiosos e de olhos abertos, podemos participar da alquimia verbovisual.


NOTAS
1. Henri Béhar, “Le Livre surréaliste”, Mélusine, 4 (1981), ed. by Henri Béhar; François Chapon, Le peintre et le livre: l”âge d”or du livre illustré en France, 1870-1970 (Paris: Flammarion, 1987); Renée Riese Hubert, Surrealism and the Book (Berkeley: University of California Press, 1988); Lothar Lang, Surrealismus und Buchkunst (Leipzig: Ed. Leipzig, 1993); Johanna Drucker, The Century of Artists” Books (New York: Granary Books ,1995); Yves Peyré, Peinture et poésie: le dialogue par le livre, 1874-2000 (Paris: Gallimard, 2001).
2. Ver Elza Adamowicz, “État présent: The Livre d”artiste in Twentieth-Century France”, French Studies, LXIII. (2009), 189-198. Para uma discussão mais aprofundada do livro de artista, ver Anne Moeglin-Delcroix, Esthétique du livre d”artiste: 1960-1980 (Paris: Jean Michel Place, 1997); Peinture et écriture 2. Le livre d”artiste, ed. by Montserrat Prudon (Paris: La Différence/Éditions Unesco, 1997); The Dialogue Between Painting and Poetry: livre d”artistes, 1874-1999, ed. by Jean Khalfa (Cambridge: Black Apollo Press, 2001); and Isabelle Jameson, “Histoire du livre d”artiste”, Cursus, 9. 1 (2005).
3. Refiro-me à terminologia de Peter Bürger para o Futurismo, o Dadaismo e o Surrealismo como “vanguardas históricas” e às características que o autor propõe no capítulo: “The Avant-Gardiste Work of Art “, in Theory of the Avant-garde, traduzido do alemão para o inglês por Michael Shaw, Minneapolis, University of Minneapolis Press, 1992 [1974], p. 55-82. Ver também Renée Riese Hubert Surrealism and the Book, Berkeley, University of California Press, 1988, p. 54-83.
4. Ver Katharine Conley, Automatic Woman: The Representation of Woman in Surrealism (Lincoln-London: University of Nebraska Press, 1996).
5. Ver Andrea Oberhuber, “Écriture et image de soi dans Le Livre de Leonor Fini”, Dalhousie French Studies, 89 (winter 2009), 45-46.
6. Aron Kibédi Varga, “Entre le texte et l”image: une pragmatique des limites”, Text and Visuality: Word & Image Interaction 3, ed. by Martin Heusser and others (Amsterdam-Atlanta: Rodopi, 1999), 77-92 (80-89).
7. Paul Éluard, “Préface” in Lise Deharme, Le Cœur de Pic, illustré de vingt photographies par Claude Cahun (Paris: José Corti, 1937; Éditions MeMo 2004). Hereafter CP (does not have page numbers).
8. Para maiores detalhes, ver François Leperlier, Claude Cahun: l’exotisme intérieur (Paris: Fayard, 2006: 357-360) e Andrea Oberhuber, “J’ai la manie de l”exception”: illisibilité, hybridation et réflexions génériques dans Aveux non avenus de Claude Cahun” in Ricard Ripoll, ed., Stratégies de l’illisible (Perpignan: Presses universitaires de Perpignan, 2005: 75-87).
9. Ver François Leperlier, Claude Cahun : l’écart et la métamorphose (Paris : Jean-Michel Place, 1992: 239)
10. Leperlier, Claude Cahun: l’écart et la métamorphose, 242.
11. Tendo participado de diversos estudos sobre a inclinação de Cahun para entremear texto e imagem na mesma obra de arte – frequentemente o resultado de uma colaboração interartística – indico ao leitor os seguintes artigos: Andrea Oberhuber, “Aimer, s’aimer à s’y perdre? Les jeux spéculaires de Cahun-Moore”, Intermédialités, 4 (fall 2004), 87-114; “Pour une esthétique de l’entre-deux: à propos des stratégies intermédiales dans l’œuvre de Claude Cahun”, Narratologie, 6 (2005), 343-364; e “Cahun, Moore, Deharme and the Surrealist Book”, History of Photography, 31. 1 (spring 2007), 40-56.
12. Lise Deharme, Le Poids d’un oiseau, ilustrações de Leonor Fini (Paris: Éric Losfeld, 1955). Doravante PO (não paginado).
13. O autor aprecia associar palavras de acordo com sua semelhança fonética, assim criando novos significados inesperados (ver, por exemplo, “La partie de cartes” (PO n.p.)). Para maiores detalhes sobre o uso do humor e da ironia em Deharme, ver Marie-Claude Barnet, La femme cent sexes ou les genres communicants: Deharme, Mansour, Prassinos (Bern: Peter Lang, 1998), págs. 150-153. É algo surpreendente haver tão pouco em termos de análise aprofundada das obras de Delharme. Ainda assim, além do estudo já mencionado de Barnet e de um artigo intitulado “To Lise Deharme”s Lighthouse: “Le Phare de Neuilly”, a Forgotten Surrealist Review”, French Studies, 57. 3 (2003), 323-334, vale mencionar uma edição especial de Les Cahiers Bleus (no. 19, fall-winter 1980) dedicado a Lise Deharme, que inclui tributos de contemporâneos seus desenhos (inclusive dois de Fini) e fac-símiles de cartas.
14. A obra poética de Prassinos atraiu mais fortuna crítica do que a de Delharme. Ver, em especial, Annie Richard, “Le discours féminin dans Le Grand Repas de Gisèle Prassinos” (tese de doutorado não publicada, Université Paris III, 1980), Le monde suspendu de Gisele Prassinos (Aigues-Vives: HB Éditions, 1997) e La Bible surréaliste de Gisèle Prassinos: les tentures bibliques (Bierges : Éditions Mols, 2004). Considere-se, ainda: Madeleine Cottenet-Hage, Gisèle Prassinos ou le désir du lieu intime (Paris: Jean-Michel Place, 1988); José Ensch and Rosemarie Kiefer, À l’écoute de Gisèle Prassinos : une voix grecque (Sherbrooke: Editions Naaman, 1986); Jacqueline Chénieux-Gendron, “Gisèle Prassinos disqualifiée disqualifiante”, Obliques, 14-15 (1977), 207-215; Marie-Claire Barnet, ““Exquises esquisses” by Gisèle and Mario Prassinos: the Craftswoman, the Writer and Her Brother” in On Verbal / Visual Representation: Word & Image Interactions 4, ed. Martin Heusser e outros (Amsterdam / New York: Rodopi, 2005), 193-206.
15. Gisèle Prassinos, Brelin le frou ou le Portrait de famille (Paris: Belfond, 1975). Doravante BF.
16. Desejo manifestar minha gratidão a Gisèle Prassinos, que concedeu plena permissão para publicação de imagens de Brelin le frou. Agradeço, ainda, a Annie Richard, especialista na obra de Prassinos, por agir como mensageira entre eu e a artista.
17. Observação de Prassinos: “1. Frou: Vieillard entre 90 et 95 ans. De 95 à 100 ans, on porte le nom de bem en Frubie-Ost.”
18. Idem: “2. Rbi: Cabane sommaire construite par un paysan frubien.”
19. Barnet, em seu La femme cent sexes (67-69), discute a noção de Eros em Brelin le frou. Ver, também, Cottenet-Hage, “Humour, sexe et fantaisie: Brelin le frou ou le Portrait de famille de Gisèle Prassinos” in La femme s’entête: la part du féminin dans le surréalisme, ed. Georgiana M. M. Colvile e Katharine Conley (Paris: Lachenal & Ritter, 1998), 172-185 (espeficicamente, págs. 177-183).
20. Ver Richard, Le monde suspendu de Gisèle Prassinos, 63-65.
21. Há diversos casos em que o texto do lado direito fornece uma explicação detalhada do desenho à esquerda (ver, por exemplo, páginas 19, 45, 53 e 95).
22. Richard, Le monde suspendu de Gisèle Prassinos, 76-78.
23. Cottenet-Hage (“Humour, sexe et fantaisie”, p. 173) defende argumento parecido, observando que o autor “se esconde atrás da máscara de ficção humorística, mantendo, assim, uma distância segura entre a confissão e uma fantasia deleitosa”.
24. Marina Catzaras, “Poésie du corps ou corps de la poésie: close up sur écriture et peinture”, in Peinture et écriture 2: Le livre d”artiste, ed. by Monserrat Prudon (Paris: La Différence / Unesco, 1997), 259-265 (p. 263).
25. No “Prefácio”, uma espécie de contrato com o leitor, a narradora, G.P., explica que durante uma viagem a Frubie-Ost descobriu por acaso as tapeçarias produzidas por Brelin a partir de fotografias de família que encontrara em uma caixa (BF 11- 15).
26. Sabemos da importância que o movimento surrealista attribuiu ao objeto encontrado, à sua transformação em obra de arte por meio de um processo duplo de descontextualização e recontextualização. Ver o excelente catálogo de exposição Surreal Things: Surrealism and Design (London: Victoria & Albert Publications, 2007).
27. Anne-Marie Vetter refere-se a um processo que envolve “dupla leitura”, talvez até “multipla leitura” do livro de artista (ver “Quel lecteur pour le livre d’artiste?”, in Peinture et écriture 2. Le livre d’artiste, ed. Montserrat Prudon (Paris: La Différence / Éditions Unesco, 1997), 281-288 (pp. 283-287).


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ANDREA OBERHUBER (Canadá). Professora do Departamento de Estudos Franceses da Universidade de Montreal. Há diversos anos seus interesses se voltam especialmente para a literatura e demais artes. As abordagens teóricas que privilegia estendem-se ao intermeios, aos estudos de gênero e à ginocrítica. Contato: andrea.oberhuber@umontreal.ca. Ensaio traduzido por Allan Vidigal. Página ilustrada com obras de Felícia Leirner (Brasil), artista convidada desta edição.

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ÍNDICE # 100

EDITORIAL | 100 números e a dinâmica imóvel do cotidiano

AGACÍ DIMITRUCA | Tiempos griego-españoles

ALFONSO PEÑA | Conversa con Claudio Willer

ANDREA OBERHUBER | O livro surrealista como espaço transfronteiriço: Lise Deharme e Gisèle Prassinos

ANTONIO CABALLERO | Harold Alvarado Tenorio y un libro a cuchilladas

DANIEL VERGINELLI GALANTIN | Eliane Robert Moraes: perversos, amantes e outros trágicos

ELVA PENICHE MONTFORT | Fotografía y surrealismo: fetiches de Kati Horna

ESTELLE IRIZARRY | Eugene Granell: correspondencias entre creación pictórica y literaria

ESTER FRIDMAN | A linguagem simbólica no Zaratustra de Nietzsche

FLORIANO MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 1

FLORIANO MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 2

FLORIANO MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 3

HAROLD ALVARADO TENORIO | 100 años de poesía en Colombia

ISABEL BARRAGÁN DE TURNER | La isla mágica de Rogelio Sinán

JOSÉ ÁNGEL LEYVA | Víctor Gaviria: El poeta y el cine

LUIS FERNANDO CUARTAS | La ilusión siniestra de los cuerpos y los engaños de la metamorfosis

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Herberto Helder, sigilosamente Herberto

NICOLAU SAIÃO | Recordando uma comunicação de Mário Cesariny

RICARDO ECHÁVARRI | El poeta Arthur Cravan em México

SUSANA WALD | En el espejo retrovisor

ULISES VARSOVIA Esencia y excedencia de la poesía contemporánea

ARTISTA CONVIDADA | FELÍCIA LEIRNER | GISELDA LEIRNER | Felícia Leirner, minha mãe


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Agulha Revista de Cultura
Número 100 | Julho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
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