1. ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Carlos Loures [1937-2022]
Tinha a compleição lunar dos grandes melancólicos,
traçados de tristeza e de doçura, mas tinha também a finura e a firmeza dos seres
que insistem com teimosia inflexível naquilo que têm dentro de si por essencial.
Juntava ao paradoxo de uma melancolia combativa, uma elegância discreta no traço,
tão patente na linha longitudinal do rosto e no desenho ondulado dos lábios, uma
reserva no trato, que não existia sem comoção associada, e uma honesta hombridade,
que era menos o resultado da sua vontade que o produto da natureza. Mais do que
um homem estudado, que procurava disfarçar as suas sombras e superar os seus defeitos,
era, sem deixar de ser um operativo, um homem inocente, que guardou sempre no rosto,
como qualquer melancólico, uma genuína candura – talvez a sua principal virtude,
já que a absoluta confiança do seu trato dela decorria, e que era seguramente e
sem que ele soubesse a sua primeira atração exterior.
Lisboeta de nascimento
e de educação, chegou aos 20 aninhos ao Café Gelo, onde se sentou à mesa de Mário
Cesariny, de Raul Leal, de Manuel de Lima, de Luiz Pacheco, mas também de jovens
da sua idade de quem foi grande amigo próximo – Manuel de Castro, Herberto Helder,
António José Forte, José Sebag, José Carlos Gonzalez, Varik, Fernando Saldanha da
Gama, Virgílio Martinho e outros. Coube-lhe, em colaboração com Máximo Lisboa, fazer
a mais representativa revista que saiu desse grupo, Pirâmide (3 n.os, 1959-1960), e que feitas as contas é porventura
a única publicação com que o surrealismo em Portugal conseguiu furar o cerco de
silêncio e de vigilância de tão perigosos anos, com uma censura prévia feroz, mesmo
que distraída e ignara. Desenhado à mesa do café pelos dois coordenadores e por
Cesariny, o primeiro número da revista é uma homenagem à geração que fundou em Lisboa
em 1949 o grupo “Os Surrealistas”, enquanto o segundo, que contou já com as dicas
de Luiz Pacheco, dá saída em força à jovem geração do Gelo, alguns quase em estreia
como Sebag, Forte e Saldanha da Gama. É no rescaldo deste convívio que Carlos Loures
se estreia em livro, Arcano Solar (1962),
com uma poesia marcada pela assunção consciente dos mecanismos do automatismo.
Mais tarde, no Inverno
de 1966, entrou, porém, em polémica com Mário Cesariny no Jornal de Letras e Artes de Azevedo Martins, contestando-lhe nas condições
internas e externas de então, com a guerra colonial e a intervenção no Vietname,
a oportunidade da aventura surrealista. Em seu lugar, sugeria os princípios combativos
do realismo social, ou neorrealismo, como aqueles que melhor se adequavam à intervenção
do artista e do poeta na sociedade. Publicou então dois livros – A Voz e o Sangue (1968) e A Poesia deve ser feita por todos (1970)
– que lhe valeram problemas com a censura e a polícia política, levando-o por duas
vezes à prisão.
A sua obra posterior
à revolução não mais perdeu esta componente social, bem patente no seu desejo de
representação do real exterior, característica maior de todo o realismo, mesmo do
mais evoluído, em que a componente imaginativa de denúncia é tão ou mais importante
do que a descrição fidedigna. Os seus últimos livros, o Atlas iluminado (2013), um poema construído por micro poemas que evoluem
por idênticos núcleos de significação, e A
vida é um desporto violento (2017), uma autobiografia dissimulada e repartida
por curtas narrativas em prosa, deixam perceber o regresso do seu primeiro imaginário
e até dos seus primitivos processos automáticos, mostrando um autor interessado
em fazer convergir a sua primeira paixão e a dissidência posterior a favor dos processos
realistas de montagem. É provável que o valor da sua experiência poética resida
nesta junção final de dois caminhos irmãos que tão inexplicavelmente desavindos
andaram entre nós. Não parece haver na literatura portuguesa muitos autores que
com a autoridade dele tenham trilhado com idêntica propriedade as duas sendas, já
que o seu livro de estreia se institui de pleno direito dentro da genealogia própria
ao surrealismo português e os seguintes constituem exemplos não menos plenos, até
pelos encadeamentos policiais que originaram, daquele realismo combativo a que ele
deu adesão por volta de 1964 ou 1965.
Carlos Loures acabou
de falecer a 3 de janeiro de 2022. Embora doente desde há muito, o seu rosto continuava
a ser aquele livro aberto de boas e grandes letras onde nenhum sentimento se disfarçava.
Guardou até ao fim uma inocência de criança e uma generosidade espontânea, que tão
gratas são de recordar no momento doloroso da sua partida.
2. MANUEL SIMÕES | Carlos Loures (1937-2022) – Do surrealismo ao realismo social
A biografia de Carlos Loures é a de um resistente que
nunca se subtraiu à luta pelas causas sociais e políticas, no sentido mais nobre
que pode ter a palavra “política”: nasceu em Lisboa (na pessoana rua dos Douradores)
em 1937. Em 1958 passou a fazer parte do grupo surrealista do “Café Gelo”, e em
1959-60 foi um dos coordenadores de Pirâmide,
revista literária que publicou textos inéditos de Raul Leal, António Maria Lisboa,
Mário Cesariny de Vasconcelos, Luiz Pacheco e outros escritores surrealistas ou
próximos do movimento surrealista (1). Foi funcionário da RTP de 1960 a 1961 e da
Fundação Calouste Gulbenkian de 1962 a 1971. Em 1962, com António Cabral, António
Barreto, Eurico Figueiredo, Ascenso Gomes e Eduardo Guerra Carneiro, integrou o
Movimento Setentrião, de Vila Real, tendo
organizado a Antologia da Poesia Contemporânea
de Trás-os-Montes e Alto Douro (1968), nessa altura já a viver em Tomar, para
onde se transferiu em 1963.
Foi nesta cidade que o conheci, era
então Carlos Loures encarregado da biblioteca itinerante da Fundação C. Gulbenkian,
e a partir daí levámos a cabo muitas iniciativas conjuntas, como ele próprio teve
oportunidade de referir: “Em Tomar, onde com Manuel Simões e outros “meliantes”
editámos num pachorrento semanário local um suplemento cultural com o elucidativo
título de Labareda […] que os bombeiros
do costume extinguiram […] Nós passámos logo a outra iniciativa incendiária” (2).
O suplemento (13 números, 1963-64) levou-nos à participação activa nos “Encontros
de Suplementos e Páginas Culturais da Imprensa Regional”, movimento que depois se
alargou à imprensa nacional, embora deles só tenham participado o Diário Popular e os escritores Mário Braga,
Ferreira de Castro, Mário Sacramento e Manuel Ferreira, este em representação da
Sociedade Portuguesa de Escritores. No II destes “Encontros”(1964), organizado pelo
jornal A Nossa Terra, de Cascais, onde
esteve presente o escritor catalão Fèlix Cucurull, foi decidido criar o boletim
Encontro, de que apenas saíram dois números:
em Fevereiro de 1965 todos os arquivos e material gráfico foram apreendidos pela
PIDE e preso um dos coordenadores, precisamente Carlos Loures.
A obra literária de Carlos Loures
é plurifacetada e reparte-se por vários géneros, o mais importante dos quais é sem
dúvida a poesia, a primeira proposta a ser trabalhada na oficina do escritor, e
cuja visibilidade se manifesta com a publicação de Arcano Solar (1962), precisamente abrangendo o período declaradamente
surrealista do autor. Seguiram-se depois A
Voz e o Sangue (1967, 2.ª ed. 1968); A
Poesia Deve Ser Feita por Todos (1970); O
Cárcere e o Prado Luminoso (1990); e O
Atlas Iluminado. Manual de Poemonáutica (2013). Já no âmbito da ficção, que
se intercala no processo de publicação da sua obra, são de assinalar Talvez um Grito (1985); A Mão Incendiada (1995); A Sinfonia
da Morte (2007) sobre o episódio histórico do Regicídio de 1908; O Xadrez Sem Mestre (2012); Arma Carregada de Futuro (2017); e A Vida é um Desporto Violento. Subsídios para
uma autobiografia verdadeiramente falsa (2018). A estes interesses há a acrescentar
um texto escrito para o teatro, O Ministério
do Amor (1970).
Se, como se disse, Arcano Solar recolhe poemas da aventura surrealista, a obra sucessiva pode inscrever-se no âmbito do realismo social, denotando uma reflexão profunda sobre a própria função da literatura. Bastaria seguir a sua actividade de crítico de poesia no suplemento do Jornal de Notícias, ainda nos anos 60, para se avaliar a evolução ideológica que desencadeou a conhecida polémica entre Carlos Loures e Mário Cesariny de Vasconcelos nas páginas do Jornal de Letras e Artes, de Azevedo Martins (1966). Em todo o caso, como refere um leitor seu, “os seus últimos livros, o Atlas iluminado (2013), um poema construído por micropoemas que evoluem por idênticos núcleos de significação, e A vida é um desporto violento (2017), uma autobiografia dissimulada e repartida por curtas narrativas em prosa, deixam perceber o regresso do seu primeiro imaginário e até dos seus primitivos processos automáticos, mostrando um autor interessado em
Creio que as vicissitudes da História
não alteraram o pensamento de quem, tendo participado activamente, antes e depois
do 25 de Abril, na tentativa de transformação social do país – actividade paga com
o cárcere –, não chegou a vislumbrar o “prado luminoso”.
NOTAS
1) O projecto de Pirâmide está descrito em Manuel Simões, “Carlos Loures, a Pirâmide e o Grupo Surrealista do Café Gelo”,
A Ideia, revista de cultura libertária,
II Série, vol. 16, n.º 71-72, Outono de 2013.
2) Segmento do texto lido em 20 de Abril de 2017 na
SPA, na apresentação da 2.ª edição de Dois
Povos Ibéricos: Portugal e Catalunha, de Fèlix Cucurull, trad. de Carlos Loures.
3) A. Cândido Franco, “Carlos Loures (1937-2022). Do
surrealismo ao realismo combativo”, Jornal
de Letras, Artes e Ideias, Ano XLI, n.º 1339, de 26-1 a 8-2 de 2022.
4) Manuel Simões, “O veio surrealista nas histórias
picarescas de Carlos Loures”, As Artes Entre
as Letras, 16-1-2019.
5) Carlos Loures, Arma Carregada de Futuro, Lisboa, Ed. Colibri, 2017.
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Ensaísta e editor. Nasceu e cresceu em Lisboa, num dos mais vetustos bairros da cidade, a Graça, em 1956. Aos sete anos foi aluno de Alice Gomes. Há quase quatro décadas que está ligado ao ensino público, onde se esforça por desaprender muito do que lhe ensinaram. Coordena, edita e dirige desde 2012 a revista de “cultura libertária” A Ideia, que se publica desde 1974 e onde Mário Cesariny colaborou em vida. Tudo o que procura é poder inscrever no seu registo o que um inspirado escritor francês mandou gravar na sua lápide: Je cherche l’or du temps.
MANUEL SIMÕES. Poeta, tradutor e ensaísta, nasceu em Jamprestes, Ferreira do Zêzere. Foi um dos fundadores da coleção (depois editora) Nova Realidade (1966) e pertenceu à redação da revista Vértice entre 1967 e 1969. Professor do Ensino Secundário (1969-1971) na extinta Escola Veiga Beirão, viveu a seguir em Itália de 1971 a 2003, país onde foi inicialmente Leitor de Português nas Universidades de Bari e de Veneza, e, depois, professor associado de literaturas portuguesa e brasileira na Universidade "Ca' Foscari" de Veneza (1975-2001), tendo sido igualmente professor de literatura portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade de Florença entre 1986 e 1989. Foi um dos fundadores, em 1978, da revista Rassegna Iberistica (Veneza), a cuja redação pertenceu até 2012. Traduziu para português alguns escritores italianos e retroverteu para italiano alguns escritores portugueses. Organizou e prefaciou a antologia Poeti Portoghesi Contemporanei (Veneza, 1999).
SARA SAUDKOVÁ (República Tcheca, 1967). Fotógrafa e escritora. Sara Saudková fotografa principalmente nus. Do ponto de vista técnico, são principalmente fotos clássicas em preto e branco tiradas em médio formato. Seu trabalho inicial foi influenciado pelo trabalho de Jan Saudek, com quem – como ela diz – aprendeu, porque melhor escola não há. Gradualmente, ela encontrou seu próprio estilo muito distinto. Dedica-se exclusivamente à criação livre – com fotografias encenadas documenta relações entre homens e mulheres – despedidas e esperas e entre: amor, saudade ou solidão. Suas fotos são bem lúdicas, com uma carga erótica. Saudková também escreve livros. Publicou Midnight Fairy Tales, para crianças, bem como o livro autobiográfico Ta zrzavá, Sweaty Back, sobre a crise de um homem de meia-idade bem-sucedido e um romance policial sombrio, Chuva. Nelas, trata de relacionamentos dramáticos, tramas sofisticadas e histórias emocionantes. Ele escreve sua prosa em uma linguagem viva. Sara é nossa artista convidada, a quem agradeço, pois desde nosso primeiro encontro foi muito generosa e simpática.
Agulha Revista de Cultura
Número 218 | novembro de 2022
Artista convidada: Sara Saudkovà (República Tcheca, 1967)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
ARC Edições © 2022
∞ contatos
Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL
https://www.instagram.com/floriano.agulha/
https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/
Nenhum comentário:
Postar um comentário