I. | Em 1915, era publicado no Rio
de Janeiro o livro de poemas de uma jovem chamada Gilka Machado, então com 22 anos
de idade. O volume tinha como título Cristais
Partidos, nome ruidoso, verdadeira metáfora plástica e sonora antecipadora do
reboliço que a sua obra causaria na literatura brasileira canônica. A identificação
do volume registrava, assim, não só o burburinho em torno desse lançamento, mas
preconizava a quebra de interditos na sua poética e um simbólico rompimento com
o destino rotineiro da mulher-poetisa nacional. Tratava-se agora da sua estreia
mas, tempos antes, quando contava 14 anos, Gilka obtivera (precocemente e de uma
só vez) os três primeiros lugares num concurso de poesia do jornal A Imprensa, dirigido por José do Patrocínio
Filho. Valera-se ela de pseudônimos que lhe garantiram a inscrição simultânea.
Desde
tão remoto episódio, Gilka Machado já causava espécie. Quando a menina foi, com
Therezinha, sua mãe, buscar os prêmios, os patrocinadores não puderam esconder o
espanto. Da curiosidade passaram à desconfiança, e chegaram mesmo a declarar o quanto
duvidavam da autoria dos poemas, muito avançados, segundo criam, para uma garota
daquela idade. E isso porque os versos dessa “criança” (asseveravam eles) eram positivamente...
eróticos!
Ora,
a observação se devia, dentre outras, ao fato de a menina-revelação confessar sentir
(no dito poema ganhador) “pêlos” no vento...[1]
Tratava-se de um soneto que, agora, em 1915, integrava o livro de estréia
como o VIII dos “Noturnos”, título mais tarde modificado mais apropriadamente para
“Cio”. Ei-lo[2]:
É noite.
Paira no ar uma etérea magia;
nem uma asa transpõe o espaço ermo e calado; e, o tear
da amplidão, a Lua, do alto, fia
véus luminosos para o universal noivado.
Suponho
ser a treva uma alcova sombria, onde tudo repousa unido, acasalado.
A Lua tece, borda
e para a Terra envia,
finos, fluidos filós, que a envolvem lado a lado.
Uma brisa sutil, úmida, fria, lassa,
erra
de quando em quando. É uma noite de bodas esta noite... Há por tudo um sensual arrepio.
Sinto pêlos no vento... É a Volúpia que passa, flexuosa,
a se roçar por sobre as cousas todas, como uma gata errando em seu eterno cio.
Soneto alexandrino,
de cunho muito sensitivo, todo em rimas alternadas e em exploração sonora dos vocábulos,
ostentando uma cumplicidade com a natureza e um estreito entendimento do cosmos
– ele exala a marca da sensualidade e do aspecto formal a imperar na obra futura
de Gilka. A peça se ocupa das bodas cósmicas; todavia, a volúpia é bem terreal,
pois que escapulindo-se da magia etérea, o poema incorpora os gemidos de uma “gata”.
Tal feição erótica há de escandalizar a burguesia carioca, intrigar os críticos
e dar pano para as muitas mangas dos comentários maldosos. Alfinetadas que, ao longo
de anos seguidos, além de incomodarem, começarão por envenenar o estro de Gilka
que, com sagacidade, há de tomar tais comentários como interlocutores, como antagonistas
a figurarem internamente em sua obra enquanto vivos atestados de um longo diálogo
que sua produção vai buscar empreender e assimilar argumentando - embora muitas
vezes de maneira contrafeita.
Observo que Gilka
não expulsará da sua obra tal matéria impura, tais manifestações de desagrado que
rondam os seus versos: ela não as evita e nem tergiversa. Ao contrário: ela as traz,
de fora para dentro do seu poema, importando-as enquanto percalços ou entendimentos,
acolhendo-as no seu âmago. Não como uma enxertia invasora, mas como um manancial
de diálogo, como gérmen de instigação para o adensamento da sua própria experiência
poética e para sua defesa. A poetisa conversa com elas no coração do que escreve,
argumenta com elas para poder exorcizá-las e se justificar. De maneira que a sua
publicação seguinte há de estampar, desde o título, os sinais de cautela contra
as nocivas especulações de que fora vítima logo nessa sua inaugural exposição pública.
E o novo volume, o de 1917, carrega, desde o seu título, os indícios dessa tática
poética de resistência receptiva, digamos assim.
Os
versos se denominam Estados de alma. Estrategicamente,
o vocábulo “alma” aí comparece com a função de elemento agregador das voláteis expressões
daquilo que, antes, parecia emanar apenas de um centro erótico. Aqui, a “alma” é
o lugar (apontado por antecipação), de onde devem se desdobrar (para convergirem)
as possíveis leituras a serem perpetradas sobre esses outros poemas: maneira de
implicitar que todo e qualquer erotismo ali presente não passa de um dos muitos
“estados” provenientes de uma só sede sutil e nada material. O corpo não é para
aqui chamado, a não ser como decorrência, como uma das possíveis articulações dessa
matriz etérea... Gilka tentava, por tais meios, instruir (seduzir?) os seus adversários
(homens e também mulheres!) acerca do modo mais condizente de leitura da sua obra.
E mais: através de meandros internos postos em vigor pelos
versos, ela também
buscava prepará-los a ultrapassar a moral tão arraigada e o preconceito
de tão difícil trato que, antes, haviam assumido contra ela.
Resulta
curioso acompanhar os sulcos da composição de Gilka Machado a partir da recepção
crítica obtida. Talvez mais do que em outras produções, nesta, ficam quase nítidos
tal engenho: os ingredientes externos vão se imiscuindo na própria tessitura poética
(com seus critérios morais e de gosto), por vezes a ponto de irem lhe conferindo
uma compleição diferenciada, só possível mercê dessa conversação em surdina – aliás,
muito acidentada por avanços e recuos diante do diverso alheio, diante de uma expressiva
e crítica alteridade.
Noto que essa trajetória dos versos não é em nada pacificada. Porque, se,
de um lado, a presença desses rumores, e mesmo dos ataques pudibundos desferidos
contra seus poemas, a incitam a se definir mais incisivamente livre nos arroubos
e enlevos sensuais, por outro, a sua poesia vai pouco a pouco se ressentindo de
tais arremetidas. Por vezes molda-se por elas; por vezes revida-as, recusando-as
ou trazendo-as declaradamente para si.
No entanto, parece que, desse litígio interno doloroso, é o seu interlocutor
quem vai se fortalecendo gradativamente, deslocando-lhe a temática, a ponto de,
ainda mais tarde (quem sabe?) chegar a decretar o silêncio da nossa poetisa - o
seu suicídio em vida. Sim, porque Gilka, tendo vivido 86 anos, finou-se muito cedo
para a poesia. Para quem havia iniciado a existência literária tão prematuramente,
o seu encerramento foi precoce demais e rodeado de muito desencanto. Depois de 1938,
quando publica Sublimação, Gilka, que
viveu até 11 de dezembro de 1980, abandona praticamente a poesia, não tendo editado
senão esporadicamente uma ou outra antologia de poemas antigos e descoloridos. Que
digam disso os versos da antologia de 1968, a derradeira, cujo título indicativo
aponta para um auto-reconhecimento patético: intitulava-se tristemente Velha poesia... a derradeira recolha poética
de Gilka Machado.
Ora, para quem começara quebrando grilhões, estilhaçando cristais, o título
de 1938 – Sublimação –, encerramento da
sua carreira poética, parece soar como uma rendição final aos reclames de uma sociedade
que reservava, para a mulher, um lugar de pura alienação. E o volume acena para
um melancólico ambiente de pura rarefação, renunciando Gilka ao pioneirismo que
seus versos abriram com tanto alarde no cenário da literatura brasileira. Parece
ecoarem, agora, como a capitulação das conquistas de direito feminino de exercício
da voz, prerrogativa adquirida por meio da flexão literária de toda a sua obra anterior
que, como um protesto vivo e bombástico, conclamava, escandalizando, um novo patamar
para o desempenho artístico da mulher, uma resistência concreta ao discurso patriarcal.
No
entanto, a terceira produção de Gilka, a de 1922, exibira essa audácia com um título
inesperado - Mulher Nua –, compensando,
em larga escala, o pseudo-recuo contido na semântica do seu segundo volume, como
frisei: Estados de Alma. A publicação
seguinte, a de 1928, situando-se em igual movimento bombástico e revolucionário,
tivera um título ainda mais relevante, mais diretamente concernente à condição feminina.
O livro se intitulava Meu Glorioso Pecado
- nome emblemático composto para celebrar, com orgulho, a pecha atribuída ao
feminino, que acusa a mulher de detentora do dito pecado original. Em vez de culpa,
o título exibia aos quatro ventos a sua
glória. O pecado, ao contrário do que se poderia supor, era concebido por ela como
digno de louvor! E de escândalo – claro está! – por parte dos ferrenhos moralistas.
Todavia, agora, com Sublimação, Gilka
celebrava o seu ritual de retiro da vida pública; isola-se a partir de então, confina-se.
Afastamento,
subtração, desistência: no litígio poético contra a sociedade do seu tempo, a mulher
sai vencida - mas não a poetisa! A artista audaz e insurrecta, aquela que ousou
desafiar os padrões de comportamento com a sua voz insubmissa, que pleiteava o direito
feminino de expressão do desejo – essa ainda hoje aqui está, fincada e enraizada
definitivamente na literatura brasileira, tal como uma árvore (imagem que sempre
lhe foi tão cara!), acenando, aos ventos futuros, com o seu espírito desbravador,
com seu atrevimento e sua arte.
E é assim que Gilka Machado inaugura, na literatura brasileira, uma tradição
que converte a mulher, de musa, a sujeito de discurso.
No caso dela, não terá sido apenas a sua condição feminina a visada pela
desmoralização a que foi submetida a sua obra. Outros preconceitos, tão fortes quanto
esses, concorreram para tal fito - só que impronunciáveis, só que jamais confessados!
O que talvez explique o mal-estar e a confusão generalizada que a sua obra causou,
a sensação de desconforto do seu leitor e de seus pares, presos de sentimentos contraditórios
de encantamento, repulsa, escândalo e admiração. É provável que também a percepção
da sua reputação como algo de suspeito decorra daí.
Tentarei articular com clareza o sombrio tom acionado por seus adversários
para denegrir a sua presença literária, para desativá-la, para, por fim, neutralizá-la.
II. | Os
anos de formação pessoal e literária de Gilka Machado coincidem com o período de
transição cultural, política e social ocasionado, em 1889, pela proclamação da República
Brasileira. A República é ainda muito jovem quando se dá o nascimento de Gilka em
12 de março de 1893, e o novo sistema político, muito embora simbolizado por uma
linda mulher (a dita Marianne, oriunda da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”
da Revolução Francesa) se erige (sob a égide do positivismo de Comte) contra quaisquer
esforços de autonomia feminina. Numa palavra: a República propunha cidadania para
os homens e maternidade para as mulheres. O poder mais nobre, o espiritual, é, claro,
pertença feminina, o que ao mesmo tempo lhe ceifa quaisquer laivos de eficácia política;
daí que ela resulte confinada à domesticidade.
A República anulava bizarramente o feminino naquilo que (como sistema político)
trazia de mais inovador: o direito à representatividade política, ao voto, ao sufrágio,
e à cidadania. De maneira que, emblemática feminina, a República enaltecia a mulher
para alijá-la de suas atividades de participação social.
É às vésperas do Estado Novo de Getúlio que Gilka escreve; justo no momento
em que são discutidos, no Brasil, a situação da mulher, o seu papel cívico e os
seus direitos políticos. Em 1910, embora seja ainda muito jovem, Gilka, que se casa
nesse ano, faz parte das iniciativas para a fundação do Partido Republicano Feminino.
Note-se como o desvelo pela emancipação feminina já está entranhado na sua linguagem
e no seu comportamento poético: é natural que ela busque respaldo político para
exercer a sua literatura, num tempo em que tudo aquilo que implicasse em uma práxis
(que tangenciasse uma zona interdita ou proibida) constituía por si só uma ação
revolucionária.
Ruy Castro lembra
que, ainda em 1919, a sociedade carioca
se espantava com as maneiras da jornalista Eugênia Moreira, conhecida pelo desprendimento
de modos: fumava charuto e falava desembaraçadamente palavrões, sendo exímia amazona
e remadora do clube Flamengo – e, por sinal, amiga de Gilka[3].
Também a imagem que a nossa poetisa pleiteava para a mulher dos seus poemas se compunha
de traços de independência, talvez aqueles mesmos aguardados pelo Modernismo Brasileiro,
para o qual, no dizer de Menotti del Picchia, a mulher deveria surgir como “a Eva
ativa, bela, prática, útil no lar e na rua, dançando o tango e datilografando uma
conta corrente”...[4]
Quando Gilka inicia
o desvelamento do universo feminino e da sensualidade, expondo as carências, as
vicissitudes, os traumas e as paixões da mulher do início do século passado, tanto
ela quanto Hermes Fontes começavam, no dizer de Mário de Andrade, “a abrir desvãos
através dos quais seria possível prever a chegada da primeira revolução literária
que houve no Brasil.” Mas nem por isso Gilka teria sido modernista. Seu comportamento
formal a pende para uma fase de sincretismo literário, de convergência de parnasianismo
e simbolismo, de mélange de movimentos
de fin-de-siècle, para o dito Decadentismo.
Oficialmente, ela pertenceria ao limbo literário conhecido como Pré-Modernismo,
onde também se encontram agregados escritores tão diferenciados entre si quanto
Augusto dos Anjos, Cecília Meireles, Hermes Fontes, Guilherme de Almeida, Humberto
de Campos, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira, por exemplo.
Mas aquando de sua estréia, há, no horizonte literário de Gilka, duas mulheres
que se destacam: Francisca Júlia (1871-1920) e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934),
tidas como precursoras da literatura feminina no Brasil, ambas incluídas (de forma
inaugural) no cânone masculino. Todavia, é fato que nem uma nem outra buscam se
identificar como poetas-mulheres. Francisca Júlia, a quem Gilka vai dedicar o poema
“Ânsia de Azul” (da sua primeira obra), desenvolve uma poesia de índole parnasiana
e impessoal, onde não há traços de gênero. Aliás, o poema que Gilka lhe destina
confirma que ela se dá conta dessa condição de impassibilidade neutral trilhada
pela precursora. E parece-me que o poema de Gilka questiona, em Francisca Júlia,
essa mesma feminilidade interdita, a necessidade de sua alforria, de liberdade de
asas a pairar acima da sociedade. Parece convidar a contemporânea a partilhar consigo
as intempéries dessa determinação de gênero.
O referido poema, todo em versos livres, busca, para a mulher, a condição
de liberdade das aves, e pergunta:
De que vale viver
trazendo,
assim, emparedado o ser? Pensar e, de contínuo, agrilhoar as idéias?
Já a obra de Júlia
Lopes de Almeida, autora de livros infantis e de ensaios didáticos dirigidos às
mulheres, segue o trilho ideológico do feminino enquanto um bem familiar, assumindo-se
como o protótipo requerido pela ordem dominante, o que a restringe à sobrevivência
de um ser dedicado aos outros, cuja missão se esgota aí: no marido e nos filhos.
Mas quanto a tais
posições, o parecer de Gilka não se deixa esperar. Já na sua obra de estréia, há
um poema que esclarece com lucidez que a posição da mulher é absolutamente paradoxal:
é um “infinito curto” para “a larga expansão”. A sua alma foi talhada para a “liberdade”
e para o “amor”, para escalar a “glória” – e, no entanto, a mulher se encontra como
uma “águia inerte”, presa nos “pesados grilhões dos preceitos sociais”.
Observe-se como o
ter asas, ganhar espaços, voar acima das contingências parece uma constante tanto
no poema anterior quanto neste, naquilo que diz respeito ao aparato feminino. O
soneto em pauta, intitulado “Ser mulher...”, é uma profissão de fé, e deplora que
esta, desejando uma alma para compartilhar, buscando “um companheiro”, encontre
apenas “um senhor...”
III. | Em
1910, cinco anos antes do lançamento de Cristais
Partidos, Gilka, então com 17 anos, contraía matrimônio com o poeta, jornalista
e chargista Rodolfo de Melo Machado - sobrenome que vai adotar para si e, através
do qual, tornar-se-á conhecida doravante. Desse casamento, nascerão dois filhos:
Hélio, que falece prematuramente, e Heros, que há de tornar-se importante bailarina
internacional, capa da revista Life em
1941, e atenciosa divulgadora da obra da mãe. Heros também ficará conhecida como
a musa inspiradora de Nelson Rodrigues que, tendo sido leitor assíduo de Gilka,
jamais escondeu o quanto dela recebeu de influência literária.
Mesmo depois do casamento, Gilka, que já trabalhava desde menor- de-idade,
continua a exercer duramente o seu ofício como diarista na Estrada de Ferro Central
do Brasil, ganhando baixíssimo salário. Ocupará o mesmo cargo ainda após as duas
maternidades. E é aqui que topamos com um dos aspectos mais determinantes da existência
prática de Gilka Machado: a carência de dinheiro. A ausência de recursos, a pobreza,
a quase indigência, sobretudo quando enviúva, marcam a sua vida desde a mais remota
infância. E não por acaso, este é um dos temas recorrentes da sua obra poética.
Nascida no Estácio,
na rua da Colina, numa família de artistas (músicos, poetas e atores), Gilka é bisneta
de Francisco Moniz Barreto, o repentista baiano, e neta, pelo lado materno, do violinista
português Francisco Pereira da Costa, radicado no Rio de Janeiro, onde tornou-se
célebre, tendo merecido mesmo, da parte de Luís Delfino, um soneto por ocasião da
sua morte[5].
Filha e sobrinha de atrizes de rádio e teatro, Gilka nutria enorme respeito e amor
por sua mãe (e grande amiga) Thereza Christina Moniz da Costa, a quem dedica, aliás,
o seu livro de estréia.
Thereza foi, ao mesmo
tempo, mãe e mestra de todos os ofícios, transmitindo-lhe toda a sorte de ensinamentos,
visto que Gilka nunca pode gozar de uma educação formal. Para que se saiba, numa
crítica de 1924, estampada na revista carioca Sol Poente, a questão da formação da poetisa surge no crivo de um comentador
desconhecido, à maneira de defesa, o que leva a crer que também este aspecto da
vida de Gilka Machado deveria estar, naquela altura, sendo questionado. E eis aqui
um dos impronunciáveis preconceitos que trabalham desde cedo para detratar a poetisa:
Limitada, por circunstâncias diversas, a uma cultura quase
exclusivamente intuitiva, Gilka não tem tido a auxiliá-la num possível desdobramento
de uma individualidade os recursos maravilhosos de um conhecimento claro da poesia
universal.(...) Não é a construção magnífica que lhe importa – é a afirmação do
seu direito de sentir e de pensar como os impulsos íntimos lho ordenam.
De seu pai, Hortêncio da Gama Souza Melo, ela dirá mais tarde que sabia “apenas
que era culto, bonito, inteligente e boêmio”. A crer nessa defasagem entre a imagem
paterna e ação materna, pode-se concluir a enorme importância emocional e material
que Therezinha deve ter desempenhado na sua vida. De fato, seu lar parece se configurar
como uma morada de ascendência feminina um tanto deslocada para a época, visto que
a mulher que trabalha como artista é quem representa a norma e o eixo familiar.
Como se vê, é a partir do seu berço que Gilka se diferencia grandemente de suas
colegas escritoras, mulheres pertencentes às classes alta e média, coroadas por
uma educação formal, com a qual ela jamais pôde contar.
Além disso, a nossa poetisa enviúva muito
cedo, aos 30 anos, em 1923
-
desenlace fatal que vai dar início à uma interminável fase de grandes dificuldades
econômicas na sua vida.
Logo
em 1924, Gilka trata de, heroicamente, editar a obra póstuma do marido, Divino inferno, à qual acrescenta um prefácio
- “A revelação dos perfumes”. Mas a sua situação prática se complica ainda mais:
no ano seguinte, cansada de mendigar trabalho publicando aqui e ali crônicas ou
poemas, Gilka toma a resolução de cuidar de uma pensão no Rio de Janeiro, ofício
em que vai persistir até o fim. Ela dirá depois que a sua “vida foi passada na cozinha.
Os meus bons versos foram escritos à beira do fogão. Eu tive uma pensão, para não
morrer de fome”![6]
E
acrescento: na altura de sua viuvez, Gilka, de poetisa, se converte em cozinheira,
trabalhando para os poetas simbolistas, seus colegas de profissão, servindo comida
de pensão para Tasso da Silveira e para Andrade Muricy, tornados, então, seus clientes.
Reparo
que, nessas circunstâncias adversas, desloca-se o eixo de suas atividades: Gilka
não é mais nem a colega ou nem musa dos simbolistas: é aquela que, para sobreviver, os serve – e ainda bem que é assim, visto
que os colegas devem ter-se empenhado em solidarizarem-se muito com ela nessa fase!
No entanto, há uma mudança decrescente no grau nos seus relacionamentos literários:
ela torna-se a criada, a empregada, a que tem um pé no fogão...
IV. | Antes,
em 1912, Gilka publicara seus poemas na revista A Faceira, do Rio de Janeiro, dirigida por Carvalhais; a partir de 1918,
participara regularmente da revista Souza
Cruz; em 1922, colaborara em A Maçã,
dirigida por Humberto de Campos, periódico, aliás, que não levava muito a sério
a participação de escritoras nas suas folhas e que se comprazia em criticar jocosamente
a “companheira do homem”, ridicularizando-a com a típica figura da “melindrosa”,
símbolo da modernidade que pouco a pouco ia ocupando espaço nos elegantes salões
que, aliás, Gilka não freqüenta - confinada já então à cozinha.
Na
importante revista literária Festa, fundada
por Andrade Muricy e Tasso da Silveira em 1927 (como se vê, pelos seus dois eméritos
clientes da pensão), apenas Gilka Machado e Cecília Meireles (da ala das colaboradoras
femininas) são mencionadas como pertencentes ao grupo.
No
número 4 da revista, Andrade Muricy, tomando o partido de Gilka, chega a criticar
os editores que consideram o melhor autor apenas aquele mais vendável. E declara
que é por isso que
políticos profissionais com obras de
propaganda figuram como escritores. Por isso, os editores, livreiros, colocam uma
Gilka Machado (cuja obra está, aliás, esgotada), abaixo de poetisas mundanas e elegantes.
Muricy (e o leitor o saberá) conhece e experimenta
as verdadeiras razões que não permitem à Gilka a reedição de seus livros.
Também no número 6 de Festa, Mário
de Andrade comenta que
Na poesia, brilharam até
agora, extraordinariamente, Gilka Machado e Cecília Meireles. Os poemas que publicaram
são positivamente admiráveis a meu ver.
Todavia, tal nota assim entusiástica, datada de março de 1928, soa muito
diferente dos pareceres que ele antes entabulara acerca da nossa poetisa. Segundo
Arthur Saffioti, lê-se, no seu volume pessoal de Cristais Partidos, um comentário bastante pejorativo relativo à dedicatória
do livro, no caso, destinada à Mãe Therezinha. Mário estaria objetando ali, nas
páginas da primeira edição, que:
ainda diz esta senhora que lhe foi a
mãe a melhor das amigas: inimiga, e das piores deveria ter sido, pois que não lhe
ensinou sequer moral. (sic)
Em outros passos de
diferentes poemas, o crítico alega uma e outra coisa, referindo-se ironicamente
à Gilka como a “menina”, muito embora ambos tivessem nascido no mesmo ano. De modo
que ele ora assevera que “todas estas filosofias junqueirescas são ridículas em
poesia”; ora que “ai que a menina tem vida de eremita!”, e assim por diante, sempre em tom jocoso[7]
Todavia, depois daquela
simpática menção de 1928, mais tarde, num artigo de 1939 sobre “Heros Volúsia”,
no Estado de São Paulo, e exaltando os
dotes da grande bailarina que nos representa no estrangeiro, o nosso Modernista
refere-se com justiça à mãe da bailarina como sendo uma
poetisa ilustre, autora dos mais ardentes versos femininos
na nossa língua.
O crítico paulista
parece, pois, ter mudado de opinião a respeito da obra de Gilka e, muito provavelmente,
se apercebido dos preconceitos de que era objeto a escritora carioca, naquela altura
em grande penúria de cabedais.
Em
1928, Gilka teve alguns poemas incluídos na Antologia
feminina de Cândida de Brito, que iria contar com três diferentes edições e
recolhas poéticas. Mas é muito curioso como, da primeira para a terceira edição,
ocorrida em 1937, Gilka Machado vai (digamos) encolher: de poetisa “uma das mais
notáveis”, torna-se apenas uma “mãe de família”, que perde, nessa edição próxima
à publicação de Sublimação, a força da
voz sensual e rebelde, diluída, então, num poema ali inserido, dedicado aos filhos
e intitulado “Helios e Heros”. Digo que tal mutação é notável porque nela se projeta
a mesma metamorfose sofrida em sua obra[8].
Em 1934, Gilka publicara, ainda na revista Festa, um pequeno artigo intitulado “Na manhã de cristal”[9]. Pelos vistos, este cristal aqui nomeado não é mais aquele objeto ruidoso, pronto a fazer
alarde, que o título do seu primeiro livro anunciava. Na verdade, tal texto, editado
então em Sublimação, tece uma espécie
de balanço amargo do próprio percurso poético, um combate entre a energia vital
e a entrega para a morte, poema doloroso onde Gilka constata, falando consigo mesma,
que
Deixaste
escorregar dos dedos tua sorte teu destino de estrela,
e a
vida mata sempre antes da morte os que não sabem vivê-la.
Assim “cativa”, deixou que os outros acreditassem que ela se encontrava “morta”,
de maneira que foi por eles “enterrada viva”.
E a dolorosa questão é posta: - “a presença dos mortos quem suporta?”
V. | Malgrado
tudo, ainda na quadra de 1928, a animosidade difusa que rodeava Gilka acabara por
alcançar até a sua casa-editora, afetando mesmo aqueles que, em princípio, deviam
protegê-la e representá-la, já que controlavam os meios de divulgação do seu trabalho.
Pois não é que são justo esses os que vão abusar da poetisa, provocando arbitrariedades
no interior da sua obra?
A
primeira e a segunda edições, quase seguidas, de Meu Glorioso Pecado, pela Livraria Azevedo/Erbas de Almeida & Cia
Editores, são impressas à revelia do
olhar da poetisa, a quem não são destinadas sequer as provas para correção! Há em
ambas uma profusão de erros tipográficos, de omissão de versos, etc, etc. Para que
se tenha idéia, o título que passa a vigorar para o volume, agora na segunda edição,
deixa na sombra o nome original do livro. Este comparece apenas enquanto mero subtítulo
e, ainda assim, acrescido de um artigo que não há. De maneira que se dá primazia
a um anódino título de “Poemas” à segunda
edição de Meu Glorioso Pecado, muito provavelmente
um recurso cogitado a última hora para apaziguar um tanto a despropositada recepção
da edição inaugural.
Segundo
Nestor Vítor, Gilka só tomou conhecimento dessa edição quando o volume já se encontrava
à venda, o que – sem considerar a inominável falta de respeito ao autor! - a teria
maltratado sobremaneira. E o crítico comenta: “Tem-se de reconhecer, numa terra
em que se comentem barbaridades assim, que ficam impunes”. Considera, então, como
seria possível, a um autor sem dinheiro, “questionar judicialmente a propósito”.
E conclui que tal “displicência” caracterizaria
a fase por que passa nesse momento a poetisa de que venho falando. Isso e
o mais que ocorre justamente a quase quantos têm valor... neste delicioso país[10].
Aliás, Gilka sabe muito bem que não só a ela ocorrem tais disparates e desmandos
de autoritarismo. A ela, que havia escrito precisamente sobre as injustiças sociais,
sobre os miseráveis, sobre os desvalidos, sobre as classes mais baixas, além de
ter tratado de temas da cultura brasileira, como o futebol, por exemplo. No poema
“A uma lavadeira” (que pertence a Mulher Nua),
Gilka dirige o seu “anseio singular” a essa vizinha que mais parece uma “rendeira”,
desfiando sons madrugadores (brancura coalhando o ar noturno), a essa, que torna
claro (mas “sem a força bruta”) o impoluto:
pudesses
tu, leda criatura, lavar minha alma da amargura e pô-la ao sol para secar.
Mas, convenhamos, que ainda bem que, nesta fase negra, nem tudo lhe é adverso!
Em 1930, Henrique Bustamante y Ballivián a inclui, com Guilherme de Almeida, Mário
de Andrade, Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho, num volume de traduções intitulado
9 Poetas Nuevos del Brasil.
Também Gregorin Reynolds, embaixador da Bolívia no Brasil, traduz, em 1932,
os seus versos, publicando-os sob o título de Sonetos y poemas, com prólogo de António Capdeville, em Cochabamba, Bolívia.
Em 1933, a revista O Malho lança
um grande concurso para a escolha da maior poetisa brasileira, e um júri de duzentos
intelectuais, cujo voto era nominal, escolhe Gilka, que vence em grande margem de
maioria.
Ainda em 1933, ela viaja para a Argentina a fim de receber homenagens; em
1941, visita os Estados Unidos; em 1948 vai para a Europa e empreende várias viagens
pelo interior do Brasil. Em 1979, após a publicação de Poesias Completas, ela recebe o prêmio Machado de Assis da Academia
Brasileira de Letras.
Entretanto, Wilson Martins, que está sempre atento aos fatos, não aprecia
tais festejos como celebrações. Ele crê, ao contrário, que apontar Gilka como uma
das maiores, senão como a maior poetisa brasileira, não passava, naquela altura,
apenas de “uma tentativa psicanalítica de reduzir-lhe a importância”, de neutralizar
sua influência, visto que “nem todos os brasileiros estavam preparados para ler,
sem extrapolações falazes, a obra” da poetisa. Deveras, nem era preciso ir mais
longe: Humberto de Campos, que a admirava, considerava seus poemas verdadeiras “tempestades
de carne”...
Wilson a compara a Hermes Fontes, ambos, segundo ele, estimados “talvez pelos
maus motivos”. Os dois poetas “jamais se ajustaram a qualquer das grandes correntes
literárias em curso”, o que significa que acabaram por envelhecer
mais rapidamente e mais irremediavelmente do que os parnasianos
e modernos de estrita obediência.[11]
Também Osório Duque
Estrada, a quem Gilka dedica um poema,
comparece no cenário crítico da época para defender, com a sua autoridade crítica
(e, para além disso, masculina), a reputação da nossa poetisa. Declara ele, em 1937,
que
o país inteiro sabe que, dos poetas aparecidos
nestes últimos trinta anos, ela é, incontestavelmente o maior de todos... No Rio
de Janeiro, a par de grande admiração, o nome glorioso de Gilka Machado tem igualmente
despertado o rancor e o despeito dos seus pequeninos, venenosos e malevolentes rivais.
É odiada e invejada por alguns, que não se pejam de afrontá-la covardemente com
as mais repugnantes e mais nojentas “maldades”.
Gilka nunca deixou de se ressentir dos insultos de que tanto ela quanto sua
família se tornaram alvo. Na entrevista concedida a Nádia Battella Gotlib e a Irma
Ribeiro, um ano antes da sua morte, ela relembra com amargura os desaforos gritados
na rua aos seus filhos, por colegas de escola, cujos pais a consideravam uma “mulher
imoral”. Sublinha também uma caricatura estampada num jornal do Rio de Janeiro em que a ridicularizavam, enfiando-a dentro
de uma saia godê, que se levantava escandalosamente ao vento (à la Marylin Monroe)
- ação ilustrada pela usurpação tendenciosa de um verso do seu soneto “Reflexões”:
“Nasci para o pecado”... Ora, contra-atacava ela indignada, a intenção era claramente
maliciosa, visto que fora do seu contexto - “Nasci para o pecado/ se é pecado, na
Terra, amar o amor” - o verso tomava outra semântica e se tornava deveras capcioso.
Gilka comenta, na
mesma ocasião, que estreara para as letras vencendo um concurso literário. Mas que,
logo depois,
um crítico famoso escrevia que aqueles poemas deveriam
ter sido laborados por uma ´matrona imoral´... Aquela primeira crítica (por que
negar?) surpreendeu-me, machucou-me e manchou o meu destino. Em compensação, imunizou-me
contra a malícia dos adjetivos.
Agora, em 1979, aquando
da entrevista, ela revela que acabara por tomar “enjôo”, não pela poesia, mas pelo
“ambiente” da poesia. Que, ao pé do fogão, ela teria feito muito dos seus poemas.
Que as mulheres da sua época jamais confessavam o que sentiam, e que as poetisas
tinham de ter como defensores homens de algum status e importância, para que pudessem
se manter na ativa. Cecília Meireles, por exemplo, contava sempre com Drummond e
Bandeira, que batalhavam por ela. Quanto a si mesma, escrevera sempre “com o corpo
e a alma. (...) A minha vida está nos meus versos”!
Acerca da situação
econômica das mulheres escritoras, ela assevera que apenas “quem tinha dinheiro,
editava. Eu editei fiado. Conforme fui vendendo o livro, ia pagando.” E admite ter
chegado a dispensar as benesses que o próprio Olavo Bilac lhe oferecera, porque
queria manter-se independente dos homens:
Em 1916, fiz conferência sobre ´A revelação dos perfumes`.
Bilac compareceu. Ele quis fazer o prefácio do meu primeiro livro. E eu recusei.
Ele disse – Por que você recusa? - Recuso porque eu quero aparecer sem defesa, sem
escudo. E com um prefácio seu, todo mundo já está me achando ótima.
De resto, havia ainda
outra pecha: os intelectuais que escreviam sobre a sua obra temiam desagradar a
outras mulheres. E para que se saiba: não só a moral masculina despejava-lhe farpas
e a ofendia - mas também a feminina!
Talvez
por isso mesmo, o olhar crítico que vai se apoderar da obra de Gilka buscará sempre
conciliar o espiritualismo ao sensualismo, puxando a sua poesia ora para um lado,
ora para outro, como a buscar um equilíbrio que variava diante das conjunturas e
dos leitores. Esta é a constante mais incisiva presente na fortuna crítica da nossa
poetisa. Veja-se, por exemplo, o comentário que a revista carioca Terra de Sol faz em 1924:
Não tem a lira da Condessa de Noailles, ou de Ada Negri,
ou de Amália Guglielminetti, mais luminosa vibração que a sua, nem maior volúpia de arrebatamento, nem sonoridades
e ritmos de mais vivo encanto. Gilka é uma alta cantora da embriaguez dos sentidos.
Sua arte é, toda, uma vertigem sensual. (...) Mas nenhuma outra poetisa, entre nós,
feriu tão fundo a nota da exasperação do sentimento amoroso, em que são alma e corpo
um só apelo angustiado.
Na mesma revista, ainda em 1924, Emílio Moura, ao comentar a obra de Gilka,
aproximando-a à do jovem Bilac e a de Dannunzio, conclui que (e é
preciso citá-lo todo), que Gilka se encontra mais perto
de Bilitis[12] do que do que de Desborde-Valmore[13],
essa musa irreverente que surpreende a nossa sensibilidade.
É que lhe falta um pouco de espiritualismo, falta-lhe na obra luminosa, o gesto
que se alonga para o infinito nebuloso, que foge da superfície da terra à procura
do sonho que se eteriliza, na inquietude do espírito; falta-lhe um pouco dessa outra
alma, a que se não desnuda, a não ser para vestir o universo para dar a nossa miséria
uma túnica transfiguradora. São vivas demais as impressões que lhe vêm da vida,
por isso é que essa serenidade da inteligência diante da sensibilidade nunca se
realiza nos seus momentos criadores. Lírica e panteísta, a sua obra é um bailado
voluptuoso, na harmonia de sua alma com a natureza.
Em crônica de 1930, apodando-a de “a maior poetisa brasileira”, Henrique
Pongetti nota que seus poemas, tão luxuriosos, “eram extraordinários por nascerem,
paradoxalmente, de uma solitária enamorada do espírito.”
Péricles Eugênio da Silva Ramos, por sua vez, repara que
a sua ousadia não tinha impureza, mas punha à mostra a
riqueza de seus sentidos, especialmente aquele pouco explorado em poesia, o tato.
Sua sensibilidade é requintada, algo excêntrica, mas profundamente feminina.
E Leal de Souza, ainda em conferência em 1914 sobre cinquenta poetisas brasileiras,
comentava que Gilka possui um voz “cheia de imprevistos acentos nunca dantes escutados”,
acesos na “delicada volúpia” dos seus poemas. Seriam chamas de revoltas “supremas”,
“sociais”, “estéticas”,
sentimentais do coração limitado a um círculo de amor convencional;
revoltas audazes do espírito ébrio e sedento de liberdade!”
Data
de 1977 uma carta de Jorge de Amado a ela.
Os
tempos, agora, eram outros. Gilka, recolhida, morreria três anos depois. E a referida
missiva declara que ele havia tomado conhecimento da vaga aberta na Academia Brasileira
de Letras depois da morte de Cândido Motta Filho, e que, a partir de então, o regimento
passaria a aceitar a eleição de mulheres. De maneira que ele pensara de imediato
nela, porque acreditava que
entre as escritoras brasileiras, nenhuma merece tanto quanto
a cara amiga, pertencer aos quadros da Academia, devido à importância de sua obra
poética, uma das mais belas da língua portuguesa.
E encerrava a missiva,
prometendo que se Gilka viesse a se candidatar, poderia ter certeza de que teria
o voto dele “nos quatro escrutínios”.
Todavia, para Gilka,
era tarde demais. Ela não deixara de se interessar pela vida literária, da qual
abdicara tão precocemente. Ao longo da sua vida de poetisa pioneira, fora hostilizada, tinha se tornado objeto de maledicência,
tinha sido posta à margem por seus pares. De modos que ela agradecia o convite, mas declinava dele.
Portanto, já agora,
perguntemos claramente: afinal quais eram de fato as tais objeções mais contundentes
feitas à poetisa? Quais os impronunciáveis preconceitos que vieram minando a sua
carreira?[14]
VI. | O teor dessacralizante
da sua poesia de mulher sempre fizera espécie. E tanto, que a crítica da época acabara
por tomar como imperiosa a necessidade de separar (compartimentando-a para o público)
a mulher que comparecia nos seus poemas daquela que os produzia. Esta última, a
crer em Humberto de Campos, era “a mais virtuosa das mulheres” e “a mais abnegada
das mães”[15].
Agrippino Grieco,
que louvara em Gilka a ousadia anti-puritana e a ausência de preconceitos, enaltecendo-a
como a “bacante dos trópicos”, também não faz diferente. Para ele, é premente o
ditame de advertir a seus leitores que tais atitudes da poetisa pertencem à esfera
do “domínio da arte”, o que significa que eram mui diversas daquelas que Gilka,
a autora, desempenhava na “vida” real, em que ela se apresentava “modesta e altiva”
[16].
Ora,
na referida entrevista, a própria Gilka se lastimava de que até mesmo as mulheres
reagiam contra ela, ao passo que os homens se compraziam na curiosidade de saber
como seria na intimidade tão “distinta senhora”. E ela não tinha mais ilusões: sabia
que o seu primeiro livro esgotara-se rapidamente apenas porque todo mundo queria
conhecer o “livro imoral” [17].
E, deveras, Agripino concluía que constatara, na poesia de Gilka,
uma
inversão de papéis, apressando-se ela em dizer aos homens, como poetisa, certas
coisas que devia esperar [sic] que eles lhe dissessem primeiro”[o grifo é
meu].
Posição compartilhada por Medeiros e Albuquerque que ressalta que
a situação das mulheres, quando se dispõem a cantar o amor,
é muito mais embaraçosa do que poderia parecer à primeira vista. Os homens têm
o direito [o grifo é meu], não só de aludir ao sentimento amoroso no que nele
há de abstrato, como de descer às minúcias descritivas que nos parecem deliciosas.
(...) Permitir-se-á [o grifo é meu] às mulheres fazer o mesmo? Parece que
não. Até hoje pelo menos não se tem permitido.
Portanto, concluía ele, que seria
impróprio [o
grifo é meu] o elogio do corpo masculino pela mulher, pois parece coisa brutal,
luxuriosa, cínica.
Diante disso, Gilka seria a grande exceção, pois que ela sim, tinha
a coragem de confessar certas inclinações que, em geral,
as poetisas escondem.
Pois bem. Que “inclinações” seriam essas, guardadas a sete chaves pelas restantes
poetisas?
Observo que na obra de Gilka, a condição feminina fica contígua à temática
da simultaneidade de pessoas numa única e mesma mulher. Essa espécie de povoamento
que habita a poetisa torna-se metaforizada, por exemplo, num de seus sonetos, na
relação entre mulher e rajá, flexionada na amada que aguarda o amante, pronta a
lhe oferecer tudo o que ele pretende dela. Diante do amante, tanto sua carne quanto
sua alma se embatem, rivais, pois que a poetisa se sente ao mesmo tempo mulher e
artista, cheia de insólitos requintes, fazendo-se, de propósito, ainda mais imprevista,
o que (aparentemente) torna vitoriosa a sua sedução.
E o referido soneto (que está em Meu
Glorioso Pecado) se encerra assim:
Feitas
de sensações extraordinárias, aguardam-te em meu ser mulheres várias, para teu gozo,
para teu festim.
Serás
como os sultões do velho oriente, só meu, possuindo, simultaneamente, as mulheres
ideais que tenho em mim...
Já num outro poema, Gilka expõe a sua existência de permeio, dando cena a
uma vida desenvolvida num entrelugar de si mesma. Esse ser assim apertado, e que
floresce apenas num intervalo estreito, se manifesta com a inconveniência de uma
“tara”, como um “fantasma”. Todavia, segundo nos revela esse soneto do mesmo livro,
tal mulher espremida, apertada dentro da outra, é aquela que com esta se debate
na cena sexual, protagonizando o outro lado do feminino, pois é ali que, então,
se chocam, face a face, e em litígio, a mulher de carne e a mulher de espírito.
Cito o soneto completo:
A que
buscas em mim, que vive em meio de nós, e nos unindo nos separa,
não
sei bem aonde vai, de onde me veio, trago-a no sangue assim como uma tara.
Dou-te
a carne que sou... mas teu anseio fora possuí-la – a espiritual, a rara,
essa que tem o olhar
ao mundo alheio, essa que tão somente astros encara.
Por
que não sou como as demais mulheres? Sinto que, me possuindo, em mim preferes aquela
que é o meu íntimo avantesma...
E, ó
meu amor, que ciúme dessa estranha, dessa rival que os dias me acompanha, para ruína
gloriosa de mim mesma!
Também os frutos da natureza são metonímias eróticas, como ocorre com o “pêssego”
em “Particularidades...”, pertença de Estados
de Alma.
Digamos que aquilo que se esconde procura permanecer sob a obliqüidade de
um vocabulário parnasiano e preciosístico, empregado na dicção solene do soneto
alexandrino. Todavia, o poema vai trabalhando com os sentidos de maneira sinestésica,
aguçando-os para outro fim que não o que aparenta, e a maciez colhida por Gilka
através do tato, acaba por torná-la extremamente insinuante e felina. Afinal, o
poema atenta para o fato de que ela ama o pêssego pelo que ele tem de sensual: ela
ama nele a “pubescente poma”...
E o soneto parece desembocar no impasse dos quartetos, visto que saborear
a fruta implicaria em destruí-la para o carinho das mãos. Todavia, ao se adentrar
nos tercetos, uma comparação se delineia, ainda que de través. A maciez em pauta
se desloca para os lábios do amado que, todavia, não são tocados pelos seus, mas antes (e pudicamente!) apenas pelo seu olhar acariciante. O prazer, então, se revela
bem bizarro: através da vista, Gilka diz comer o pêssego dos lábios dele, comendo,
pois, o pêssego, tão-somente pelo tato[18].
Toco-a,
palpo-a, acarinho o seu carnal contorno, saboreio-a, num beijo, evitando um ressábio,
como num lento olhar te osculo o lábio morno.
E que prazer o meu!
Que prazer insensato!
– Pela vista comer-te
o pêssego do lábio, e o pêssego comer apenas pelo tacto.
Os exemplos abundam
e são inúmeros os que se manifestam na tênue linha entre o espiritual e o sensual,
onde mesmo o panteísmo e os elementos telúricos (como em uma de suas tópicas, a
da comunhão cósmica) ficam erotizados. O motivo da máscara, do espelho, da divisão
interna; o uso da metonímia, da sinestesia, de um vocabulário conventual; de um
certo orientalismo na reverência imposta à mulher diante do amado - comparecem em sua obra abrindo caminho literário
para uma necessidade de “despersonalização” no exercício do feminino. Ao mesmo tempo,
repare-se como tal atitude poética fica muito perto dos procedimentos modernistas
e da
divisão interna de
um Fernando Pessoa ou de um Mário de Sá-Carneiro.
Gilka sempre nomeia
uma coisa através de outra, à maneira do correlato objetivo de Eliot, num modus operandi em que o erotismo acaba por
se exercer através de (digamos assim) suposta pessoa. Há mesmo, no repertório dela,
um poema sem título que começa por “Lépida e leve” referindo-se à “língua” do seu
amor, que pode muito bem figurar como a referência literária fundante do poema-canção
de Caetano Veloso, tão conhecido e admirado.
De modo que, parece-me,
os “impulsos íntimos”, a “sensualidade exaltada”, a “embriaguez dos sentidos”, a
“vertigem sensual” de Gilka acabaram por semear na sua poesia, segundo os críticos,
uma... (nada mais nada menos!) suspeição moral. “Bacante dos trópicos” é como Agripino
Grieco a chama; “tempestades de carne” é (como já afiancei) a maneira como Humberto
de Campos a identifica; “bailado voluptuoso” é como Emílio Moura cunha sua obra[19].
Mas é por tal viés
que certas cogitações interessadas nos frenesis poéticos de Gilka deságuam, não
por acaso, na sua ancestralidade familiar e na insinuação da sua... tez.
VII. | Poemas
de tal naipe levam Humberto de Campos a tecer este comentário assim tão malicioso,
que faço questão de citá-lo integralmente:
Leal com a sua musa, imaginou a ilustre carioca que poderia
externar em versos, impunemente no Brasil, como Lucie Delarue-Mardus, Marcelline
Desbordes-Valmore ou a condessa de Noialles, todo o ardor de sua mentalidade
de crioula. E foi uma temeridade. Ao ler-lhe as rimas, cheirando a pecado, toda
a gente supôs que estas subiam dos subterrâneos de um temperamento, quando elas,
na realidade, provinham do alto das nuvens de uma bizarra imaginação. [20]
Dito assim, en passant, o leitor
mal se apercebe de um dado de raça que pode ali se incrustar como um preconceito:
Humberto nomeia uma “mentalidade de crioula”. Tal “inocente” e rápida passagem,
no entanto, nos afiança que Gilka Machado era mestiça. Tal dado de realidade parece
estar ali situado apenas para explicitar e sublinhar o ardor com que a nossa poetisa
externava os seus versos. Entretanto, eis aí mais um dos preconceitos impronunciáveis
sobre Gilka Machado.
Para além de mulher, de mulher pobre e sem educação formal, que ostenta nas
mãos os estigmas do trabalho – ela também é uma mulher “de cor”!
A citação é dúbia
e matreira. O crítico parece tomar o partido da poetisa contra os subdesenvolvidos
sátiros da nossa Republiqueta de Banana, quando, na verdade, se compraz em explicitar
o seu preconceito, fortalecido pelo “pecado” e associado aos “subterrâneos de um
temperamento”. Repare-se também que Campos divide Gilka em duas, dilacerando-a:
de um lado, ela é o tal temperamento ardoroso e o sentimento; de outro, a bizarra
imaginação e o pensamento – cisão que, aliás, já vinha percorrendo toda a fortuna
crítica da nossa poetisa, como demonstrei. No entanto, - é de fazer espécie! - as
poetisas francesas citadas se encontram a salvo, fora do seu alcance e suspeita,
e ali comparecem para contrastar com o sub-reptício primitivismo intuitivo (e de
cor) de Gilka: são loiras ou da nobreza francesa.
Assim, embora externem
em versos suas “mentalidades” femininas (certamente a ousadia de Lucie Delarue-Mardrus
lhe fizesse alguma cócega!), ficam, no entanto, impunes, fora da jurisdição de Campos,
visto que só Gilka, dentre elas, é “crioula”. Dentre as três estrangeiras (e é bom
não esquecer) há uma dita “maldita” eleita por Verlaine: a loura Marceline Debordes-Valmore.
E só à luz desta citação
pode-se entender por que Gilka, na referida entrevista à Nádia e à Ilma, nomeia
Humberto de Campos com tanto rancor, asseverando que ele era um inimigo, um difamador.
Deveras, a opinião da sua lavra tem a qualidade de insinuar, para além da mordacidade
contumaz, aquilo que ele (e, quem sabe, a maioria da intelectualidade brasileira
da altura) pensava a respeito dela. Também
o argumento de que a poetisa era uma “artista nata e impetuosa”[21] entra aqui como conseqüência de ser Gilka oriunda
de uma família de artistas, músicos, poetas e atores, enfim, de gente dita “boêmia”.
De maneira que (como
mexerica o ferino Lindolfo Gomes para o comprovado fofoqueiro Humberto de Campos)
ela padeceria “da tara da família”, muito embora fosse menos “vítima” do “sangue
familiar” que do sangue do “marido”. Este a obrigaria [sic] a escrever “aqueles
versos escandalosos”, só para tirar disso [sic] “proveito de empregos e de relações”[22]
E ajunte-se a estas
ferinas suposições um depoimento não menos empenhado de Afrânio Peixoto ao mesmo
Humberto de Campos, datado de 1930, e ver-se-á do que é capaz a maledicência.
Todo
compungido e tocado pela miséria e pela sujeira da escura “alfurja”[23]
onde residia Gilka na Rua da Misericórdia, Afrânio revela a Campos que Gilka não
é “aquela moça branca e vistosa” que se mostra “nos retratos”, mas sim aquela “mulatinha
escura, de chinelos, num vestido caseiro” que lhe aparecera então à porta.[24]
Eis
a citação toda:
Você não imagina a tristeza que senti outro dia. Recebi
de Gilka Machado o pedido de uma parte da minha obra, ou de um fragmento inédito,
para uma antologia que ela estava reunindo. E me deram o seu endereço. Como era
perto daqui, da Câmara, na rua da Misericórdia, e eu tinha a resposta no meu bolso,
decidi ir entregá-la pessoalmente, ou seja, à doméstica ou a quem me recebesse.
Subi uma pequena escada suja e sombria e me adentrei no segundo andar, diante de
uma porta que fecha um corredor escuro. Bati e me apareceu uma pequena mestiça sombria,
em chinelos, com um vestido caseiro. Perguntei se era lá que vivia a Senhora Gilka
Machado.
- Sim, senhor; sou eu mesma – me respondeu a pequena mulata.
Faça gentileza de entrar, doutor...
Eu não entrei. Entreguei a carta me desculpando e parti...
Mas, seu Humberto, que tristeza! Eu não conhecia Gilka, a não ser por retrato: jovem
mulher branca, atraente, chamando atenção... E eu tive pena de a ver nesse pardieiro,onde
tudo respirava à pobreza e quase à miséria.[25]
O desaponto de Afrânio
Peixoto diante da “verdadeira” Gilka Machado e sua comiseração por ela, certamente
fruto da... infinita misericórdia e da piedade do literato, não se sabe se decorre
do flagrante de miséria em que vivia a nossa poetisa ou se da decepção por conhecê-la
(agora) com outra... cor e modos – ou se por ambas as razões!
Diante do que se lê,
seria necessário avaliarmos com prudência e cautela tudo quanto se escreveu sobre
Gilka Machado no seu tempo. Não é improvável que a crítica de época pudesse ter
sido guiada por mais razões do que aquelas que dizem respeito apenas a uma mulher
que escrevesse livremente sobre o seu desejo e de maneira tão extraordinária. Não
teria sido Gilka, como poetisa (como mulher desvalida e sem tutor) também vítima
do odiento crime de preconceito racial?!
Há certamente mais mistérios entre o céu e a terra do que
supõe a nossa vã filosofia!
*****
MARIA LÚCIA DAL FARRA (Brasil). Poeta e ensaísta. Página ilustrada com obras de Vicente do Rego
Monteiro (Brasil), artista convidado desta edição.
*****
Agulha Revista de
Cultura
Número 106 | Janeiro
de 2018
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente
| MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design
| FLORIANO MARTINS
revisão de textos
& difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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[1] Baseio-me no testemunho de Ana Maria Muricy, irmã do crítico
Andrade Muricy, amiga de Gilka. A entrevista foi fornecida a Sylvia Perlingeiro
Paixão, segundo nos informa em “Gilka Machado e a esfera pública”, texto inserido
nos anais do 5º. Seminário Nacional Mulher
e Literatura (org. Constância Lima Duarte). Natal: UFRGN/Editora Universitária,
1996, pp. 63- 69.
[2] Cito o poema, segundo comparece em Cristais Partidos, na edição comemorativa
do centenário de nascimento de Gilka Machado. Poesias Completas (apres. de Eros Volúsia Machado). Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial
Ltda, 1992, p. 83. Todos os restantes poemas enfocados serão também retirados dessa obra.
[3] CASTRO, Ruy. O anjo
pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001. Gilka
é citada às pp. 27-28 e 124.
[4] PICCHIA, Menotti del.
A semana revolucionária (org. Jácomo Mandatto).
Campinas/São Paulo: Pontes, 1992.
[5] Trata-se do soneto
“Naufrágio Irreparável”, constante de Arcos
do Triunfo (Rio de Janeiro, 1940, p. 41).
[6] Entrevista concedida
por Gilka Machado a Ilma Ribeiro e a Nádia Battella Gotlib, em final de 1979, e
transcrita em GOTLIB, Nádia Battella – “Gilka Machado: a mulher e a poesia”. Mulher & Literatura. V Seminário Nacional
(org. Constância Lima Duarte). Natal, Editora da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, 1995, pp. 17-30. Sempre que me referir ao seu testemunho, estou
levando em conta esta precisa entrevista.
Pertencem também a esse volume dois ensaios fundamentais sobre a nossa poetisa.
O de Angélica Soares, “O erotismo poético de Gilka Machado” (às pp. 33-42), e o
da já citada Sylvia Perlingeiro Paixão, “Gilka Machado e a esfera pública” (às pp.
63-69), presentes nas especulações que desenvolvo durante este texto.
Cito também a tese de doutorado de Cleonice Nascimento da Silva, A busca da identidade feminina na poesia de Gilka
Machado e Florbela Espanca (Assis: Unesp, 2003), um dos trabalhos pioneiros,
que comprova como o discurso de ambas trabalha dentro do discurso masculino, escrevendo
o que não pode ser dito e desconstruindo-o, retirando a mulher dos “cárceres da
língua”.
[8] BRITO, Cândida de.
Antologia Feminina. Rio de Janeiro: Edição
de “A Dona de Casa”, 1937, 3ª. ed., p. 18.
[9] Festa. Revista de Arte e Pensamento n.1 (2ª. fase). Rio
de Janeiro, dezembro de 1934, p. 3.
[10] Publicado em O Globo
de 8 de julho de 1928, Rio de Janeiro, num artigo intitulado “Gilka Machado”. Não parece o autor estar
a falar do nosso ilustre Brasil contemporâneo?!
[11] MARTINS, Wilson – História
da Inteligência Brasileira v. VI. São Paulo: Cultrix, 1978, pp. 32-35.
[12]Les Chansons de Bilitis foram
publicadas em 1894, e são produção masculina (como também é o caso das Cartas de Sóror Mariana Alcoforado). Pierre
Louÿs, seu autor (que por anos conseguiu ludibriar até mesmo os críticos) pretende
fazer crer ao leitor que seu trabalho é apenas de tradução da obra de uma poetisa
grega do VI século AC (cuja vida ele busca elucidar), originária de Pamphylie, que
teria vivido em Lesbos (onde tornou-se rival de Sappho) e depois na ilha de Chypre.
Para Bilitis, Louÿs forja até mesmo referências bibliográficas e documentos de um
certo arqueólogo alemão. Trata-se de textos em prosa, inspirados a partir de um
profundo conhecimento da língua e dos escritos poéticos gregos, num estilo simples,
quase ingênuo, mas altamente sensual e de natureza sáfica. As outras canções de
Bilitis, as Secretas, só foram publicadas
depois da morte do seu « tradutor ». Claude Debussy musicou uma adaptação simbolista
de três das Canções e, curiosamente, a
primeira associação lesbiana americana, fundada em 1955, traz o nome de “As filhas
de Bilitis”.
[13] Acerca da relação da poética de Gilka e da de Marceline
Desbordes-Valmore, remeto o leitor ao meu texto «Gilka , a maldita », onde me empenho
em examinar, a partir da concepção de « maudit » em Verlaine (que, aliás, escolhe
como a única mulher “maudite” à Marceline), quais os pontos de contato e de dissonância
entre ambas, e a razão de a crítica nacional tê-las, de alguma maneira, aproximado.
O texto foi publicado em Teresa v. 15. São
Paulo : Universidade de São Paulo, 2014, pp. 117-129.
[14]Uma
poetisa portuguesa, sua contemporânea, também passou por tal suplício de detratações,
bem mais acirradas que aquelas assacadas contra Florbela Espanca. Trata-se de Judith
Teixeira (1880-1959), que teve seu livro Decadência
incinerado em praça pública, em 1923, juntamente com o de Raul Leal e o de António
Botto, defendidos, entretanto, por Fernando Pessoa que, por sua vez, a ignorou.
O episódio em questão ficou conhecido como a “Literatura de Sodoma”, e, sobre tais
aproximações entre Gilka e Judith, busco dar conta em “Gilka Machado e Judith Teixeira:
o maldito no feminino”. Boletim n. 25, ano
XV. Araraquara: UNESP/Centro de Estudos Portugueses Jorge de Sena, dez. 2007,
pp. 157-186.
[15]CAMPOS,
Humberto de - Crítica. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W.M. Jackson, 1945,
2ª ed., p. 400.
[16]GRIECO, Agrippino
– “As poetisas do Segundo Império”. Evolução
da poesia brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947, 3ª ed. rev., p. 93.
[17] Trata-se ainda da citada entrevista.
18 A
tradição de tratamento do pêssego, pela ala feminina de poetas, data, pelo menos,
de Barroco Português. Em Sóror Maria do Céu (1658-1753), na seção dedicada às “Significações
das frutas moralizadas em estilo simples” de Enganos do Bosque (1736), encontra-se o poema “Pêssego guerra”, comparado
ao coração humano, ao qual se terá de vencer para se ter glória. Cf. Antologia da poesia do período barroco (org.
Natália Correia). Lisboa, Moraes Editores, 1982, p. 245. Remeto o leitor para um
texto meu onde abordo tais questões, intitulado “Poesia de mulher em língua portuguesa”.
Abrindo Caminhos. Homenagem a Maria Aparecida
Santilli. São Paulo: Coleção Fia Atlântica n. 02, 2002, pp.337- 353.
[19] MOURA, Emílio. “Poetisas (do “Esfinges” ao “Nunca mais”)”.
Revista Terra de Sol, agosto de 1924,
nº.8 (vol. 3), p. 197.
[20] CAMPOS, Humberto. Crítica.
Opus Cit. p. 400. Os grifos são meus.
[21] Cit. por GÓES, Fernando. “Gilka da Costa Melo Machado”.
Panorama da Poesia Brasileira (O Pré-Modernismo).
Vol. V. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1960, pp. 165-
175.
[22] O verrino comentário,
citado por Humberto de Campos, no seu Diário
Secreto .Vol.II (Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1954, p.63), teria ocorrido
em 4 de junho de 1919, a propósito da publicação de Estados de Alma.
[23]O
leitor estranhará o termo, para o qual há estas acepções do Houaiss: pátio interno
descoberto, destinado a ventilar e iluminar os aposentos de uma casa; rua estreita,
ou
qualquer área, onde se atirava o despejo das casas; monte de detritos, de
objetos velhos ou gastos, sem préstimo; monturo; lugar freqüentado por gente desclassificada;
antro. Dentre todas podemos supor o significado escolhido por Afrânio Peixoto.
[24] Afrânio teria revelado a Campos tais fatos em 18 de agosto
de 1930. Cf. Diário Secreto,
Opus Cit.p. 50.
[25]Cit.
por Mônica Raisa Schpun. “Entre privée et public – partage de genres à São Paulo
dans les années vingt ». Histoire et Societés
de l´Amérique Latina. n. 3. Paris : Paris VII/CNRS, mai 1995, pp. 137-159.
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