terça-feira, 29 de novembro de 2022

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO & MANUEL SIMÕES | Duas vezes Carlos Loures

 


1. ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO |
Carlos Loures [1937-2022]

 

Tinha a compleição lunar dos grandes melancólicos, traçados de tristeza e de doçura, mas tinha também a finura e a firmeza dos seres que insistem com teimosia inflexível naquilo que têm dentro de si por essencial. Juntava ao paradoxo de uma melancolia combativa, uma elegância discreta no traço, tão patente na linha longitudinal do rosto e no desenho ondulado dos lábios, uma reserva no trato, que não existia sem comoção associada, e uma honesta hombridade, que era menos o resultado da sua vontade que o produto da natureza. Mais do que um homem estudado, que procurava disfarçar as suas sombras e superar os seus defeitos, era, sem deixar de ser um operativo, um homem inocente, que guardou sempre no rosto, como qualquer melancólico, uma genuína candura – talvez a sua principal virtude, já que a absoluta confiança do seu trato dela decorria, e que era seguramente e sem que ele soubesse a sua primeira atração exterior.

Lisboeta de nascimento e de educação, chegou aos 20 aninhos ao Café Gelo, onde se sentou à mesa de Mário Cesariny, de Raul Leal, de Manuel de Lima, de Luiz Pacheco, mas também de jovens da sua idade de quem foi grande amigo próximo – Manuel de Castro, Herberto Helder, António José Forte, José Sebag, José Carlos Gonzalez, Varik, Fernando Saldanha da Gama, Virgílio Martinho e outros. Coube-lhe, em colaboração com Máximo Lisboa, fazer a mais representativa revista que saiu desse grupo, Pirâmide (3 n.os, 1959-1960), e que feitas as contas é porventura a única publicação com que o surrealismo em Portugal conseguiu furar o cerco de silêncio e de vigilância de tão perigosos anos, com uma censura prévia feroz, mesmo que distraída e ignara. Desenhado à mesa do café pelos dois coordenadores e por Cesariny, o primeiro número da revista é uma homenagem à geração que fundou em Lisboa em 1949 o grupo “Os Surrealistas”, enquanto o segundo, que contou já com as dicas de Luiz Pacheco, dá saída em força à jovem geração do Gelo, alguns quase em estreia como Sebag, Forte e Saldanha da Gama. É no rescaldo deste convívio que Carlos Loures se estreia em livro, Arcano Solar (1962), com uma poesia marcada pela assunção consciente dos mecanismos do automatismo.

Mais tarde, no Inverno de 1966, entrou, porém, em polémica com Mário Cesariny no Jornal de Letras e Artes de Azevedo Martins, contestando-lhe nas condições internas e externas de então, com a guerra colonial e a intervenção no Vietname, a oportunidade da aventura surrealista. Em seu lugar, sugeria os princípios combativos do realismo social, ou neorrealismo, como aqueles que melhor se adequavam à intervenção do artista e do poeta na sociedade. Publicou então dois livros – A Voz e o Sangue (1968) e A Poesia deve ser feita por todos (1970) – que lhe valeram problemas com a censura e a polícia política, levando-o por duas vezes à prisão.

A sua obra posterior à revolução não mais perdeu esta componente social, bem patente no seu desejo de representação do real exterior, característica maior de todo o realismo, mesmo do mais evoluído, em que a componente imaginativa de denúncia é tão ou mais importante do que a descrição fidedigna. Os seus últimos livros, o Atlas iluminado (2013), um poema construído por micro poemas que evoluem por idênticos núcleos de significação, e A vida é um desporto violento (2017), uma autobiografia dissimulada e repartida por curtas narrativas em prosa, deixam perceber o regresso do seu primeiro imaginário e até dos seus primitivos processos automáticos, mostrando um autor interessado em fazer convergir a sua primeira paixão e a dissidência posterior a favor dos processos realistas de montagem. É provável que o valor da sua experiência poética resida nesta junção final de dois caminhos irmãos que tão inexplicavelmente desavindos andaram entre nós. Não parece haver na literatura portuguesa muitos autores que com a autoridade dele tenham trilhado com idêntica propriedade as duas sendas, já que o seu livro de estreia se institui de pleno direito dentro da genealogia própria ao surrealismo português e os seguintes constituem exemplos não menos plenos, até pelos encadeamentos policiais que originaram, daquele realismo combativo a que ele deu adesão por volta de 1964 ou 1965.

Carlos Loures acabou de falecer a 3 de janeiro de 2022. Embora doente desde há muito, o seu rosto continuava a ser aquele livro aberto de boas e grandes letras onde nenhum sentimento se disfarçava. Guardou até ao fim uma inocência de criança e uma generosidade espontânea, que tão gratas são de recordar no momento doloroso da sua partida.

 

 


2. MANUEL SIMÕES | Carlos Loures (1937-2022) – Do surrealismo ao realismo social

 

A biografia de Carlos Loures é a de um resistente que nunca se subtraiu à luta pelas causas sociais e políticas, no sentido mais nobre que pode ter a palavra “política”: nasceu em Lisboa (na pessoana rua dos Douradores) em 1937. Em 1958 passou a fazer parte do grupo surrealista do “Café Gelo”, e em 1959-60 foi um dos coordenadores de Pirâmide, revista literária que publicou textos inéditos de Raul Leal, António Maria Lisboa, Mário Cesariny de Vasconcelos, Luiz Pacheco e outros escritores surrealistas ou próximos do movimento surrealista (1). Foi funcionário da RTP de 1960 a 1961 e da Fundação Calouste Gulbenkian de 1962 a 1971. Em 1962, com António Cabral, António Barreto, Eurico Figueiredo, Ascenso Gomes e Eduardo Guerra Carneiro, integrou o Movimento Setentrião, de Vila Real, tendo organizado a Antologia da Poesia Contemporânea de Trás-os-Montes e Alto Douro (1968), nessa altura já a viver em Tomar, para onde se transferiu em 1963.

Foi nesta cidade que o conheci, era então Carlos Loures encarregado da biblioteca itinerante da Fundação C. Gulbenkian, e a partir daí levámos a cabo muitas iniciativas conjuntas, como ele próprio teve oportunidade de referir: “Em Tomar, onde com Manuel Simões e outros “meliantes” editámos num pachorrento semanário local um suplemento cultural com o elucidativo título de Labareda […] que os bombeiros do costume extinguiram […] Nós passámos logo a outra iniciativa incendiária” (2). O suplemento (13 números, 1963-64) levou-nos à participação activa nos “Encontros de Suplementos e Páginas Culturais da Imprensa Regional”, movimento que depois se alargou à imprensa nacional, embora deles só tenham participado o Diário Popular e os escritores Mário Braga, Ferreira de Castro, Mário Sacramento e Manuel Ferreira, este em representação da Sociedade Portuguesa de Escritores. No II destes “Encontros”(1964), organizado pelo jornal A Nossa Terra, de Cascais, onde esteve presente o escritor catalão Fèlix Cucurull, foi decidido criar o boletim Encontro, de que apenas saíram dois números: em Fevereiro de 1965 todos os arquivos e material gráfico foram apreendidos pela PIDE e preso um dos coordenadores, precisamente Carlos Loures.


Ainda em Tomar, foi um dos fundadores da colecção Nova Realidade, inaugurada com o volume Cantares (1966), primeira edição absoluta dos textos das canções de José Afonso, edição que viria a ter depois muitos seguidores, tendo ainda publicado, entre outros títulos, a primeira edição de O Canto e as Armas, de Manuel Alegre. E foi um dos coordenadores das antologias poéticas Hiroxima, “depoimentos de poetas portugueses sobre o flagelo atómico, no 20.º aniversário de Hiroxima e Nagasáqui” (1967), Vietname, “depoimentos de poetas portugueses sobre a agressão norte-americana ao Vietname” (1970), e Poemabril, “depoimentos de alguns ‘Capitães de Abril’ e poemas de autores portugueses no X aniversário do 25 de Abril” (1984; 2.ª edição, 1994). Depois da saída de Tomar, foi director executivo de uma conhecida editora internacional (Publicações Alfa) de 1971 a 1995, criando a seguir a editora “Beta-Projectos Editoriais”, da qual mais tarde se desvinculou.

A obra literária de Carlos Loures é plurifacetada e reparte-se por vários géneros, o mais importante dos quais é sem dúvida a poesia, a primeira proposta a ser trabalhada na oficina do escritor, e cuja visibilidade se manifesta com a publicação de Arcano Solar (1962), precisamente abrangendo o período declaradamente surrealista do autor. Seguiram-se depois A Voz e o Sangue (1967, 2.ª ed. 1968); A Poesia Deve Ser Feita por Todos (1970); O Cárcere e o Prado Luminoso (1990); e O Atlas Iluminado. Manual de Poemonáutica (2013). Já no âmbito da ficção, que se intercala no processo de publicação da sua obra, são de assinalar Talvez um Grito (1985); A Mão Incendiada (1995); A Sinfonia da Morte (2007) sobre o episódio histórico do Regicídio de 1908; O Xadrez Sem Mestre (2012); Arma Carregada de Futuro (2017); e A Vida é um Desporto Violento. Subsídios para uma autobiografia verdadeiramente falsa (2018). A estes interesses há a acrescentar um texto escrito para o teatro, O Ministério do Amor (1970).

Se, como se disse, Arcano Solar recolhe poemas da aventura surrealista, a obra sucessiva pode inscrever-se no âmbito do realismo social, denotando uma reflexão profunda sobre a própria função da literatura. Bastaria seguir a sua actividade de crítico de poesia no suplemento do Jornal de Notícias, ainda nos anos 60, para se avaliar a evolução ideológica que desencadeou a conhecida polémica entre Carlos Loures e Mário Cesariny de Vasconcelos nas páginas do Jornal de Letras e Artes, de Azevedo Martins (1966). Em todo o caso, como refere um leitor seu, “os seus últimos livros, o Atlas iluminado (2013), um poema construído por micropoemas que evoluem por idênticos núcleos de significação, e A vida é um desporto violento (2017), uma autobiografia dissimulada e repartida por curtas narrativas em prosa, deixam perceber o regresso do seu primeiro imaginário e até dos seus primitivos processos automáticos, mostrando um autor interessado em


fazer convergir a sua primeira paixão e a dissidência posterior a favor dos processos realistas de montagem” (3). Condividindo a opinião do crítico, sobretudo em relação a A vida é um desporto violento, já escrevi noutro lugar textual: “este livro de memórias, representando embora uma geração, fala-nos de uma situação política para revelar as cicatrizes das experiências. E isto através da ironia e da componente da revolta anárquica, próprias da estética do surrealismo, a confirmar que nós somos o que somos pela soma das memórias” (4). Deve dizer-se, no entanto, que as crónicas/contos deste livro acompanharam o autor desde muito cedo – já as ouvi contar nos anos 60 –, acrescentadas pelas aventuras do “gangue da cidade de província” [Tomar], e foram ficando textos inacabados até à sua publicação em volume (2018). A este propósito, creio ser relevante trazer aqui a posição de Carlos Loures relativamente à sistematização literária que se tem feito entre nós: “contesto o direito de críticos e historiadores literários, à boa maneira dos entomólogos, espetarem alfinetes nas obras, com a classificação lineísta e latina – do insecto. Egito Gonçalves e Daniel Filipe, eram surrealistas ou neorrealistas? E Paul Éluard? “Liberté” é um poema surrealista? Não me interessa a resposta a qualquer das perguntas. Daniel Filipe e Egito defenderam as suas utopias com versos distópicos. Ponto final.” (5)

Creio que as vicissitudes da História não alteraram o pensamento de quem, tendo participado activamente, antes e depois do 25 de Abril, na tentativa de transformação social do país – actividade paga com o cárcere –, não chegou a vislumbrar o “prado luminoso”.

 

NOTAS

1) O projecto de Pirâmide está descrito em Manuel Simões, “Carlos Loures, a Pirâmide e o Grupo Surrealista do Café Gelo”, A Ideia, revista de cultura libertária, II Série, vol. 16, n.º 71-72, Outono de 2013.

2) Segmento do texto lido em 20 de Abril de 2017 na SPA, na apresentação da 2.ª edição de Dois Povos Ibéricos: Portugal e Catalunha, de Fèlix Cucurull, trad. de Carlos Loures.

3) A. Cândido Franco, “Carlos Loures (1937-2022). Do surrealismo ao realismo combativo”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Ano XLI, n.º 1339, de 26-1 a 8-2 de 2022.

4) Manuel Simões, “O veio surrealista nas histórias picarescas de Carlos Loures”, As Artes Entre as Letras, 16-1-2019.

5) Carlos Loures, Arma Carregada de Futuro, Lisboa, Ed. Colibri, 2017.

 

 


ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Ensaísta e editor. Nasceu e cresceu em Lisboa, num dos mais vetustos bairros da cidade, a Graça, em 1956. Aos sete anos foi aluno de Alice Gomes. Há quase quatro décadas que está ligado ao ensino público, onde se esforça por desaprender muito do que lhe ensinaram. Coordena, edita e dirige desde 2012 a revista de “cultura libertária” A Ideia, que se publica desde 1974 e onde Mário Cesariny colaborou em vida. Tudo o que procura é poder inscrever no seu registo o que um inspirado escritor francês mandou gravar na sua lápide: Je cherche l’or du temps.

 


MANUEL SIMÕES. Poeta, tradutor e ensaísta, nasceu em Jamprestes, Ferreira do Zêzere. Foi um dos fundadores da coleção (depois editora) Nova Realidade (1966) e pertenceu à redação da revista Vértice entre 1967 e 1969. Professor do Ensino Secundário (1969-1971) na extinta Escola Veiga Beirão, viveu a seguir em Itália de 1971 a 2003, país onde foi inicialmente Leitor de Português nas Universidades de Bari e de Veneza, e, depois, professor associado de literaturas portuguesa e brasileira na Universidade "Ca' Foscari" de Veneza (1975-2001), tendo sido igualmente professor de literatura portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade de Florença entre 1986 e 1989. Foi um dos fundadores, em 1978, da revista Rassegna Iberistica (Veneza), a cuja redação pertenceu até 2012. Traduziu para português alguns escritores italianos e retroverteu para italiano alguns escritores portugueses. Organizou e prefaciou a antologia Poeti Portoghesi Contemporanei (Veneza, 1999).




SARA SAUDKOVÁ (República Tcheca, 1967). Fotógrafa e escritora. Sara Saudková fotografa principalmente nus. Do ponto de vista técnico, são principalmente fotos clássicas em preto e branco tiradas em médio formato. Seu trabalho inicial foi influenciado pelo trabalho de Jan Saudek, com quem – como ela diz – aprendeu, porque melhor escola não há. Gradualmente, ela encontrou seu próprio estilo muito distinto. Dedica-se exclusivamente à criação livre – com fotografias encenadas documenta relações entre homens e mulheres – despedidas e esperas e entre: amor, saudade ou solidão. Suas fotos são bem lúdicas, com uma carga erótica. Saudková também escreve livros. Publicou Midnight Fairy Tales, para crianças, bem como o livro autobiográfico Ta zrzavá, Sweaty Back, sobre a crise de um homem de meia-idade bem-sucedido e um romance policial sombrio, Chuva. Nelas, trata de relacionamentos dramáticos, tramas sofisticadas e histórias emocionantes. Ele escreve sua prosa em uma linguagem viva. Sara é nossa artista convidada, a quem agradeço, pois desde nosso primeiro encontro foi muito generosa e simpática.

 



Agulha Revista de Cultura

Número 218 | novembro de 2022

Artista convidada: Sara Saudkovà (República Tcheca, 1967) 

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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