segunda-feira, 8 de junho de 2020

JOANA RUAS | O jogo do fogo no amor profano


Ser mais próximo não é tocar: a maior
proximidade está em assumir
o longínquo do outro.

Jean Oury

I, A VISITA DO ANJO

Nesta edição especial da Agulha Revista de Cultura dedicada ao Centenário de Cruzeiro Seixas, para a qual recebi o amável convite de Floriano Martins, para celebrar em Cruzeiro Seixas, o génio que elevou a sua arte à altura da grande poesia, escolhi a obra de Natália Correia, D. João e Julieta. Escrita em finais dos anos cinquenta do século vinte, uma época em que o regime fascista vigente em Portugal, confinando os artistas na vasta prisão da censura, não conteve contudo a grande e perpétua efervescência intelectual dos meios artísticos, surrealistas e outros. Não é meu propósito escrever uma dissertação sobre o mito de Don Juan, mas o de celebrar, no Centenário do eminente surrealista que é Cruzeiro Seixas, uma obra que também mergulha as suas raízes no legado da Revolução Surrealista.
D. João e Julieta é uma peça em três atos que por razões que adiante aduzirei só viria a ser publicada e encenada seis anos depois da morte da autora, em 1999. Na época em que foi escrita, de 1957 a 1958, Cruzeiro Seixas achava-se em Angola para onde partira em 1951, logo após a 1ª Exposição dos Surrealistas, um grupo dissidente do Grupo Surrealista de Lisboa. Nesta Exposição que teve lugar de 18 de Junho a 2 de Julho de 1949 na sala de projeção Pathé-Baby em Lisboa, contou com a participação de Risques Pereira, Mário Cesariny, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Mário Henrique Leiria e de Cruzeiro Seixas.
Em 1958, tendo Natália Correia, entre 5 de Agosto e 25 de Setembro, viajado por Angola e achando-se Cruzeiro Seixas em Luanda, procurei saber se teria havido um encontro entre ambos. Não houve. Segundo me informou o meu amigo Leonel Cosme, escritor e ensaísta e um dos fundadores, em 1960, com Garibaldino de Andrade, da célebre Colecção Imbondeiro [1], na cidade que era então chamada Sá da Bandeira, hoje Lubango, a presença de Natália Correia não foi notada nos meios artísticos da capital, enquanto Cruzeiro Seixas, que trabalhava no Museu de Luanda, fez ali duas ou três exposições na década de 50. Com Alfredo Margarido, também com uma faceta de pintor surrealista, formaram uma espécie de tertúlia no Musseque, em que chegou a participar o jornalista Acácio Barradas. Alfredo Margarido foi expulso de Angola, por causa de artigos críticos do regime.
Alfredo Margarido (1928-2010) que promoveu e apoiou em 1957,a segunda exposição surrealista de Cruzeiro Seixas em Luanda, viria a referir, nos Quaderni Portoghesi, no artigo Surrealismo in Colonia, a estranheza com que em Angola foi recebida, nos meios policiais, a dita tertúlia: A nossa presença naquela zona era já um sintoma de uma osmose profunda entre surrealistas e africanos: uma relação preferencial que teria de ser perentoriamente condenada.
Cruzeiro Seixas, que se manteve em Luanda apesar da guerra, prosseguiu a sua atividade de osmose, não já entre surrealistas e africanos, mas entre surrealistas e angolanos, como podemos observar através das notícias veiculadas pelo Semanário Ilustrado Notícia, de Luanda. Em 1962, neste Semanário, na rubrica Pessoas e Coisas, Ernesto Lara (Filho), irmão da célebre poetisa angolana Alda Lara, refere O´Neill, Stau Monteiro e Cruzeiro Seixas. Em 1963, o mesmo Semanário dá relevo à Exposição de 200 trabalhos de 48 artistas em Luanda, achando-se entre os artistas Cruzeiro Seixas, Luandino Vieira e Neves de Sousa.
Maria José Oliveira, a mãe de Natália Correia morreu no Brasil em 1957. Tendo entrado em grande depressão, Manuel de Lima, considerando que o momento alto do surrealismo não se manifestou através da poesia mas através da pintura com Picabia, Picasso, Duchamp e Max Ernst, o inventor da colagem, aconselhou Natália de Oliveira Correia, com quem mantinha desde 1952 uma parceria bastante intensa, pois haviam escrito em conjunto a peça Sucubina ou a Teoria do Chapéu, a fazer o luto através da sua iniciação à pintura. Na sua aproximação à pintura, Natália Correia foi influenciada pela obra pictórica de Mário Cesariny. Nessa altura reuniam-se na casa de Natália Correia, na rua Rodrigo Sampaio, para trabalharem, trocarem ideias e informações, Mário Cesariny, Luiz Pacheco e Manuel de Lima. Ao escritor Fernando Dacosta, seu amigo e confidente, a poetisa, recordando esse tempo, confessaria: Pintei como terapêutica. Ferida nessa altura, pela notícia da morte da minha mãe, que estava no Brasil, agarrei-me, rangendo de dor, aos pincéis e fechei-me num quarto durante um ano. Nesse quarto, simultaneamente, escreveu Natália Correia, D. João e Julieta, obra concebida no contexto de uma sensibilidade ferida pela morte da mãe e apta à reflexão filosófica, que, recusando a fantasia, apelava para a imaginação que discerne as relações íntimas das coisas, as suas correspondências e as suas analogias.
O Grupo Surrealista de Lisboa, que entre 1948-49 foi o ponto de partida da ação poética surrealista em Portugal, tendo efetuado a sua primeira exposição em Lisboa em Janeiro de 1948, só aparece na imprensa a 4 de Agosto desse ano, no Diário de Lisboa. A notícia vincula o grupo a um dos seus primeiros textos produzidos a propósito de Gomes Leal (1848/1921). Nessa notícia, Gomes Leal é apresentado como menino tonto com bigodes e cravo na botoeira. Esta apresentação de um poeta de culto provocou uma viva indignação e foi à volta do poeta de Claridades do Sul que um grupo de intelectuais se afirmaram pela dissidência, surrealistas. Mário Cesariny, já afastado do Grupo Surrealista de Lisboa, refere, na antologia A Intervenção Surrealista, publicada em 1966 em Lisboa pela Ulisseia, os pontos de apoio do novo bloco surrealista e, tal como Breton havia feito ao classificar Chateaubriand de surrealista no exotismo, entre as motivações alegadas para a dissidência registou as alucinações de Raúl Brandão, Gomes Leal e Ângelo de Lima. Também nos Prolegómenos ao Aparecimento de Dada e do Surrealismo, Mário Cesariny inscreve Pessoa, Almada e Sá-Carneiro. Daí em diante, também Natália Correia e Herberto Helder arrolaram autores antigos em obras de cariz surrealista, escolhendo as que escaparam à tradição devido à liberdade desconcertante dos seus autores. Natália Correia que dominava pela polémica e pelo debate que suscitava devido à sua intervenção na pacata vida social portuguesa, em 1958, na sua obra Poesia de Arte e Realismo Poético, perante os novos horizontes então descortinados pelo acento posto pela psicanálise na palavra, assim como o facto de Freud e Jung terem interrogado textos de Goethe Shakespeare, defende os princípios teorizados por André Breton.
Em As Palavras e as Coisas, Michel Foucault, referindo o labor de Nietzsche, o primeiro a efetuar uma reflexão radical sobre a linguagem em Genealogia da Moral, afirma que Nietzsche, perante a questão posta pela filosofia quem fala?, recebe a resposta de Mallarmé, a própria linguagem. A revolta romântica contra um discurso imobilizado na sua cerimónia, encontra pois a descoberta mallarmiana do imperioso e selvagem ser das palavras. Em França, nos anos que precederam a Primeira Guerra Mundial, a poesia francesa tinha entrado numa fase de renascimento e renovação em que jovens poetas se agrupavam à volta de Mallarmé e, sobretudo, de Apollinaire, enquanto representantes da poesia moderna devido à criação de um estilo literário novo.
Embora Champs Magnétiques de André Breton e Philippe Soupault, obra publicada em 1920, seja considerada a fonte do surrealismo, foi Apollinaire quem primeiro empregou, na revista L’ Intransigent, a palavra surrealista. Também a revista Nord-Sud, criada em Março de 1917 por Reverdy, se afirma portadora de um espírito poético novo sob a égide de Apollinaire. André Breton que era um poeta simbolista, influenciado por Apollinaire e pela pintura de Gustave Moreau, rompeu com os simbolistas através da escrita automática posta em prática por Pierre Janet. Guillaume Apollinaire, autor de uma vasta obra, tendo sido considerado apátrida, naturalizou-se francês através da sua incorporação no exército francês, tendo sido ferido na cabeça na Primeira Guerra Mundial. Foi através de Apollinaire que Soupault conheceu André Breton no café Flore.
Segundo Philippe Soupault, há uma diferença entre dadaísmo e surrealismo, esclarecendo que os dadaístas tinham necessidade de uma negação total dos valores da época enquanto o surrealismo dava o passo no sentido da libertação e representava uma abertura para o exterior. Devido a esse sentido da libertação, Paul Eluard foi um dos primeiros a afastar-se do Dadaísmo. Em Portugal, Rui-Mário Gonçalves sustenta que foi Mário Cesariny quem desde 1947, no seu comportamento pessoal e na sua prática picto-poética foi espontaneamente dadaísta. Escrever sem preconceitos e num estilo despido dos seus tabus e ouropéis literários representava uma conquista do irracional, conquista feita em comum e a par da emancipação social coletiva. Se entre os que se revindicavam do Surrealismo como acontecia com António Maria Lisboa, um dos seus autores mais representativos, se cumpria a missão desse movimento de despertar no homem a necessidade do maravilhoso que lhe foi sonegado pelas forças conjugadas do teísmo e do racionalismo, Natália Correia e Herberto Helder, intuindo cedo a singularidade própria e a necessidade de se isolarem das inúmeras correntes intelectuais e artísticas, para não se deixarem conduzir por elas, isolaram-se. A obra de Herberto Helder vai inclinar-se para o projeto de produzir, através do abandono à inspiração, fragmentos poéticos cuja decifração fará aparecer, enfim liberto, o ouro do pensamento. Herberto Helder vai seguir um percurso único nas letras portuguesas. Herberto Helder era o poeta que todo o candidato a poeta se empenhava em copiar o estilo e cuja resistência às convenções e às demissões próprias da vida social eram sem falha. Fiel à sua musa, não fez do seu dom uma carreira mas um destino, recusando, segundo a ética surrealista, o Prémio Camões. É conhecido o conflito que surgiu entre os surrealistas e Max Ernst por este ter aceitado um Prémio em Veneza.
Natália Correia, na antologia publicada em 1973 pela Europa América, O Surrealismo na Poesia Portuguesa, inclui vários antepassados literários como Gomes Leal e Teixeira de Pascoaes entre outros e defende o seu critério arguindo que se trata de poetas cuja obra é anteriormente rasgada pelos relâmpagos de uma topologia surrealista. Também em Edoi Lelia Doura: antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa, publicada em 1985 pela Assírio & Alvim, Herberto Helder usa a expressão do românico-árabe Edoi Lelia Doura, tirada da Cantiga de Pedro Eanes Solaz (século XIII), e integra nessa antologia, autores clássicos, e evocando, na sua já vasta obra,a esquizofrenia através da desorganização da linguagem chamada pelos psiquiatras de esquizofasia ou giriofasia. Contudo, é Teixeira de Pascoaes quem vai congregar o interesse de Mário Cesariny, Natália Correia, Herberto Helder, Cruzeiro Seixas e Alfredo Margarido.
Natália Correia manifestou-me muitas vezes a vontade de rever a escrita de D. João e Julieta, obra de que li alguns rascunhos e que inicialmente intitulou D. João e o Espectro de Julieta. Simultaneamente atraída pela poesia e pelas aguarelas de Teixeira de Pascoaes, foi numa das viagens que fizemos a Amarante que percebi que D. João e Julieta era uma obra charneira na evolução da sua linguagem artística. Uma das viagens que fizemos a propósito de uma exposição da obra de Amadeo Souza-Cardoso patente no Museu Municipal que tem o seu nome, foi por altura das Festas a S. Gonçalo que se realizam todos os anos na primeira semana de Junho. Sempre que lá íamos era da varanda da casa da irmã de Teixeira de Pascoaes, a poetisa Maria da Glória Teixeira de Vasconcelos (1881-1980), que víamos o fogo de artifício, momento considerado solene em que o céu era um teatro onde o fogo era o principal personagem. Maria da Glória contou-me, sorrindo, que em casa de Pascoaes andavam todos de lápis e papel na mão de tal modo esse supérfluo que é a poesia se tinha tornado vital para toda a família, uma vez contagiados pelo afã apaixonado que irradiava do poeta. Em memória desse tempo feliz brindou-me com o seu livro de poemas Horas de Deus e com o livro Sempre, de Teixeira de Pascoaes numa edição de 1923 da Lvmen.
Por iniciativa de Mário Cesariny que visitava assiduamente a casa de Pascoaes e de Natália Correia que nessa altura era a responsável literária da Editora Estúdios Cor, cujo editor era o escritor Romeu de Melo, em 1971, a convite de João Vasconcelos, sobrinho e afilhado do poeta, partimos para Gatão no volkswagen carocha de Natália Correia. Na Casa de Pascoaes fomos recebidos por João Vasconcelos e Maria Amélia que nos ofereceram de jantar. Mário Cesariny dormiu no quarto de Pascoaes enquanto eu e Natália Correia ficámos numa pensão em Amarante, aonde nos dias a seguir, Mário Cesariny se nos juntava no restaurante Zé da Calçada, situado num aprazível à beira do Tâmega. Foram dias muito tensos e ricos em que Mário Cesariny nos contou muitos episódios da sua difícil vida em Paris, os seus encontros com Breton, louvando o espírito que preside à viagem com a sua jovial liberdade que viria a saudar no expressivo título de uma obra: A primavera autónoma das estradas.
Alfredo de Madureira Castro, sobrinho de Alfredo Machado, o marido de Natália Correia que estava no Porto e a traduzir para a editora Estúdios Cor, Aurélia de Gérard de Nerval, fez-nos uma visita em Amarante. O livro viria a ser publicado em 1972. Depois de Alfredo de Madureira Castro partir, Aurélia proporcionou-nos algumas reflexões. Aurélia foi por muitos considerada uma obra prima não apenas do romantismo francês nas igualmente do romantismo alemão cujos autores partilhavam com Gérard de Nerval a convicção de que: O sonho é uma segunda vida. Eu não consegui atravessar, sem tremer, as portas de marfim ou corno que nos separam do mundo invisível. Coube ao cineasta dinamarquês, Carl Dreyer, realizar numa obra a travessia desse limiar, em A Palavra (Ordet). Este filme em que pela palavra se traz à vida um corpo morto, mereceu um texto de José Régio, considerado quer por Cesariny quer por Natália Correia, controverso.
No seu romance A Madona, Natália Correia afirma que na sociedade portuguesa, durante o Estado Novo, as mulheres abriam caminho entre mortos. Natália Correia teve a vida dura durante os longos anos da ditadura. Depois de séculos de aparente sono e de compressão hipócrita e paciente da mulher, em Natália Correia há a reivindicação de uma palavra de mulher inflexível contra a camisola de força com que os meios burgueses e o regime nos manietavam. Eram tempos em que para se ser escritora era preciso ser-se excecional, essa exceção exigia, não apenas capacidade de assombro mas, sobretudo, de deceção. Reservada sobre tudo o que se referia à sua vida pessoal, a sua vida tendia a confundir-se com a sua obra, Natália Correia carregava o seu destino de poeta com enorme esforço e sentido da responsabilidade em preservar o dom da poesia que a habitava, dom que considerava sagrado como nas primeiras idades do mundo em que se reconhecia no poeta, o vate. Crente que a sua verdade só a palavra a revelaria, mas sabendo, contudo, que muitas vezes não se obtém da vida essa resposta, peregrinava demandando aos poemas e prosas a resposta à sua pergunta quem sou eu? Dotada de uma extraordinária beleza física, dedicava muita da sua energia na edificação da sua estátua interior. Daí o seu combate, o seu corpo a corpo com o mundo através das palavras e dos atos sempre norteados pela rigorosa moral da lealdade. A sua estátua interior edificava-se no espaço do aberto, no sentido que lhes foi dado pelos românticos alemães como Hölderlin e também Schiller nas suas Cartas sobre a Educação Estética do Homem, em que defendem que o belo transforme a propriedade das academias num bem comum a toda a humanidade. Também Rilke concebia o aberto como a revelação da vida que aspira viver entre o dia e o sonho. Excecional, Natália Correia buscava o excecional nela e à volta dela e desse excesso lhe vinha o fulgor da presença e a criação da obra. A presença de Natália Correia impunha-se, fascinava o olhar direto com que nos fixava com os olhos brilhantes assim como a voz bem modulada com que nos falava. A sua presença estabilizava o mundo em seu redor pois emanava dela um poder que num tributo à beleza e á força que incutia, ao reconhecê-lo, cada um dos seus interlocutores se tornava no seu cúmplice. O seu convívio era uma forma de socialização pela aceitação da diferença e pelo direito à rebeldia. O que me impressionava em Natália Correia era a sua obediência a um dom que lhe proporcionava a suprema alegria de pensar por si mesma. Também colhi no seu convívio a noção de que o dom não é reciprocidade mas transmissão. Nessa viagem que se tornou para mim iniciática, senti que estava a nascer da sua imensa coragem.
Nessa longa e penosa deriva pelo direito ao ofício da palavra e da escritura em que muitos fracassam, estava a mãe de Natália, Maria José Oliveira, autora de poemas e livros roubados à sua fadiga, pois depois que em 1929 o casal se separou, apenas do seu rendimento como professora dependia o seu lar com as suas duas filhas, Natália e Carmen, dois anos mais velha. Maria José Oliveira que educou as filhas no sentido do belo, do bem e da liberdade, era aquela que nas palavras da filha só na morte descobriu que era poeta. Em 1958, Natália Correia ainda dilacerada pela morte da mãe e pelo seu destino, ainda incerto, de poetisa, escreveu Êxodo, um poema do livro Passaporte. Passaporte é um livro marcado pela ideia de identidade num momento de incerteza. Publicado em edição de autor, Natália Correia sentia moldada a sua vida pelos acasos da vida da sua mãe, uma vez que como poetisa partia na vida sem saber aonde a viagem a levava, a que destino iria chegar. Como a personagem de Julieta da sua peça D. João e Julieta, Natália Correia vivia uma vida-na-morte, um estado próximo da não identidade. Eis o poema Êxodo: A minha mãe, percebo agora, era uma hortência / Ando metida nesse vestido cor de lilás / É uma aragem a pedir-me uma aparência / Como uma lua que me empurra por detrás. / Sou o contorno duma gaivota que não me lembra / Fiquei assim porque a cidade não era esta / Houve um sabá no dia 13 de Setembro: / Trago as pégadas onde devia trazer a testa. / Vou ao cinema de braço dado com um ectoplasma / A minha mãe é o elemento que o completa. / Sou um pião a girar por um fantasma / Que só na morte descobriu que era poeta.
Poucas pausas nos eram permitidas nesses dias e noites em que Teixeira de Pascoaes presidia aos nossos dias na terra que louvou nos versos: Sem esta terra funda e fundo rio, / Que ergue as asas e sobe, em claro voo / Sem estes ermos montes e arvoredos, / Eu não era o que sou.
Depois do almoço, já na Casa de Pascoaes, recordo que ao ver as aguarelas de Teixeira de Pascoaes me emocionei com o desenho do morto e o seu fantasma que ri, com o pudor das figuras femininas de Eusébia e Lucrécia, e com as figuras populares que na sua singeleza e pecaminosa inocência, quais personagens bíblicas desenhadas por William Blake, têm as labaredas por asas, enquanto noutras aguarelas nos surpreendíamos com o roxo das torgas agasalhando o Marão do frio da primavera e com o amarelo dos giestais cobrindo os montes calvos no estio. Mas sobretudo, com a enigmática figura do tolo da aldeia que nos lembrava a personagem de Johannes,o místico do filme de Dreyer ao dizer à defunta: Escuta-me tu que estás morta.
Para a viagem de regresso decidimo-nos pela bela estrada do Marão que no dizer de Orlando Ribeiro na sua obra Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, a bela estrada do Marão, além de Amarante, permite perceber um pouco um contraste brutal: de um lado o Minho viçoso, do outro Trás-os-Montes, na grandeza austera dos seus planaltos ondulados, dos campos amarelos e cinzentos, despidos e imensos. Percorrendo a bela e sinuosa estrada, fomos surpreendidos por chuva intensa e ventos ciclónicos que quase nos atiraram por uma ribanceira abaixo. Íamos devagar, mas num ápice, apesar da cautelosa travagem, fomos deslizando para a beira do precipício até que o carro se imobilizou encostando-se ao tronco de uma solitária árvore. Tínhamos a respiração suspensa. Cesariny que ia no banco detrás era o único que podia sair do carro. Sem pronunciarmos uma única palavra cada um de nós percebeu que não podíamos sair do volkswagen sem provocar o desequilíbrio que nos precipitaria pela ribanceira abaixo que apesar da chuva intensa se deixava adivinhar funda e escarpada.
O meu lado era o do abismo, sem ramo acolhedor ou terra pisável a que me apoiar. Ao volante, Natália Correia dificilmente poderia sair pois a porta não se deixava abrir completamente e escassa terra lhe serviria de apoio ao pé. Pela vidraça apenas víamos a espessa cortina de chuva tombando e o delgado tronco da gentil árvore que nos segurava sobre o abismo. Nenhuma porta se abriu, nenhuma palavra ou suspiro feriram o silêncio expectante de cada um de nós. Tudo à nossa volta estava em estado de suspensão e apenas chegava aos nossos ouvidos a música que o vento tangia nas cordas da harpa da chuva. Quando finalmente fomos sugados do abismo por uma corda salvadora pudemos olhar uns para os outros e respirar livremente. Depois que os salvadores que o acaso nos enviou partiram, corremos para ver a árvore que nos sustivera. Era a árvore um ser que persistira em existir à beira do precipício fincando as magras e salientes raízes no terreno rochoso. Foi a visita do Anjo na pessoa desta árvore, comentou Natália Correia.
Seguimos então viagem em cautelosa marcha e eis que já livres da chuva, à entrada de uma cidade, deparámos com uma larga estrada coberta de flores onde uma revoada de anjos de alvas asas caminhavam a passo entoavam cantos celestiais.
— Jazeremos nós, mortos, no fundo do barranco, e estaremos agora à porta do paraíso? Seremos nós, aqui, a face que ri dos mortos que somos, tal como os desenhou Pascoaes? disse Mário Cesariny num tom em que não distinguimos a ironia ou o alívio.
—Felizmente não estamos no céu, mas em Lamego, respondeu Natália Correia entre séria e divertida.
Estacionámos e fomos a uma pastelaria acalmar o que restava do susto. Quando por fim chegámos a Lisboa e deixámos Mário Cesariny na sua morada na Columbano Bordalo Pinheiro, Natália Correia confessou-me:—Esperava a todo o momento que Cesariny tivesse um ataque de pânico e saísse. O seu peso mantinha o carro. Estava cheio de Pascoaes e foi isso que nos salvou. Como Pascoaes todos acreditamos em fantasmas.
O fruto dessas visitas de Mário Cesariny à casa de Gatão e à obra de Teixeira de Pascoaes veio a acontecer no ano seguinte com a publicação, em edição dos autores, de duas antologias: Aforismos com ilustrações de João de Vasconcelos e Poesia de Teixeira de Pascoaes. Também nessa viagem memorável em que Mário Cesariny e Natália Correia reviveram esses longínquos anos da década de 50, com eles voltaram as memórias sobre a opção pela pintura por parte de Mário Cesariny e a sua influência em Natália Correia. Rui Mário Gonçalves diria a respeito da opção de Cesariny pela pintura a partir dos anos 50: O seu vanguardismo na expressão plástica influenciou a sua expressão verbal e não o contrário. Em 1972, numa entrevista à televisão, Mário Cesariny declarou: Desde a minha adesão ao Surrealismo em 1947 e ao contrário do que a alguns possa aparecer, foi a despintura a pintura que me ajudou a desregrar e a desmembrar a linguagem que a partir daí pratiquei nos meus versos.
Compreendi então, ao ouvi-los, que numa adesão ao longo e obscuro caminho da palavra desde a carne à linguagem, ao contrário de Cesariny, o nexo escrita/pintura foi abandonado por Natália Correia com a obra dramática D. João e Julieta. Se os caminhos de ambos divergiram, durante todos esses anos mantiveram-se, contudo, sempre fiéis um ao outro e a uma casa comum: a Casa de Pascoaes.

II, FAZER O MARAVILHOSO

Natália Correia, na antologia O Surrealismo na Poesia Portuguesa, publicada pela Europa América em 1973, no capítulo As Interpretações Delirantes, refere a incursão no abismo dos estados alucinatórios que levaram Breton e Eluard à escrita de L’Immaculée Conception, mas pondo sobretudo a ênfase na fórmula de Henri Ey em que enquanto o alienado é maravilhoso, o artista faz o maravilhoso. Frantz Fanon, quando nos seus Écrits Psychiatriques, encarou a doença mental como uma patologia da liberdade, corroborou a tese já defendida por Henri Ey na sua conferência La Psychiatrie devant le surréalisme. A fundação Henri Ey deu um resumo do texto desta conferência, do qual extraí algumas linhas condutoras. Na primeira parte o resumo refere que a experiência do surrealismo interroga a psiquiatria sobre o problema do valor, do sentido e dos limites da loucura, detendo-se também Henri Ey em explanações sobre as obras de Breton, Dali, Éluard, Aragon e Duchamp entre outros, assim como sobre os trabalhos de critica de M. Nadeau e M. Blanchot. Na segunda parte desse resumo, Henri Ey examina a produção psicopatológica, essencialmente do esquizofrénico e aborda o processo criativo a partir da questão da distancia existente entre o criador e a sua obra, nestes termos: fará o artista obra de arte ou será ele próprio, foco estético? A propósito desta controversa questão, num daqueles lampejos de intuição que o caracterizavam, Dalí teria respondido: Eu estou louco, salvo num ponto, é que não sou louco. Foi a partir desta frase de Dali que o surrealismo deixou de ser um objeto da Psiquiatria. Finalmente, na terceira parte, na sua tentativa de separar as águas, Henri Ey retoma a questão das relações da arte, do surrealismo e da loucura, assinalando que não existe diferença entre a produção surrealista e a estética da loucura. Apenas a produção inerente ao delírio não faz obra de arte, sendo em si mesmo, objeto de arte.
Herberto Helder, num tributo à avalanche de materiais brutos, vivificantes como o sangue e regeneradores como o oxigénio que os seus desenhos transportam, dedicou a Cruzeiro Seixas o seu livro Flash publicado em edição de autor em 1980. Flash é uma obra em que o poeta, reconhecendo-se visceralmente um animal de Deus, pede à sua arte e ofício: que tenha Deus um sonho em carne viva. A dedicatória deixa perceber que para Herberto Helder, o conceito surrealista de homem completo tinha em Cruzeiro Seixas o seu paradigma enquanto foco estético de que fala Henry Ey, e, na linguagem do poeta, enquanto corpo da criação que nele se origina.
D. João e Julieta não é uma entre as muitas versões do personagem de Tirso de Molina. D. João e Julieta, sendo a história de uma sedução não é uma história de amor. Na medida em que as obras dramáticas mobilizam as emoções intensas, Racine prescrevia-as para o teatro, e podendo também, enquanto encenações filosóficas de um teatro de ideias, metamorfosearem-se em experiências vividas, para Natália Correia, nesta fase da sua vida pessoal, esta obra, reunindo o luto, o belo e a dor, surge marcada pela atração do abismo, pela melancolia e pelo belo tenebroso. A ideia principal à volta da qual gira a obra é em absoluto original: a da criação de um belo novo como uma necessidade irresistível do aperfeiçoamento humano, não sabendo revestir senão a busca apaixonada e vertiginosa do fundo primitivo e eterno do ser. D. João e Julieta é uma alegoria da criação artística, uma alegoria do fazer maravilhoso. É o belo que atrai D. João para Julieta, como é o belo, essa exceção na vida humana, que faz com que o poeta faça o maravilhoso. O maravilhoso, contudo, não o é sem que alguém o veja.
A ação da peça D. João e Julieta que muitos consideram como avatar da obra simbolista de António Patrício (1878-1930), D. João e a Máscara, decorre em Portugal, junto ao mar, no Solar de Palmeira onde D. João dá um baile de máscaras para os seus inúmeros convidados. É a esse baile de máscaras, onde os personagens como convidados evoluem em cena, a esse espaço onde se recria a alegoria do teatro do mundo que chega, fugida do manicómio, a jovem Julieta. D. João Palmeira, recém chegado de Paris, gaba-se perante os seus convidados de que cinquenta por cento das pessoas que se suicidaram no Sena o tinham feito por sua causa. E vangloria-se de ter arrancado essas vitimas a uma vida rotineira e sem paixão proporcionando-lhes a breve e ilusória mas suprema embriaguez da paixão. D. João considera-se ainda o único aristocrata presente no baile na medida em que, segundo o seu critério, se assume como criador de cultura e de valores. E é por ser um aristocrata que a sua consciência da superioridade apenas o torna responsável perante si mesmo e não perante os outros. De si mesmo diz: O homem superior é o que convive consigo próprio e que prepara o seu mundo íntimo para a nobreza desse encontro leal. Seja ele um monstro ou um santo.
Através de D. João, para quem a máscara é uma solução de sociabilidade de toda a ordem, ela é o símbolo da cobardia do ser…, a autora exprime o modo como a máscara é ambivalente. Para uns representa uma proteção da identidade enquanto para outros é uma forma de revelar a pessoa real num espaço público onde desfilam identidades camufladas. Para outros, ainda, a máscara representa a vida de alguém dilacerado entre o desejo de se entregar e o desejo de se esconder. Note-se que entre os dadaístas era habitual o uso de máscaras. No Cabaret Voltaire, em Zurique, sob a direção, em 1915, de Tristan Tzara, para os que se manifestavam contra a guerra e o sistema cultural e social vigente, as máscaras protegiam, naqueles tempos difíceis, os que sofriam com o sentimento da sua fragilidade e incapacidade de autonomia ontológica. É através da máscara que Julieta escapa aos enfermeiros que a procuram, vestidos com as suas batas brancas, no Solar de Palmeira.
Ao contrário do personagem andaluz da ficção seiscentista, Natália Correia apresenta-nos um D. João português que almeja entregar-se ao amor de uma só mulher, e volver-se, de sedutor a seduzido. Acaso não se tornara sedutor por estar certo de não ser amado? E tendo sempre recusado acreditar no amor que lhe tinham as suas vitimas, naquele baile, não havendo mulher alguma capaz de lhe fornecer a prova que em vão procura para curar a sua antiga ferida, interpela as mulheres ali presentes, suas antigas amantes: Acaso alguma de vocês me soube reter ou mostrar-me o verdadeiro rosto do amor? Neste ambiente trivial e sem estímulos, D. João, altivo e aborrecido, sem chama porque sem esperança, ouve uma voz feminina que o chama, voz que pertence a uma mulher que traz um vestido branco, vaporoso, e o rosto velado por uma mascarilha que lhe anuncia:— A minha presença é a resposta ao apelo da tua alma cansada de me procurar.
É possível que sejas um novo fantasma da minha loucura. Eu tenho o poder de criar os fantasmas que me deleitam. E tu és sem dúvida o mais sedutor que a minha imaginação concebeu — responde-lhe D. João.
É a tua alma que eu venho buscar… o teu corpo envileceu-se para revelar-te a nitidez da tua alma. Isso a que chamas degradação foi a obscura vigília deste momento absoluto — prossegue Julieta.
Maria do Carmo Silva observa que em D. João e a Máscara, de António Patrício, os conflitos íntimos são expostos através da digladiação verbal, de modo que as personagens vivem insuladas na linguagem. Insulados na linguagem estão também D. João e Julieta, duas vozes, dois corpos. Nos anos 30, Jacques Lacan frequentava assiduamente os surrealistas. É desse tempo a inscrição nas paredes de Sainte-Anne da sua frase: Não é louco quem quer. Na Psicanálise, a questão do corpo colocou-se através do sintoma histérico considerado uma patologia. Em 1928, altura em que celebraram o Cinquentenário da Histeria, os surrealistas, entre os quais ainda se achava Aragon, recusaram que fosse considerada como uma patologia vendo nela, pelo contrário, uma suprema forma de expressão. Jacques Lacan, no Seminário que realizou entre 1975 e 1976, O Sinthoma, numa exposição em torno da obra de James Joyce, afirma: As pulsões são o eco, no corpo, do facto de que há um dizer. Esse dizer, para que ressoe, é preciso que o corpo seja sensível. Segundo a hipótese lacaniana, como ser falante, o organismo animal torna-se um corpo sintomático e pulsional razão porque o corpo é um efeito da linguagem. A natureza dá-nos um organismo e o discurso, um corpo. É também de Jacques Lacan a sentença: O real é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente.
Ao contrário de Hamlet que segundo Nietzsche falava muito mais superficialmente do que agia, o D. João de Natália Correia, impelido pelo invencível hábito de uma presença tornada necessária ao seu desejo, vai sendo arrastado pela voz de Julieta e, à medida que progride no reino do absoluto, dá-se a desagregação da sua individuação, isto é, dá-se a perda da consciência de uma personalidade própria e distinta dos demais. Se Julieta deve o seu nome a Shakespeare, a Julieta de Natália Correia é uma mulher cujo destino estava inscrito na sua constituição mental. Fugida do manicómio, numa época em que se falava de glamour, de estrelas de cinema como Marilyn Monroe, Lana Turner e Elisabeth Taylor e se usavam vestidos estampados florais ou abstratos com decotes fundos, Julieta vestia roupas fora de moda, quem sabe se tomadas de empréstimo nas pressas da fuga. A hospitalização clássica limitava consideravelmente o campo de ação do doente, impedindo qualquer compensação, qualquer deslocação. O doente, limitado ao espaço fechado do hospital, estava condenado a exercer a sua liberdade no mundo irreal dos fantasmas. Também na que fora a sua vida familiar, para Julieta, o mundo não lhe foi transmitido, razão porque não tinha uma bússola e andava no mundo decifrando-o. Num esquizofrénico, a sua experiência sofreu uma dupla rotura: a das suas relações com o mundo e a das suas relações consigo mesma. Um tal individuo não se sente em harmonia nem com os outros nem consigo mesmo. A falta de ligação com o seu corpo vivente, real e substancial tornam desesperantes o seu sentimento de solidão e isolamento. Esse sentimento da sua fragilidade perante o mundo faz com que os seus olhares e gestos sejam uma mescla de altivez e suavidade. Vinda do mundo inacessível do manicómio, ela estava fisicamente em vida mas não existencialmente vivente. E Julieta dirige-se a D. João e a sua voz ecoou com uma solenidade penetrante onde perpassava uma luz de sentimento e de pensamento: — (…) Se havia alma, ela esgotou-se nessa contínua e surda perseguição. Tudo o que resta é corpo. A estátua absoluta voltada para o sol….
Enquanto D. João é um ser vivente, Julieta, pelo contrário, não se sentia ser uma pessoa real. O facto de alguém ter reparado nela começou por ser, para ela, uma ameaça. Amar era para ela perigoso. O seu centro não resistia à desintegração de tal modo Julieta estava possuída pela fantasia do seu próprio ser. Julieta, porque o seu «eu» não tinha nem liberdade nem autonomia, nem poder num mundo real, ao aproximar-se o momento do beijo, pergunta: — Reconheces agora o sabor dos lábios que te pertencem? A boca que guardou na paz dos túmulos a sua eterna fidelidade? O lírio que no jardim da morte o vento dos séculos não arrancou da haste?
E, com o beijo que é o beijo da morte, Julieta avisa D. João da queda que se avizinha para ambos: — Há certas expedições na vida que já não permitem o regresso. E Julieta numa aspiração a um romance de amor eterno, cede então a sua voz ao oceano: …A voz profunda do oceano celebrará as nossas núpcias eternas… as estrelas serão sombras no rasto da nossa luz… e os nossos dedos estarão na raiz de todos os mistérios…
O oceano de vagas de cristal para onde correm D. João e Julieta não é velho oceano mais belo que a noite, de Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, mas o do espaço mítico da Ilha de S. Miguel, nos Açores, onde, na Fajã de Baixo, a autora nasceu a 13 de Setembro de 1923. As águas do oceano, na sua origem primitiva, são uma substância mãe que absorvem o sofrimento por aqueles que partem para longe, para o Brasil, primeiro o pai, eterno marinheiro, depois a mãe. Não são as águas mortas ou paradas num sono de chumbo como as de Edgar Poe, mas as cristalinas e sonhadoras vagas atlânticas que beijam as Ilhas dos Açores. É nessa substância matricial que os amantes cumprem a sua paixão, sem tumulto, no repouso eterno do seu seio. Gaston Bachelard, em L’Eau et les Rêves, no capítulo que dedica a Edgar Poe, escreve que Madame Marie Bonaparte na sua minuciosa e profunda análise das poesias e contos deste autor, descobriu que a unidade de imaginação de Poe estava na fidelidade a uma recordação imperecível. De facto, sendo o oceano o mediador plástico entre a vida e a morte, a recordação imperecível é a imagem da mãe moribunda, imagem que domina a imagética material das águas oceânicas em Edgar Poe e na poética de Natália Correia. Dela disse: Hoje quero a violência da dádiva interdita / sem lírios e sem lagos / e sem gesto vago / desprendido da mão que um sonho agita. / Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu / suspensa de mundos cintilantes pelas veias / metade fêmea, metade mar como as sereias.
Voltemos à questão da queda, objeto de particular atenção porque a queda não é igual nem para D. João, nem para Julieta e nem para o artista que os criou. Do íntimo convívio do autor com os seus personagens resulta muitas vezes um sentimento de queda para fora de um mundo fictício e parado no tempo, sentimento que levou Goethe, numa carta a Schiller, a escrever: Nós somos obrigados a esquecer o nosso século se queremos trabalhar segundo as nossas convicções. Se o real é a linguagem, ou, segundo a formulação lacaniana, se o real é o sujeito enquanto sujeito do discurso do outro, e, se quando um esquizofrénico fala é difícil saber quem fala e a quem as suas palavras se dirigem, havia que se distinguir de que natureza se revestiria a queda de cada um dos intervenientes num processo criativo em que no criador, a transformação de si começa ao transformar a palavra em ato de linguagem autocriativo, «essa lava espantosa de palavras cor de carne trepidante, no dizer de Aimé Césaire.
Em Setembro de 1951, no Simposium sur la Psychothérapie, coletiva publicada pela Évolution Psychiatrique, 1952, fascículo 3, Henri Ey explicita: A esse movimento de desprendimento pelo qual a liberdade se define e que é o verdadeiro caminho da liberdade, opõe-se certamente o refluxo para o polo automático do nosso ser, verdadeiro princípio da inércia psíquica. Quando essa queda é livre, isto é, quando ela gera a arte (e nomeadamente esta forma estética que é o surrealismo), quando essa queda é também o levantar voo, o poeta abandona-se à germinação poderosa das imagens que se erguem nele e que nós chamamos a sua inspiração. Ele faz o maravilhoso. Quando esta queda, ao contrário, depende, vertiginosa, irresistível e irreversível (como no sono ou na psicose), do peso físico do nosso organismo, ela gera o delírio. Isto é, ela não é automatismo consentido e procurado, mas automatismo forçado, automatismo de impotência. É então, e então apenas, que o homem está louco, não porque se tenha tornado numa máquina mas porque, já não sendo livre, ele tende a tornar-se máquina. E é então, que a meio caminho do ser e do nada, entre a vida e a morte do espírito, ele torna-se o que ele não era senão dentro de si mesmo, no avesso da sua plena realidade. Preso na fantástica existência das imagens, na sua miraculosa irrealidade, ele é o maravilhoso.
Natália Correia termina a sua peça com a fala de Janico, o primo de D. João e seu parente pobre. Janico fecha a peça com estas palavras: Pensamos que podemos congratular-nos (…) ao imaginar que deixámos todos aqueles deuses fantasmagóricos para trás. Mas aquilo que deixámos para trás são somente espectros verbais, não os factos psíquicos que foram responsáveis pelo nascimento dos deuses. Ainda estamos tão possuídos por conteúdos psíquicos autónomos que é como se eles fossem olímpicos. Hoje eles são chamados de fobias, obsessões e coisas assim; numa palavra, sintomas neuróticos. Os deuses tornaram-se doenças.
Com esta peça, os Surrealistas marcavam um encontro com a loucura e com as instituições psiquiátricas em Portugal e dentro do espírito do movimento iniciado em 1916 por Breton nos meses que passou em Saint-Dizier onde tinha por tarefa a deteção dos simuladores entre os soldados, função que lhe tinha sido incumbida pelo exército. Segundo Henri Béhar, essa função tinha por objetivo um relatório médico-legal que daria lugar a uma reforma definitiva ou temporária e que poderia ser mesmo utilizado nos casos de soldados passíveis de conselho de guerra.
Em 1930, André Breton, em Le Surréalisme au Service de la Révolution, interpela a psiquiatria tradicional contestando as fronteiras entre o normal e o patológico, a mentira e a verdade, a confusão mental e a criação artística. As Possessões, a segunda parte da obra L’Immaculée Conception, escrita por Breton e Éluard e publicada em Dezembro de 1930 nas Éditions Surréalistes, inscrevem-se no contexto da conta regular com os psiquiatras pelo menos os da antiga escola. Segundo evocou Breton em 1952 nas suas Entrevistas, o confronto tinha por base os escritos dos doentes mentais e a noção de simulação. A violenta Carta aos Médicos dos Asilos de Alienados, que apareceu no nº 3 da Revolution Surréaliste, escrita por Desnos, Fraenkel e Artaud, censurava aos médicos chefes em questão de não verem nos sonhos e nas imagens dos dementes senão uma salada de palavras.
Natália Correia, ao retratar Julieta como uma doente mental, colocava uma acha na fogueira em que ardia a polémica da Psicoterapia Institucional em Portugal. De 1945 a 1950, em Portugal, toda a assistência pública aos doentes mentais era feita através da hospitalização em três estabelecimentos existentes: em Lisboa, no Hospital Júlio de Matos que entrou em funcionamento em 1945, no Porto, no Hospital Conde Ferreira e em Coimbra no Hospital Sobral Cid a partir de 1948. A Psiquiatria em Portugal era dominada pela figura de Egas Moniz, por cujas principais realizações, a angiografia cerebral e a leucotomia pré-frontal, foi galardoado com o Nobel de Medicina em 1949.
Em finais dos anos 50, acontecem mudanças introduzidas por Seabra Dinis, ex-bolseiro do Governo francês após a Libertação e que se tornou no secretário dos Anais Portugueses de Psiquiatria. Foi a partir da experiência vivida em Saint-Alban que se gerou a prática e a elaboração daquilo a que G. Daumézon e Ph. Koecklin, em 1952, em artigo escrito nos Anais Portugueses de Psiquiatria e a pedido do seu secretário Dr. Seabra Dinis, batizaram de Psicoterapia Institucional.
A experiência vivida em Saint-Alban levadas a cabo por Tosquelles, Balvet, Chaurand, Bonnafé, Jean Oury, Franz Fanon, Gentis e Yves Racine,entre outros, significou uma profunda rotura tanto do ponto de vista epistemológico como de teoria e práxis. A conceptualização desta metodologia que constituiu uma verdadeira rotura levada a cabo por estes pioneiros chamados psiquiatras-filosófos, decorreu de um processo dialético complexo feito de experiências diversificadas de transformação das estruturas psiquiátricas e que emergiu do contexto histórico da Guerra Civil de Espanha e da Segunda Guerra Mundial e em estreita relação com o processo de luta das forças democráticas contra a barbárie das forças nazi-fascistas sobretudo na Catalunha e depois em França no contexto da Resistência à ocupação alemã.
Tosquelles, Chaurand, Balvet e Bonnafé, que tinham participado na Resistência, iniciaram, intramuros do hospital, a prática de restauração dos seres humanos na sua dimensão subjetiva e social como a havia vivido André Breton na sua experiência de 1916 em Saint-Dizier. Lucien Bonnafé tinha já frequentado, enquanto estudante em Toulouse, os surrealistas, tendo-se mesmo encontrado com Breton em Paris. Segundo Tosquelles, foi a presença de Paul Éluard que permitiu que o Surrealismo marcasse o que ficou conhecido como o despertar de Saint-Alban. Em setembro de 1942, Eluard já célebre teve de se refugiar em casa do livreiro Lucien Scheler, resistente comunista. A sua acção no sentido de organizar uma comissão nacional de escritores com Aragon tinha atraído sobre si a perseguição da Gestapo. Eluard vê-se então obrigado a procurar refúgio no campo. Esse refúgio foi-lhe dado por Lucien Bonnafé em Saint-Alban. Em outubro de 1942, Poésie et Vérité foi publicada em Main à Plume, o grupo neosurrealista constituído à volta de Noël Arnaud e Jean François Chambrun. Esta recolha de poemas começa com o célebre poema Liberté, largamente difundido.
Em Portugal, no decurso dos anos 50, Eduardo Luís Cortesão e vários psiquiatras portugueses, foram-se iniciando na formação grupo-analítica e alguns deles, com Fernando Medina, iniciaram a experiência da psicoterapia de grupo no Hospital Miguel Bombarda em Lisboa. Em 1966, as autoridades políticas proibiram, no último momento, a sessão sobre psicoterapia institucional que se iria realizar na Sociedade Portuguesa de Psiquiatras com o argumento de serem todos da oposição. Um dos organizadores da sessão era Fernando Medina que estava casado com Eugénia Cunhal, irmã de Álvaro Cunhal, Secretário-Geral do PCP. A sessão iria incidir sobre os clubes terapêuticos e Yves Racine iria ler o texto de outro organizador, sobre o papel e função das Associações Culturais de Pessoal, Bráulio de Almeida e Sousa [2] que estava em Saint-Alban porque tinha sido exonerado compulsivamente da função pública por razões políticas Finalmente, Eduardo Luís Cortesão também organizador, porque era sobrinho do historiador Jaime Cortesão, perseguido pelo regime de Salazar.
Para combater este grupo de psiquiatras foram criados vários clubes concorrentes que nada tinham a ver com o conceito e funções de Clubes terapêuticos no campo de um estabelecimento psiquiátrico tal como era entendido pelo movimento francês de psicoterapia institucional. Com a morte dramática de Fernando Medina e o distanciamento de Eduardo Luís Cortesão, resultou o retorno à rotina. Contudo, algo progrediu em Portugal fruto da Psicoterapia Institucional: a transformação do hospital-prisão com a introdução de um nível de liberdade.
Na impossibilidade política e social de a ver subir à cena no seu próprio país e tendo consciência de que a sua publicação teria de ser remetida para um futuro incerto, uma vez que apesar da mutação histórico-política que ocorria em Portugal com o advento da Revolução dos Cravos, a Psiquiatria continuava a ter socialmente uma aura de interdito, em 1989, Natália Correia confia a sua publicação a João Mota e à Comuna-Teatro de Pesquisa, o que veio a acontecer em 1999. D. João e Julieta foi a primeira peça a ser encenada depois da morte da autora em 1993, numa produção entre a Comuna-Teatro de Pesquisa e o Teatro da Trindade com cenografia de José Manuel Castanheira.

NOTAS
1.A Colecção Imbondeiro que contou com poemas de Agostinho Neto, Viriato Cruz, Mário António e António Jacinto entre outros, terminou em 1964 com a invasão e destruição pela PIDE de todas as obras assim como de toda a documentação comercial devido à publicação de um texto de Luandino Vieira que viria a merecer no ano seguinte o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores que foi a seguir extinta por invasão da sua sede por legionários.
2. Irving Strauss desvenda-nos um pouco da biografia de Bráulio de Almeida e Sousa: Bráulio de Almeida e Sousa era lenhador e entrou como zelador noturno no Hospital Sobral Cid. As suas noites passava-as sentado diante de uma mesa onde tinha uma vela acesa. Durante a noite, os esquizofrénicos catatónicos iam chegando e punham-se à volta da mesa e conseguiam falar com ele sem dificuldade. Em 1994, num Congresso de Psiquiatria, puseram a mesa de Bráulio com a vela.

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Número 152 | Abril de 2020
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