terça-feira, 29 de novembro de 2022

Agulha Revista de Cultura # 218 | novembro de 2022

 

∞ editorial | A comunhão de todos os tempos

 


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| Após as séries “Partituras do Maravilhoso” (2021) e “Surrealismo Surrealistas” (2022) – que será concluída na edição de 25/12 –, a Agulha Revista de Cultura prepara para 2023 uma nova etapa dedicada à reflexão sobre os caminhos da criação artística em nossa época. Durante todo o ano publicaremos duas edições mensais, sempre aos dias 10 e 25 de cada mês, cada uma delas incluindo um total de 10 ensaios que deverão ter um mínimo de 3 mil caracteres. Sob o tema central, “A arte no Século XXI”, os ensaios deverão abordar o modo como política, economia, mídia, mercado, guerras, religiões etc., têm afetado a criação artística em sua perspectiva humanística e quais as projeções para um novo renascimento ao longo do presente Século. Evidente que as escolhas pelos elementos externos serão distintas em cada convidado, de acordo com sua experiência de vida e a natureza de seu trabalho. De igual modo, esses elementos podem ser outros, não devendo haver limitação em face de nossas sugestões. O que desejamos, em tese, é um ensaio sobre as relações entre arte e cultura.

As datas exigidas para entrega dos textos obedecem a uma agenda editorial, assim definidas:

30/12/2022 (para o primeiro trimestre 2023)

28/02/2023 (para o segundo trimestre 2023)

30/05/2023 (para o terceiro trimestre 2023)

30/08/2023 (para o quarto trimestre 2023)

Cada uma das referidas datas só poderá contar com a inscrição de 60 convidados.

Para o momento o que queremos de todos os convidados é que confirmem sua participação em nosso projeto e que definam a própria data de entrega de seu ensaio. Lembramos ainda que os ensaios não devem acompanhar imagens, pois cada uma das edições, como tem sido uma marca da Agulha Revista de Cultura em seus 21 anos de existência, apresenta uma mostra de 48 obras de um artista convidado. Agradecemos a todos, pela renovada cumplicidade.

 

01 | Alguém se surpreende com o modo como as luzes lambem a carne decomposta dos acidentes. Um manancial de sangue decerto altera a modulação do espanto. Tantas vezes a estrada acoberta os desastres que circulamos muitas vezes em volta de espectros de uma dor invisível. Não faltam ocasiões em que nos confundimos com aquele grande clandestino apontado por Aníbal Machado, o que descobriu que o tempo não faz nada às claras, e acabou por compreender que destruição e reconstrução se confundem, e que sacos e sacos vão se enchendo e esvaziando toda a vida. Não há outro sentido na ferocidade virtuosa com que nos enganamos com o destino. É inútil sair a procurar uma razão que se faça mais indigna do que essa. Novamente Aníbal Machado: O temor de que a sociedade possa um dia transformar-se fundamentalmente: Eu tenho defeitos próprios para vencer nesta. Não somos vitoriosos ou fabulosos. Perambulamos entre os pretextos formidáveis de um obscurantismo aviltante. Nossas perspectivas de vida e morte permanecem baseadas em estruturas econômicas, o dinheiro como meio de transporte de um tempo que progride quase sempre em direção contrária ao da comunhão de todos os povos.

 

02 | Em um livrinho mágico que é um dos marcos da entrada em cena do Surrealismo, já em 1919, André Breton e Philippe Soupault reclamam que o imenso sorriso da terra não nos é suficiente: necessitamos dos antigos desertos, das cidades sem arrebol e dos mares mortos. Por esta imagem de Les champs magnétiques começamos nossa viagem, pelo imperativo de descobrir outras dimensões de nossa passagem pela terra. O próprio Surrealismo nasce nos diários de bordo da escuna errante chamada Cabaret Voltaire, e suas intensas reuniões de viajantes.

O automatismo era ali a mecânica de cartas-colagens, a firmação do instante como o carvão propiciador da magia perene da existência humana. A verdadeira compreensão do tempo como um jogo sem fios. A comunicação sublime do eu com seus impronunciáveis outros. Nas páginas da revista Littérature o mundo duplo, que levamos dentro e fora, começa a viajar.

Uma viagem que leva em si tanto dos lugares de encontro como da geografia do espírito de cada um de seus participantes. As multiplicações criativas dos abismos pessoais e o fluxo dos olhares em novas formas de explorar o mundo. Nova teoria de horizontes. Uma metafísica do desconhecido. Por aí a vida vai alcançando sua entranhável altivez polimorfa.

Assim nasce o Surrealismo. Com esse sentido incessante de buscar novas terras. Como um centro de atração dos viajantes mais empenhados em desvelar novos truques de união entre imagem e palavra. O entusiasmo de ir e vir por mundos inapagáveis. Este centro, por impulso de vitalidade, desde seu íntimo tem se afirmado como uma rede de canais em perpétuo movimento. Seu nome não é Zurich ou Paris, mas sim um cabaré e logo um café e mais, as ruas e galerias e portos.

Os jogos e criações coletivas, as alocuções do entusiasmo comum, um sem número de atividades enriquecedoras que permitiam levar seu espírito na bagagem de regresso a vários países do mundo. Desse modo o Surrealismo atracou em outros continentes, chegou a Adelaide, Lima, Tóquio, Rabat etc. O Surrealismo chega ao Japão pelas mãos de Nishwaki Junzaburo (1894-1982) e seu encontro com Takiguchi Shuzo (1903-1979), os dois poetas e artistas plásticos, ou na Inglaterra, graças a Roland Penrose (1900-1984) e a formação de um grupo com David Gascoyne (1916-2001), ou no Peru, com o retorno de César Moro (1903-1956) e sua amizade com Emilio Adolfo Westphalen (1911-2001), e assim foi por todas as partes. Porém quase igual a este modo de impulso do movimento também contribuiu a 2ª Guerra Mundial e seus exílios inevitáveis.

Com o tempo se foi descobrindo que era impensável uma prática ortodoxa do Surrealismo, pois tanto se registravam em seu curso ações grupais como isoladas. Além do mais, as viagens propiciaram uma reciprocidade que foi pouco a pouco agregando novas perspectivas, alterando os erros de formação, sem deixar de se basear em sua tríade fundamental: o amor, a poesia, a liberdade. Era necessário livrar-se dos eufemismos da ortodoxia para criar novas visões de si mesmo e do mundo. Nisso o Surrealismo cresceu ao ponto de ser o movimento cultural mais importante do século XX.

Um de seus erros clássicos derivou da rejeição de André Breton de conhecer outros idiomas além do francês. Com isto pôs em cena uma presença mais plástica do que poética no surrealismo internacional, deixando sob certa obscuridade a grandeza da obra renovadora de muitos de seus poetas. O próprio Breton, acerca da imagem surrealista, anotou no primeiro manifesto:

 

Para mim, não o nego, a mais forte é a que apresenta o mais alto grau de arbitrariedade; a que requer mais tempo para ser traduzida em linguagem prática, seja por conter uma enorme dose de contradição aparente, seja por um de seus termos estar curiosamente oculto, seja por, tendo-se apresentado como sensacional, parecer que termina fracamente (que fecha, bruscamente, o ângulo de seu compasso), seja por tirar de si mesma uma justificativa formal derrisória, seja por ser de natureza alucinatória, seja por, muito naturalmente, conferir ao abstrato a máscara do concreto ou vice-versa, seja por implicar a negação de alguma propriedade física elementar, seja por provocar o riso.

 


Esta força de variados timbres provém tanto da imagem plástica quanto da imagem poética. Seu valor transcendente radica na profundidade da imaginação. Bem o compreendia Benjamin Péret, ao dizer que a poesia é a forma natural de pensamento da humanidade, ou seja, a poesia como explosão do pensamento em seu ambiente tanto poético quanto plástico. O poema, através da visão surrealista, alcançou a transmissão das verdades mais essenciais ao homem – aquelas que estão feitas de permanente risco e aventura sem fim.

Poetas como César Moro, Enrique Molina, Ludwig Zeller, descobriram uma chave de raízes entrelaçadas que os conduz aos mais altos graus da criação poética em língua espanhola. O mesmo se pode dizer dos gregos Odisseas Elytis, Andreas Embirikos e Matsi Chatzilazarou. De igual modo podemos pensar no japonês de Kansuke Yamamoto, Kitasono Katue e Takiguche Shuzo, ou no inglês de Max Harris, Joyce Mansour ou Philip Lamantia. Os exemplos se reproduzem em muitos outros idiomas e essa chave radica não no antagonismo entre mundo auditivo e mundo visionário – como defendia Breton, elegendo o auditivo como a forma maior de concepção do poético –, mas sim como uma fusão dos dois e sem esquecer os demais sentidos.

Ainda estamos por conhecer as esferas encadeadas do Surrealismo na poesia de incontáveis países. As janelas abertas dessa tempestade que avança muito além dos conceitos de tempo e espaço. Um século se passou desde a escritura de Les champs magnétiques e o palco de maravilhas que foi a revista Littérature. Um século desde a compreensão dada pelas colagens de uma nova realidade. Um século desde a aventura transcendente dos jogos coletivos, onde a verdadeira poesia se faz no reconhecimento – jamais na submissão – do outro. Essa alquimia dos sentidos atua como uma prova a mais da vastidão do pensamento, como as letras de fogo que ampliam nossa permanência na terra, e sua esfera mágica – a soma do angélico e do demoníaco que brinda o Surrealismo – é o que há construído tudo em nosso tempo.

 

03 | A nudez e o teatro celebram uma peregrinação mística pelo tabuleiro da existência. De um lado a transfusão perene dos fluidos da inocência e da luxúria, de outro a representação da essência do próprio ser. Ao escrever sobre a fotografia de Sara Saudková (República Tcheca, 1967) – artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura, e cabe mencionar a generosidade com que nos recebeu –, o crítico Emilio Bellu observa que ela mostra o poder do relacionamento tcheco com o corpo, a sexualidade e a curiosidade que são difíceis de encontrar em outras culturas. Sua obra plástica é ainda muito ligada à de Jan Saudek, com quem realizou muitos trabalhos comuns – Fiquei completamente surpresa com o mundo dele e sua personalidade me atraiu muito –, porém se deixamos pousar livremente o olhar nas fotos de Sara, no que pese a coincidência da teatralidade, das fotografias encenadas, compostas como tableaux vivants, logo percebemos que sua dramatização fotográfica não contempla a abjeção que tanto singulariza a estética de Jan. Ao contrário, em Sara, o erotismo, acentuado em seu íntimo pela força expressiva do uso de fotos em preto e branco, procura imprimir em sua linguagem animada a sensibilidade feminina em busca de uma simbologia própria, onde o desejo e a maternidade são personagens valiosos. Sara, que também tem escrito alguns romances, destaca, no tocante ao este equilíbrio arriscado que consegue imprimir em sua fotografia, que, na montagem dos cenários, todo prazer é redimido com algum problema ou tristeza, cada problema é substituído por alegria e felicidade. A densidade surrealista de sua obra, em especial no plano de sua criação livre, é intensamente ampliada pelo humor e a graça de uma linguagem que se mostra ser outra, inesperada e reveladora. 

Floriano Martins 

 

 

∞ índice

 

ALFREDO MARGARIDO | Surrealismo negro

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/alfredo-margarido-surrealismo-negro.html

 

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO & MANUEL SIMÕES | Duas vezes Carlos Loures

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/antonio-candido-franco-manuel-simoes.html

 

CARLOS M. LUIS | Eros, violencia y surrealismo

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/carlos-m-luis-eros-violencia-y.html

 

CÉSAR BISSO | Las razones de Roberto Arlt para inventar otra sociedad – Aproximación a su novela Los siete locos

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/cesar-bisso-las-razones-de-arlt-para.html

 

DARRAN ANDERSON | David Gascoyne, Surrealism and the Vanishing Muse

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/darran-anderson-david-gascoyne.html

 

FLORIANO MARTINS | Ernest Pepín, Caribe y Surrealismo

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/floriano-martins-ernest-pepin-caribe-y.html

 

JOSÉ ÁNGEL LEYVA | Armando Romero, movimiento y quietud de la poesía

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KIRILL KOBRIN | Las tentaciones de Pierre Molinier

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GUILLERMO AGUIRRE MARTÍNEZ | La huella de lo sagrado en la poesía de Juan-Eduardo Cirlot

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/guillermo-aguirre-martinez-la-huella-de.html

 

VALÉRIA METROSKI DE ALVARENGA | A cidade dos mortos: o mundo imaginário do artista polonês Zdzislaw Beksinski

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Sara Saudková


Agulha Revista de Cultura

Número 218 | novembro de 2022

Artista convidada: Sara Saudkovà (República Tcheca, 1967) 

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022

 






                


 

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VALÉRIA METROSKI DE ALVARENGA | A cidade dos mortos: o mundo imaginário do artista polonês Zdzislaw Beksinski

 


Desejo pintar como se estivesse fotografando sonhos.

BEKSINSKI

 

Pintar sonhos! Quem conhece um pouco dos trabalhos de Beksinski diria que ele desejava mesmo era “fotografar” pesadelos, e daqueles bem sombrios. No entanto, ele confessou que quando criança temia pensar em adormecer, pensando no que teria que passar (GRZEBAŁKOWSKA, 2014, apud SOKOLOWSKA-SMYL, 2014). Que ironia, não? Quem antes tinha medo dos próprios pesadelos, resolve expô-los ao mundo através de pinturas. Esse artista tem um amplo repertório de pinturas, fotografias, esculturas e imagens manipuladas no computador com conteúdos/temáticas do Realismo Fantástico ou Surrealismo, as quais apresentam um aspecto tenebroso e possuem características do grotesco. No entanto, Beksinski sempre afirmou que não sabia o que suas pinturas significavam, mas que apreciava suas formas. Nem título ele colocava nas obras, para não induzir a apreciação/interpretação do espectador. Como veremos a seguir, isso pode estar associado ao fato dele ter trabalhado com arte abstrata antes de iniciar suas pinturas oníricas (KOPTSEVA; REZNIKOV, 2015).

Assim, pois, além do artista nos dar toda a liberdade para fazermos nossas divagações poéticas, sabemos que as imagens não são um simples recorte do mundo, mas sim “uma im-pressão, um rastro, um traço visual do tempo que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares – fatalmente anacrônicos, heterogêneos entre eles – que, como arte da memória, não pode aglutinar.” (DIDI-HUBERMAN, 2012). A medida que a imagem é um espectro, quando este autor pergunta “que tipo de conhecimento pode dar lugar a imagem?”, como a própria caraterística do conhecimento não é específica, e nem fechada, a imagem pode ser apresentada/apreciada através do cruzamento de inúmeros textos e/ou de conversas com outras imagens. Nesse sentido, pretendemos deixar fruir o imaginário através das cidades pintadas por Beksinski, as quais associamos à cidade dos mortos. O imaginário:

 

[...] corresponde à necessidade do homem de produzir conhecimento pela multiplicação do significado, atribuir significados a significados; suas produções não são únicas, mas se acumulam e passam a significar mais por um processo associativo onde um significado dá origem a um segundo ou terceiro e, assim, sucessivamente. Pelo imaginário, a imagem urbana - locais, monumentos, emblemas, espaços públicos ou privados - passa a significar mais pela incorporação de significados extras e autônomos em relação à imagem básica que lhes deu origem. (FERRARA, 1997).

 

Seguindo essa vertente, podemos dizer que a cidade é igual a um sonho. “Tudo o que pode ser imaginado, pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo.” (CALVINO, 1990). As cidades que Beksinski apresenta, em geral são sombrias, parecem estar abandonadas, mas por vezes são habitadas por mortos com corpos esqueléticos. Nos trabalhos dele “a cidade é redundante: repete-se para fixar alguma coisa na mente. [Assim como] a memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir.” (CALVINO, 1990). A neblina, a ruína, a sensação de solidão, esquecimento, desolação, assim como a grandiosidade dos elementos arquitetônicos fantásticos perto da pequenez dos seres humanos, os quais já perderam suas características e não passam de fantasmas, são elementos reiterados constantemente nas cidades apresentadas por esse artista.

Enfim, a representação da cidade nas obras de Zdzislaw Beksinski, através da montagem, [1] se encaixa em algumas descrições das Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino (1990), tanto quando este apresenta “a cidade e os mortos” quanto as cidades impossíveis e/ou fantásticas, as quais são retratadas por Marco Polo a Kublai Khan. Igualmente, autores diversos da literatura foram convidados pela autora a compor/descrever o mundo imaginário das urbes criadas por esse artista polonês, tais como: Dante Alighieri, Edgar Alan Poe, José Saramago, Machado de Assis e Franz Kafka.

 

O artista que fotografava pesadelos

Zdzislaw Beksinski é conhecido por alguns como “o artista do Apocalipse” e por outros como o artista “fundador das Artes Negras”. Ele ganhou tais apelidos pelo aspecto grotesco e soturno das figuras cadavéricas e/ou em decomposição que representava; pela metamorfose kafkaniana que o corpo humano adquiria em suas telas e pelas ruínas de lugares fantásticos e devastados, quer pela peste quer pela guerra, que ele criava. Apesar desses apelidos, muitos críticos [2] concordam que ele é um dos mais importantes representantes do surrealismo polonês. Ele,

 

[...] produzia suas pinturas e desenhos em um estilo que ele chamava ora de ‘Barroco’, ora de ‘Gótico’. Seu principal estilo era dominado pela representação, com os exemplos mais conhecidos advindos do ‘realismo fantástico’, em que ele pintava imagens perturbadoras de ambientes “surrealísticos e atemorizantes”. (LIVISKI, 2017).

 


É difícil definir o que é e o que não é arte surrealista porque esse movimento artístico não se delineou pelo critério estético. O Surrealismo histórico surgiu na década de 20 do século passado, em um momento de intensa crise da existência humana, e “acabou” em 1969, aproximadamente. No entanto, o espírito surrealista permanece eterno, pela liberdade imaginativa que este propôs. O tromp-l’oeil, [3] as imagens oníricas e inconscientes, através da ambiguidade e da ambivalência, foram os caminhos apontados por Breton para o Surrealismo nas artes visuais. Em vista disso, muitas obras podem se encaixar nesse movimento artístico. Entre as duas guerras mundiais o foco deste foi a França, porém ele também atingiu muitos países, inclusive a Polônia, no leste Europeu, tendo como principais representantes os seguintes artistas: Zdzislaw Beksinski (1929-2005), Bronislaw Wojciech Linke (1906-1962) e Jacek Yerka (1952-). (LIVISKI, 2017).

Beksinski nasceu em 1929 em Sanok (Polônia) e foi assassinado em 2005 em Varsóvia (Polônia). Ele se formou em Arquitetura (1952), [4] mas não se identificou com a profissão. Começou, então, a realizar trabalhos de fotografia e escultura contemporâneas. No início da década de 60 do século XX, faz pinturas abstratas, porém com o tempo desenvolve um estilo de realismo fantástico próprio. Sendo o seu período mais fértil, o compreendido entre as décadas de 60-80. Do final dos anos 90 do século passado até sua morte, ele realizou trabalhos com imagem digital (computador e fotocópias), mas manteve seu estilo, apesar da mudança da técnica. Quanto a essência filosófica dos trabalhos desse artista, sua tese principal recai sobre a importância da forma e não do conteúdo. Este é responsabilidade dos espectadores, dizia ele. Por esse motivo não dava título às suas obras. Tal pensamento pode ser resultante do seu período como artista abstrato e reflete o princípio de outro artista polonês, o suprematista Kazimir Malevich. (KOPTSEVA; REZNIKOV, 2015).

Beksinski é um artista pouco conhecido no Ocidente. Todavia, seus trabalhos costumam circular por blogs e sites diversos que tratam sobre a morte e o mundo sombrio, geralmente associados a subcultura “dark”. [5] Uma citação que pode resumir bem os trabalhos desse artista para quem não o conhece é a mesma que Dante leu antes de adentrar o portal do Inferno: “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais” (ALIGHIERI, 1998). As pinturas de Beksinski apresentam, em geral, o mistério do espírito humano, retratando aspectos do universo inconsciente, evidenciando a degradação e a degeneração do ser humano através da desvalorização das figuras e dos ambientes, sendo o grotesco a base para essas representações.

Segundo Vasquez (1999) a categoria estética do grotesco costuma combinar elementos vegetais, animais e humanos de maneira fantástica. Combinações estas, que se forem medidas de acordo com o modelo classicista e/ou realista parecerão monstruosas. Apesar de inúmeras evidências da presença do grotesco na arte em séculos anteriores, apenas no século XVIII é que se começa a considerar o grotesco como categoria estética, principalmente por meio do Romantismo, o qual não busca uma reprodução do belo. O grotesco costuma aparecer para retratar um mundo estranho, fantástico, absurdo, com elementos irreais e “antinaturais” através da mistura de elementos comuns, antropomorfismos, etc. Ele pode associar, também, o angelical e o diabólico; o terrível e o maravilhoso; o mistério da existência humana e o mundo dos sonhos.

O grotesco, ainda, pode abarcar em seu seio a presença do estranho e do fantástico na própria realidade. “Esses elementos estranhos, fantásticos, podem ocorrer em cenários distintos: o sobrenatural! Quer seja como paraíso ou inferno; ali onde a realidade se perde como no sonho [...]” (VASQUEZ, 1999). Ou seja, o predomínio do fantástico, do insólito e do estranho não significa que o grotesco não mantenha certa relação com a realidade. Aquele toma desta elementos para deformá-los e recombiná-los, desnaturalizando o habitual e menosprezando o real. Uma leitura pelo viés psicológico do grotesco é que este “vem em auxílio de nosso medo, frustração gerada por restrições morais, sociais e estéticas.” (SOKOLOWSKA-SMYL, 2014, tradução nossa). A partir disso, podemos dizer que, assim como outras pinturas de Beksinski, as cidades apresentadas por ele também são grotescas, evidenciando, muitas vezes, a combinação entre o divino e o infernal.

 

Cidades dos mortos

A cidade dos mortos antecedeu a cidade dos vivos! (MUNFORD, 1991). Entre o nomadismo e o sedentarismo o ser humano enterrou seus mortos e para ficar próximo deles erigiu suas cidades.


“Nós que aqui estamos, por vós esperamos!” se tornou um clássico convite dos mortos, geralmente inscrito em entradas de cemitérios, para quem vai visitá-los. Um convite amistoso, mas que também nos dá arrepios, pois nos lembra do nosso inevitável destino. Curiosamente, a obra "Ilha dos Mortos", pintada em 1880 por Arnold Bocklin, chamou a atenção de Beksinski desde criança, se tornando um objeto de contemplação deste, posteriormente. (SOKOLOWSKA-SMYL, 2014). Já seria esse um indício de suas indagações sobre o mistério da existência humana?

“A cidade, por oposição à natureza, é o lugar e a obra do homem que, tal como o Deus bíblico, a constrói à sua imagem e semelhança” (PESAVENTO, 1997), podendo ser um local onde as pessoas depositam suas angústias e esperanças. Beksinski construiu suas cidades à maneira de seus pesadelos ou de um modo que fizesse alusão a isto. O que a cidade desse artista oferece aos recém-chegados é a desilusão através da desolação e seus poucos habitantes logo são esquecidos em meio a melancolia. No entanto,

 

As cidades não existem só como ocupação de um território, construção de edifícios e de interações materiais entre seus habitantes. [...] Atuamos na cidade pelas cartografias mentais e emocionais que variam segundo os modos pessoais de experimentar as relações sociais. Não é possível, então estabelecer com rigor o que é uma cidade, nem sequer o que são cada uma das suas representações particulares.” (CANCLINI, 2008)

 

Conceituar o que uma cidade é ou compreender as impressões peculiares que cada pessoa tem dela é impossível. Ainda assim, o urbano nas pinturas de Beksinski aparece através de referências a edifícios, igrejas, ruínas, torres, coretos e corpos. Esses são indicativos comuns de elementos que constituem as cidades, mesmo esta não se reduzindo a eles.

“[...] uma sensação de insuportável tristeza me invadiu o espírito. Digo insuportável, pois aquele sentimento não era atenuado por essa emoção meio agradável, meio poética, com que o nosso espírito recebe, em geral, mesmo as imagens naturais mais severas da desolação e do terrível.” (POE, 1978). A sensação que o amigo de Usher sentiu ao vislumbrar sua casa, em meio a névoa e distante de tudo, é a mesma que pode ser sentida ao visualizarmos a obra de Beksinski. É uma “[...] sensação de alguma coisa gelada, um abatimento, um aperto no coração, uma aridez irremediável de pensamento que nenhum estímulo da imaginação poderia elevar ao sublime.” (POE, 1978). As torres de madeira precária, revestidas de corpos humanos esqueléticos, dos quais vemos praticamente apenas braços e pernas cobertos de teias de aranha, se repetem no primeiro plano e parecem se multiplicar inúmeras vezes num pátio cercado por prédios. Essa imagem trás à mente outro conto de Alan Poe (1978), o “Gato preto”. Neste, o personagem, ao matar a mulher sem querer por causa de um gato, resolve emparedá-la, tal “como faziam os monges na Idade Média com suas vítimas”. Todavia, as torres humanas de Beksinski evidenciam que quem as fez não se preocupou em esconder os membros que ficaram pendurados. Há até uma antena de TV em cima de uma das torres. Seria esta uma cidade onde os vivos utilizam os corpos dos mortos como alicerce e estrutura para as construções? De maneira simbólica, o mundo dos vivos sempre é constituído a partir do mundo dos mortos.

Calvino (1990), ao descrever as cidades invisíveis, utópicas e/ou fantásticas apresenta “a cidade e os mortos”. Uma delas é Eusápia:

 

Não existe cidade mais disposta a aproveitar a vida e a evitar aflições do que Eusápia. E, a fim de que o salto da vida para a morte seja menos brusco, os habitantes construíram no subsolo uma cópia idêntica da cidade. Os cadáveres dessecados de modo que os esqueletos restem revestidos de pele amarela, são levados para baixo e continuam a cumprir suas antigas atividades. [...] na realidade, foram os mortos que construíram a Eusápia de cima, semelhante à sua cidade. Dizem que nas duas cidades gêmeas não existe meio de saber quem são os vivos e quem são os mortos. (CALVINO, 1990).

 

A obra de Beksinski nos remete à cidade dos mortos construída à semelhança da cidade dos vivos. A posição vertical dos ataúdes, colocados lado a lado tal como prédios, também nos lembram os cubículos que as pessoas ocupam na contemporaneidade, os quais estão cada vez menores e muitas vezes apenas uma pessoa o habita. Além das estruturas verticais, o artista deixa espaço para o que seriam as ruas. Ruas estas desérticas, pois as pessoas preferem ficar cada vez mais ensimesmadas, mesmo tendo certa proximidade física devido aos aglomerados das construções urbanas. Em virtude disso, será mesmo possível saber quem são os vivos e quem são os mortos entre as cidades gêmeas de Eusápia?

“A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali.” (CALVINO, 1990). A figura 4 pode ser vista como uma Cidade-Purgatório, na qual, as pessoas, no caso os esqueletos, ficam em volta de uma fogueira, cada grupo em sua torre de pedra, distantes uns dos outros. Vemos que algumas fogueiras já foram extintas, pois ainda conseguimos observar as cinzas restantes e a ausência de seres ao redor delas. As torres de pedra se repetem até as perdermos de vista ao serem engolidas pela cerração densa. Dante Alighieri, na “Divina Comédia”, ainda em vida realiza uma viagem pelo além-túmulo para salvar sua alma. O purgatório descrito por ele em nada se assemelha com essa imagem: “o purgatório é uma montanha alta e escarpada. [...] Nos flancos desse monte estão encravados terraços, ou cornijas, circulares, onde as almas cumprem suas penas, suas provações para o futuro acesso ao paraíso.” (ALIGHIERI, 1998). No entanto, essa pintura de Beksinski nos transmite uma sensação de espera contínua, assim como de inviabilidade de deslocamento. Pela lógica do Purgatório, após cumprirem suas penas, as pessoas sairão dele um dia, mas a impressão que essa imagem passa é que jamais o farão, à maneira do “Processo” de Kafka (2005).


Em outra obra, na entrada da cidade há colunas feitas de ossos humanos gigantescos. Em geral, as colunas foram utilizadas por muitas culturas e épocas para sustentar/embelezar seus espaços arquitetônicos ou modelar/realçar seus caminhos. Porém, as pilastras em meio a “[...] uma atmosfera peculiar, que nada tem em comum com o ar dos céus, mas que emana das árvores apodrecidas, das paredes cinzentas [...] um vapor pestilento e místico, opaco, pesado, mal discernível, cor de chumbo” (POE, 1978) em nada se assemelha aos atributos comumente dado a elas.

Não se sabe se essa cidade foi “abandonada, antes ou depois de ser habitada” (CALVINO, 1990). No entanto, não se pode dizer que ela está completamente deserta. A cidade está em ruínas e suas colunas estão cobertas de musgos, mas ainda assim ela é habitada por vermes, os quais são os primeiros a residir nos corpos dos mortos. Tais habitantes podem até se tornar queridos, a ponto de Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1994), dedicar seu livro, com saudosa lembrança, ao verme que primeiro roeu as frias carnes do seu cadáver quando este falava da sua vida antiga do além-túmulo. Ou seja, o corpo humano também pode ser uma cidade para habitantes distintos.

Os cemitérios junto às igrejas são comuns em inúmeras culturas há muitos séculos, sendo que no período medieval esta ocupava um ponto estratégico da cidade (ARGAN, 1994). Laudômia é uma das cidades invisíveis de Calvino. Esta, “[...] como todas as cidades tem a seu lado uma outra cidade em que os habitantes possuem os mesmos nomes: é a Laudômia dos mortos, o cemitério. [...] Para se sentir segura, a Laudômia viva precisa procurar na Laudômia dos mortos a explicação de si própria” (CALVINO, 1990). A figura 6 nos mostra uma igreja que aparenta estar abandonada. Sua estrutura espectral parece reduzida a um corpo esquelético em decomposição, o qual sucumbe em meio a névoa. Diferentemente de Laudômia, parece que ninguém visita os mortos desse cemitério, assim como ninguém visita essa igreja. Esta definha junto com aqueles.

Saramago (2005), um importante autor do realismo fantástico, em seu livro “As Intermitências da Morte”, apresenta a situação de um país que a partir do primeiro minuto do ano novo ninguém mais conseguia morrer. O que em geral, é visto como algo maravilhoso, escapar da morte/viver eternamente, se mostra como um grande problema. Pois, até os que foram decapitados continuam vivos, agonizando. O fato das pessoas deixarem de morrer interfere no cotidiano dos vivos. Os hospitais ficam lotados, as funerárias entram em grave crise financeira e é preciso rever os planos de aposentadoria. Surge até uma máfia para levar os quase-mortos para a fronteira do país para estes darem o último suspiro. Enfim, Saramago consegue retratar a importância da morte, tida como um mal necessário, para a continuidade harmônica do mundo dos vivos.

Diferentemente da igreja anterior, esta outra pintura: https://80.lv/articles/zdzislaw-beksinski-dystopian-surrealism-in-games/ exibe uma igreja no alto de uma montanha, parcialmente encoberta pela névoa, com aspecto imponente, mesclando o rústico ao design gótico. Ao fundo temos um céu que, pelas linhas e cores, ostenta uma aura transcendental. É como se a igreja esquelética retratada anteriormente, junto a um cemitério, se transformasse. Assim como os mortos, os quais foram apresentados nas imagens anteriores tanto em cemitérios quanto fora deles, com toda a sua materialidade e putrefação, agora se tornassem invisíveis ou simplesmente se desmaterializassem.

 Beksinski, tal como vimos anteriormente, afirmou que produzia trabalhos ao estilo “Barroco e/ou Gótico”. [6] Segundo Argan (1994) o Gótico inicia uma nova gramática na arquitetura “ao requinte das tipologias citadinas” e a catedral se torna um palácio público, sendo o arco ogival uma referência ao interesse espiritual do período. As dimensões dessas catedrais góticas apequenavam o ser humano, proporcionando às pessoas um vislumbre de um mundo distinto. “Tudo o que era terreno, pesado ou trivial fora eliminado. Os fiéis que se entregavam a contemplação de tanta beleza podiam sentir que estavam mais próximos de entender os mistérios de um reino afastado do alcance da matéria.” (GOMBRICH, 1993). E, mesmo quando vistas à distância, essas catedrais parecem proclamar o esplendor celeste ainda hoje.

De acordo com Argan (1994), o estilo Gótico costuma ser resgatado de tempos em tempos, ficando subjacente no Humanismo, no Barroco e no Romantismo. Enquanto o Gótico apresentava um novo interesse pela invenção em contraposição à “canonicidade bizantina”, assim como se caracteriza pela variedade multiforme dos “dialetos” estrangeiros, o Barroco era “a poética da maravilha”, permeando a ambiguidade entre arte e vida e a “permuta entre realidade e ficção” (ARGAN, 1994). Muitos desses elementos parecem estar presentes, de uma forma ou de outra, nos trabalhos de Beksinski.

A impressão que temos é que esta cidade está ou esteve no fundo do mar. Nas sacadas, feitas de conchas, há inúmeras pérolas. Ou seriam caveiras? As pessoas representadas na figura 8, uma à esquerda e outra na parte central, ambas na parte inferior do quadro, parecem minúsculas diante da magnitude das construções. Essa é outra característica das pinturas sobre a cidade apresentadas por Beksinski: ou não há pessoas ou existe apenas algumas em tamanho reduzido perto da grandiosidade da natureza ou de elementos da cidade, tais como edifícios e igrejas. Em uma entrevista concedida por Beksinski, em 1989, ele afirma que, em sua juventude, o artista romântico polonês Arthur Grottger (1837-1867) o influenciou (KOPTSEVA; REZNIKOV, 2015). Talvez, por esse motivo, consigamos encontrar alguns elementos do romantismo nos trabalhos desse artista. De acordo com Gombrich (1993) no Romantismo há um certo desprezo pela arte tradicional e ocorre um movimento que engrandece a feiura, a loucura, os monstros, os sonhos assombrosos e os artistas passam a se expressar mais livremente. Enquanto que na paisagem romântica, a natureza se engrandece: “sentimo-nos pequenos e esmagados em face de poderes que não podemos controlar [...]” (GOMBRICH, 1993). Sentimento este que também pode ser agregado a imponência das catedrais góticas. Tal reunião de possibilidades temporais está associada a liberdade, essencialmente imaginativa, que a montagem permite ao observarmos as imagens. (DIDI-HUBERMAN, 2012).

A estrutura é de um coreto que se funde com a paisagem. Em seu teto há um céu azul estrelado. Céu este que contrasta com o céu que se encontra do lado externo da construção arquitetônica. Observamos que há duas camadas no coreto, sendo que a inferior mostra nuvens carregadas com a possibilidade de luz mais adiante, enquanto que a parte superior mostra o espaço infinito. Nesta imagem ocorre a inversão da lógica habitual da estrutura arquitetônica, na qual, geralmente, a natureza fica do lado de fora e dentro há coisas que remetem a ideia de aconchego, com objetos confeccionados pelo e para o ser humano. A figura 9 revela que dentro do espaço arquitetônico existe uma imensidão, com o céu simbolizando o infinito. Alighieri (1998) apresenta o “Paraíso” através da trajetória pelos céus invisíveis até “O céu invisível”, ou “Céu dos céus”, afirmando que não é possível descrever a experiência de chegar neste através da transumanação. Esta não pode ser entendida por palavras, é preciso vivenciar a ação, a qual está destinada a poucos escolhidos. No entanto, algumas pinturas de Beksinski nos permite imaginar essa sensação, através do etéreo, tal como essa. Todavia elas são muito raras, a maioria nos arrasta para o Inferno de Dante. [7]

 

Considerações finais

As cidades dos mortos de Beksinski vão do Inferno ao Paraíso de Dante; são habitadas ora por vermes ora por mortos esqueléticos; ou ainda, por mortos que se parecem muito com os vivos e vice-versa; lembram tanto o Purgatório quanto uma simples barreira de corais; fazem referência a divindade através das suas igrejas góticas ao mesmo tempo que parecem cenários de filmes de terror. Todavia, todas nos lembram continuamente do nosso inevitável destino: a morte e trazem à tona o mistério da nossa existência. Nesse sentido, “as imagens tomam parte do que os pobres mortais inventam para registrar seus tremores (de desejo e de temor) e suas próprias consumações.” (DIDI-HUBERMAN, 2012).

Sabemos que a cidade não pode ser reduzida a sua estrutura arquitetônica, no entanto utilizamos alguns elementos comuns as elas em relação a seu aspecto formal para selecionarmos as pinturas desse artista sobre a urbe. Mas, como vimos, nem sempre essas referências apareceram de modo explícito devido a fantasia presente nas obras e/ou na interpretação imaginativa da autora. Vimos, também, que o surrealismo grotesco de Beksinski apresenta alguns elementos “Góticos e/ou Barrocos” e até mesmo Românticos. Além disso, as referências à arte abstrata aparecem no discurso e na prática do artista quando ele afirmou valorizar mais a forma do que o conteúdo e pelo fato dele não ter colocado título nas obras.

Enfim, como a imagem é um vestígio e sua compreensão será sempre lacunar, buscamos, através da montagem, associar as pinturas de Beksinski aos autores que nossa imaginação foi buscando e criamos múltiplos significados para elas, através de um possível caminho de leitura visual à maneira da Divina Comédia de Dante Alighieri (do Inferno ao “Paraíso”). Caminho este que também poderia ter sido invertido, afinal, os pesadelos grotescos “fotografados” por esse artista polonês nos dá mais calafrios do que nos faz pensar no Éden.

 

NOTAS

Ensaio publicado originalmente na revista Art & Sensorium, da Universidade Estadual do Paraná, Brasil. Agradecemos à autora por sua generosidade na atualização para a presente edição. As obras de Zdzislaw Beksinski podem ser visitadas aqui: www.shopbeksinski.com/.

1. Este método de análise permite uma sobreposição de tempos, assim como associações a partir de elementos diversos da memória, os quais podem ser essencialmente imaginativos. (DIDI-HUBERMAN, 2012).

2. Dentre eles, destacamos: Tadeusz Nyczek, Anna Dmochowska e Piotr Dmochowski, Remigiusz Grzela, Liliana Śnieg-Czaplewska, Magdalena Grzebałkowska, Wiesław Banach, Artur Olechniewicz e Katarzyna Winnicka. (KOPTSEVA; REZNIKOV, 2015).

3. É uma expressão francesa que significa “enganar o olho”. Esse engano ocorre por meio da ilusão de ótica criada através de técnicas realistas de pintura, sendo um dos elementos comuns a perspectiva “distorcida/exagerada”.

4. Banach (2005) apud Sokolowska-Smyl (2014) afirma que ele queria fazer Cinema, mas foi obrigado a seguir a carreira da família e cursar Arquitetura.

5. Suas obras também serviram como inspiração para o cenário do filme “Alien” (o design deste filme foi projetado pelo artista suíço Hans Rudolf Giger) e para outros filmes, principalmente de terror. Dentre eles destacamos: “O labirinto do Fauno” e a “Colina Escarlate” de Guillermo del Toro. (KOPTSEVA; REZNIKOV, 2015).

6. Segundo Argan (1994) os períodos históricos são geralmente assinalados de acordo com as mudanças que ocorrem em relação ao período anterior. Aqueles são campos de relações e mudam de acordo com a interpretação dada aos sistemas e suas respectivas relações. Ademais, lugares distintos, na mesma época, podiam estar produzindo trabalhos artísticos sem relação com as características elencadas do período estipulado por uma determinada localidade. Ou seja, as referências ao “Barroco” e ao “Gótico” afirmadas por Beksinski, assim como sua influência do “Romantismo” polonês, podem ter características distintas das que foram elencadas por Argan (1994) e Gombrich (1993) sobre esses períodos. No entanto, para buscarmos relações com os trabalhos do artista em questão nos baseamos nelas, por estas serem mais recorrentes. Cabe ressaltar que apesar dessas influencias de “estilo”, as obras desse artista apresentam mais características do Surrealismo e/ou Realismo Fantástico.

7. Diferentemente do Inferno de Dante representado por Botticelli (1445-1510), o qual buscava apresentar o que estava escrito na Divina Comédia, as imagens sombrias de Beksinski nos remetem a ideia de inferno presente no senso comum, com suas tormentas infindáveis gerando desespero e agonia. Sensações estas, que também estão presentes no texto de Alighieri.

 

REFERÊNCIAS

ALIGHIERI, D. (1265-1321). A divina comédia – Inferno, Purgatório e Paraíso. / Dante Alighieri; Tradução e notas de Italo Eugênio Mauro. – São Paulo: Ed. 34, 1998.

ARGAN, G. C.; FAGIOLO, M. Guia de História da Arte. / Argan Giulio Carlo; Maurizio Fagiolo. Tradução: M. F. Gonçalves de Azevedo. 2º ed. Editora Estampa: Lisboa, 1994.

ASSIS, M. Memórias Póstumas de Brás Cubas. – Editora Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 1994.

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Companhia das Letras, 1990. 1º ed. / Le cità invisibili, 1972. Tradução: Diogo Mainardi.

CANCLINI, N. G. Imaginários culturais da cidade: conhecimento/espetáculo/desconhecimento. In: COELHO, Teixeira (org.). A cultura pela cidade. – São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2008.

DIDI-HUBERMAN, G. Quando as imagens tocam o real. Tradução Patrícia Carmello e Vera Casa Nova. Revista Pós: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG. V. 2. N. 4. Nov. 2012.

FERRARA, L. D. Cidade: imagem e imaginário. In: PESAVENTO, Sandra J.; SOUZA, Célia (orgs.). Imagens urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário. Porto Alegre: Editora da UFRS, 1997.

GOMBRICH, E. A história da Arte. / Ernst Gombrich. Tradução: Álvaro Cabral. Ed. 15º. – Guanabara Koogan: Rio de Janeiro, 1993.

KAFKA, F. (1883-1924). O processo. / Franz Kafka; Tradução e Posfácio Modesto Carone. – São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

КОПЦЕВА, Н. П.; РЕЗНИКОВА, К. В. три картины здислава бексински: как возможно искусство «после освенцима. Вестник Томского государственного университета. 2015 # 400. Tradução: KOPTSEVA, N. P.; REZNIKOV, K. V. Três pinturas de Zdzislaw Beksinski: a arte como uma oportunidade "depois de Auschwitz". Boletim da Universidade Estadual de Tomsk. 2015 # 400.

LIVISKI, I. O surreal polonês aos olhos da arte. Polonicus. Revista de reflexão Brasil – Polônia. Ano VIII – 1. Curitiba, 2017.

MUNFORD, L. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

PESAVENTO, S. A cidade Maldita. In: PESAVENTO, Sandra J.; SOUZA, Célia (orgs.). Imagens urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário. Porto Alegre: Editora da UFRS, 1997.

SOKOLOWSKA-SMYL, B. Zdzislaw Beksinski’s Paintings of the “Fantastic Period” as an Expression of Early Childhood Experience. Tradução: Zdzislaw Beksinski Pinturas do "Período fantástico" como expressão da experiência da primeira infância. Creativity: Theories – Research – Applications. Vol. 1, Issue 1, 2014.

SARAMAGO, J. (1922-2010). As intermitências da morte: romance. / José Saramago. – São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

VÁZQUEZ, A. S. Convite à Estética. /Adolfo Sánchez Vásquez; tradução: Gilson Baptista Soares. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

 

 


VALÉRIA METROSKI DE ALVARENGA (Brasil). Doutora e Mestra em Artes Visuais (UDESC). Graduada em Artes Visuais (Licenciatura e Bacharelado/UFPR). Atualmente leciona a disciplina de Arte na Secretaria do Estado da Educação (SEED/PR) e trabalha como professora colaboradora na UEPG no curso de licenciatura em Artes Visuais. Também atua no Mestrado Profissional - PROFARTES (UDESC). Membro do Grupo de Pesquisa Arte e Formação nos processos artísticos contemporâneos (UDESC), do projeto de pesquisa Observatório da Formação de Professores no âmbito do Ensino de Arte: estudos comparados entre Brasil e Argentina (OFPEA/BRARG) e da Rede Latino-americana de Investigação na Formação de Professores de Arte (LAIFOPA).

 

 


SARA SAUDKOVÁ (República Tcheca, 1967). Fotógrafa e escritora. Sara Saudková fotografa principalmente nus. Do ponto de vista técnico, são principalmente fotos clássicas em preto e branco tiradas em médio formato. Seu trabalho inicial foi influenciado pelo trabalho de Jan Saudek, com quem – como ela diz – aprendeu, porque melhor escola não há. Gradualmente, ela encontrou seu próprio estilo muito distinto. Dedica-se exclusivamente à criação livre – com fotografias encenadas documenta relações entre homens e mulheres – despedidas e esperas e entre: amor, saudade ou solidão. Suas fotos são bem lúdicas, com uma carga erótica. Saudková também escreve livros. Publicou Midnight Fairy Tales, para crianças, bem como o livro autobiográfico Ta zrzavá, Sweaty Back, sobre a crise de um homem de meia-idade bem-sucedido e um romance policial sombrio, Chuva. Nelas, trata de relacionamentos dramáticos, tramas sofisticadas e histórias emocionantes. Ele escreve sua prosa em uma linguagem viva. Sara é nossa artista convidada, a quem agradeço, pois desde nosso primeiro encontro foi muito generosa e simpática.


 


Agulha Revista de Cultura

Número 218 | novembro de 2022

Artista convidada: Sara Saudkovà (República Tcheca, 1967) 

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