quarta-feira, 16 de agosto de 2017

LORENZO DE JESUS MIRANDA | Conversa com um pessimista produtivo


Floriano Martins é um ativista cultural que caiu como luva para o DC Ilustrado. Desde agosto deste ano (2011) tem colaborado com extensas entrevistas em nosso caderno domingueiro, jogando luz sobre as artes e criadores brasileiros, levando aos leitores mais conhecimentos e esclarecimentos em torno dos nossos fazeres culturais. Floriano nasceu no Ceará em 1957 e é o criador e editor da Agulha Revista de Cultura, publicação que existe há 12 anos. É poeta, editor, ensaísta e tradutor. Sua relação com Cuiabá teve início na primeira edição da Literamérica, em 2005, quando ele foi consultor do evento. Em 2006, ele também participou do evento, contribuindo para o sucesso da iniciativa e tornando a saudosa Feira Internacional de Livros que Cuiabá sediou bastante representativa no que tange à sua qualidade literária. De lá pra cá, têm sido constantes nossas trocas de informações, e essa relação se cristalizou com suas valiosas colaborações para o DC Ilustrado. Ouvir Floriano é sempre uma oportunidade de ampliar os horizontes, especialmente, no que se refere à literatura latino-americana. [LJM]

LJM | Lembro-me que na Literamérica de 2005 muito se comentou a expressão “o Brasil está de costas para os outros países da América do Sul”. Esse fato, essa realidade, em sua opinião, ainda é tão flagrante, ou alguma coisa está se modificando? Por quê?

FM | É uma questão de (falta de) princípios e não de quantidade. Por mais que alguns isoladamente se esforcem por reduzir essa barreira entre as duas fatias, assim constituídas, dessa parte do continente (que, a rigor, se amplia por todo ele), não há declarada intenção, pública ou privada, institucional ou intelectual, de sistematizar um plano de intercâmbio cultural. Nem mesmo na área comercial – claro, aqui me referindo ao comércio das artes. Do ponto de vista institucional, trata-se de uma falha estratégica, pois o governo não tem a menor idéia do quanto que o delineamento de um programa de aproximação dessas culturas poderia gerar de receita política em seu favor. Do ponto de vista do intelectual brasileiro, até onde existe essa entidade, a sua petulância somente encontra parâmetro em sua covardia; no primeiro caso, por sentir-se superior em tudo; no segundo, por se ausentar de cena sempre que é necessário ouvir sua voz. Não se muda um cenário desses da noite para o dia.

LJM | Com esse distanciamento, apesar das fronteiras geográficas, fica uma impressão de que a nós, brasileiros, não chegam alguns dos melhores escritores de países de língua espanhola. Eu diria que conhecer Borges, García Márquez, Cortazar, Neruda, Puig, Piglia, Octavio Paz e mais alguns famosos. Não me parece que seja suficiente para se adentrar na plenitude que é o universo literário espanhol. Meu raciocínio está correto?

FM | A lacuna, que é imensa, existe pela ausência de programa editorial. Durante seis anos, por exemplo, eu fui coordenador editorial da coleção Ponte Velha, da Escrituras Editora, em São Paulo, e através dessa coleção foi possível trazer ao leitor brasileiro mais de 40 autores portugueses (e uns poucos também da África portuguesa) até então não publicados no Brasil. Acontece que não há uma coleção assim no âmbito da literatura de língua espanhola. Evidente que se pensarmos na literatura, em seu amplo espectro de gêneros, tendências, movimentos, tudo isto multiplicado pelos 20 países de língua espanhola, seria impossível esgotar o tema graças aos poucos autores de que dispomos no Brasil.

LJM | Você acha que é possível diagnosticar diferenças e semelhanças marcantes entre os textos literários em espanhol e em português?

FM | Sempre é possível, querido. São truques de qualquer boa crítica literária. Mas de que adianta, quando não há conhecimento da obra em si? É preciso permitir ao leitor brasileiro acesso a essa literatura. Sem o conhecimento da obra, sem o convívio com ela, a relação amorosa que a leitura permite, todo o resto é mera especulação acadêmica.

LJM | Vamos voltar ao passado. Com que idade, mais ou menos, Floriano se interessou pela literatura, e quando foi que a língua espanhola entrou em sua vida para ficar? Poderia também falar sobre motivos suspeitos que o levaram a isso?

FM | O tema requer boa memória. Eu sou filho da televisão, o que quer dizer que desde menino eu ficava fascinado com os desenhos do Gato Félix. Minha mãe tinha aquela coleção da revista Grande Hotel, as fotonovelas, adaptações de clássicos da literatura mundial. Meu pai tinha uma biblioteca que era uma verdadeira salada de gêneros. Em casa também se ouvia muita música. Essa multiplicidade de fontes sempre esteve presente em minha vida. Já a língua espanhola entrou como uma espécie de acaso objetivo. Havia lido algo de Borges e Neruda em português, mas o fascínio veio quando um amigo me presenteou com a poesia completa do César Vallejo. A curiosidade é que o fascínio não estava propriamente na poesia do Vallejo, mas sim nos nomes de outros poetas citados no estudo introdutório, que eu desconhecia por completo. Desvendar esse mundo troava como um desafio. O próprio autor do estudo, Américo Ferrari, é um dos grandes poetas peruanos que posteriormente conheci, entrevistei e publiquei em minha revista.

LJM | E a Agulha Revista de Cultura, como foi que ela surgiu e desde quando ela vem costurando sua trajetória de vida?

FM | Desde o final de 1999. Logo no ano seguinte convidei o Claudio Willer para juntar-se ao projeto e passamos a ser ancorados no Jornal de Poesia, graças à generosidade do Soares Feitosa. A revista tem ampla e comprovada aceitação em inúmeros países. Em 2007 recebemos o prêmio da ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Arte, pois uma das características da revista é o espaço que criamos de difusão das artes plásticas. Em 2009 encerramos a primeira fase, com a publicação de 70 números. A partir daí o Willer se desligou do projeto e por dois anos eu me dediquei sozinho ao que chamamos de Agulha Hispânica, a edição de 12 números dedicados exclusivamente ao mundo da cultura e das artes em língua espanhola. A partir de janeiro de 2012 começamos uma nova fase, desta vez com um outro parceiro, Márcio Simões. A revista está maior, com textos publicados em português, inglês, espanhol e francês, e reúne em seu portal as duas coleções anteriores, além do acesso aos demais projetos editoriais, Banda Hispânica e Banda Lusófona. Há muita novidade, assim que o melhor é convidar o leitor a visitar o portal.

LJM | Você também participa de alguns projetos envolvendo outras marcas literárias, como a editora mexicana La Cabra Ediciones e as Edições Nephelibata, de Santa Catarina. Fale sobre isso.

FM | São editoras de livros impressos com características distintas entre si. A mexicana é mais ampla e comercial. Através dela estamos publicando, em quatro volumes, uma seleção das melhores matérias dos primeiros 10 anos de Agulha Revista de Cultura. Agora no começo de 2012 sai o primeiro volume, dedicado às entrevistas. Também estamos desenvolvendo a criação de uma coleção de livros de autores brasileiros para divulgação no México. A brasileira Nephelibata caracteriza-se pelas edições artesanais de tiragem reduzida. Ali eu criei e coordeno uma coleção intitulada O Começo da Busca, mantendo o mesmo princípio da editora, de buscar autores ou livros não (mais) contemplados pela visão editorial de grande mercado. É intensa e valiosa a cumplicidade com as duas editoras, além da amizade incondicional com seus diretores, respectivamente María Luisa Passarge e Camilo Prado. Na Agulha Revista de Cultura que acabamos de publicar há entrevistas com ambos, onde falam mais detidamente de seus projetos editoriais.

LJM | Em algumas entrevistas que você fez e que já publicamos aqui, há pistas de uma forte admiração pelo surrealismo. Ou será que estou enganado? Pelo sim e pelo não, peço que se estenda em torno disso.

FM | O Surrealismo é a presença mais marcante dentro do universo das vanguardas do princípio do século XX. Sua defesa intransigente de uma relação íntima entre vida e obra o tornou tabu em um país culturalmente dominado por senhores feudais como Tristão de Athayde e Mário de Andrade, União dos Moços Católicos, TFP e congêneres. Embora pudéssemos encontrar identificações com o surrealismo na obra de escritores e artistas brasileiros, tudo sempre foi muito velado. Quando descubro a atuação do surrealismo na América Hispânica é que resolvo me dedicar à pesquisa, tradução e publicação de livros. Em 2001 publiquei uma primeira antologia do surrealismo em nosso continente. Dois outros volumes saíram posteriormente, sobre o mesmo tema, porém no exterior: Costa Rica e Venezuela. Agora finalmente estou concluindo as quase 800 páginas de um livro que mescla estudos críticos, entrevistas, documentos raros e antologia poética, do surrealismo em toda a extensão do continente americano. Mas claro que a paixão pelo surrealismo transcende a pesquisa histórica, assim que há também declarada afinidade no âmbito estético.

LJM | Aqui em Cuiabá, neste ano, palestraram escritores como Cristóvão Tezza, Luiz Ruffato, Marçal Aquino e Nicolas Behr. São autores conhecidos pelo Brasil afora, e até alguma projeção no exterior. Com exceção de Marçal, os outros, de uma forma geral, diagnosticam um crescente interesse do brasileiro para com a literatura nos últimos anos. Floriano Martins tem uma opinião definida sobre isso?

FM | Há sempre o perigo de dar um tiro no pé um autor apontar desinteresse do leitor pela literatura. Certamente hoje se publica muito mais do que há uma ou duas décadas. Há mais facilidade de exposição, o que nem sempre significa atrair mais leitores. Pode inclusive acontecer o contrário: afastar o leitor por excesso de oferta, desnorteá-lo. Além disto, as listas de mais vendidos atestam uma preocupação com a natureza do que se está lendo. Tampouco podemos nos esquecer que a estatística é um tipo de ciência ambígua. Melhor confiar desconfiando. Alguém já disse que a única coisa permanente no Brasil são os modismos, sua infinita capacidade de renovação. Mantenho a minha postura de pessimista produtivo. Jamais cometo o erro de tirar o domingo para descansar.

LJM | Floriano, fale um pouco sobre sua produção. Além das páginas web mencionadas, o leitor que quiser conhecer suas obras publicadas (quantas e quais são?) pode encontrá-las de que forma?

FM | Somando livros de poemas, prosa poética, narrativa, ensaio e entrevistas, aos volumes organizados e traduzidos por mim, creio que chegamos à casa de 70 títulos, espalhados, sobretudo ao longo dos últimos 15 anos, por oito países, através de edições comerciais e selos caseiros. Entre os livros publicados no Brasil, mais recentes, sugiro o leitor
buscar A inocência de pensar (ensaios, Escrituras, 2009) e Autobiografia de um truque (prosa poética, Nephelibata, 2010). Na Espanha foi publicado em 2009 um volume bilíngüe com a minha poesia, intitulado Fogo nas cartas. Em fevereiro de 2012 será lançada no México uma edição trilíngue (português, inglês, espanhol, por La Cabra Ediciones) de Overnight medley, livro que escrevi com o poeta mexicano Manuel Iris. Também me atrai muito o trabalho como capista e letrista de canção. E naturalmente essa inquietude é fruto daquela diversidade de leituras da infância.

LJM | Conforme te expliquei, nossa conversa não teria condições de se estender muito. É hora de agradecer a sua contribuição para com nossos leitores e deixar a palavra livre pra que digas o algo mais que ficou faltando. Sempre fica faltando, não é mesmo?

FM | Mas a conversa foi muito agradável, querido. E é impossível não faltar algo, ou melhor: é sempre bom deixar algo para a próxima. O que não posso deixar de mencionar aqui é o agradecimento pelo carinho com que vens recebendo a série de entrevistas que publicamos em DC Ilustrado nos últimos meses e que certamente seguiremos publicando em 2012. Viva nós. Abraxas

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Organização a cargo de Márcio Simões e Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Entrevista realizada em dezembro de 2011.
Artista convidado | Floriano Martins
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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