terça-feira, 29 de novembro de 2022

ALFREDO MARGARIDO | Surrealismo negro

 


Reflectir hoje sobre o que foi ou pode ter sido a intervenção dos surrealistas e do surrealismo na Luanda e na Angola dos anos 1954-1958 não é encargo fácil, dadas as múltiplas implicações políticas e culturais que antes e depois daquele momento assinalaram o desenvolvimento do colonialismo português. Por outro lado, relendo hoje a parte substancial do que naquela época escreveu a imprensa angolana, percebe-se de forma clara que aquela intervenção, cujo centro foi a exposição de Artur Cruzeiro Seixas em Janeiro de 1957, desempenhou um papel crucial como revelador dos fantasmas da sociedade colonialista portuguesa. Não me parece que todos estes factos possam ser analisados em clave puramente estética, visto que eles, como de resto todas as propostas de criação e invenção da época, apresentavam um aspecto ético essencial. Daí a inevitável diferença entre o ético e o estético, e a necessidade de considerar no seu conjunto uma acção que desencadeou reacções brutais na elite branca angolana. Mergulharemos assim numa estrutura social que nos é vizinha no tempo, mas que já hoje nos aparece como arcaica e ultrapassada, tendo já desaparecido as formas de relacionamento étnico que a caracterizavam e determinavam. Nem por isso deixam de ser menos úteis, algumas considerações sobre a intervenção surrealista que nela teve lugar; úteis e até reveladoras, pois que graças às reacções que provocou, a fechada sociedade dos colonialistas brancos pôs a nu a relativa insegurança em que vivia e o precário equilíbrio da sua autoridade. Se a acção surrealista de que falamos não teve, no plano das decisões, o mínimo efeito prático, parece-me que da releitura dos factos em causa se pode tirar uma proveitosa lição, que, posto que provisória, serve para fazer luz sobre a força de invenção nas sociedades onde por sistema é sufocada.

Pode talvez surpreender a violência da reacção branca, mas também a mobilização de todos os meios de comunicação para comentarem aquela mostra, que se inseria, em plano mais limitado, no seio das actividades que o pequeno grupo surrealista havia realizado no meio luandense e mais largamente angolano. O grupo era formado por Artur Manuel do Cruzeiro Seixas, José Manuel Soares Guedes, Manuel António da Silva Júnior, Maria Manuela Margarido, de quem aqui assina e de Acácio Barradas, com intervenções mais ou menos localizados; à distância, porém, é necessário considerar também Alfredo Azevedo, Jorge Costa e um velho militante do Partido Comunista, que nos apoiou com teimosa persistência, o meu ex-camarada de prisão no Porto, Antero Moreira, que naquela época era contabilista em Luanda. O tempo não esclarece tudo, mas permite às vezes que os contornos se façam mais nítidos e que desapareça o cerrado véu que impede a leitura cristalina. A imprensa e a rádio não se mobilizaram apenas em torno da exposição de Cruzeiro Seixas e não responderam só às provocações surrealistas; defenderam, ademais, um conceito de hegemonia branca, inesperadamente atacada nos fundamentos por uma manifestação que não só transgredia os códigos estéticos vulgarmente praticados e aceites, como propunha a sua abolição, oferecendo em troca uma arte bárbara, apresentada como mais próxima da África do que da Europa. Esta posição aparecia então, e aparecerá ainda hoje a muitos, como de todo inaceitável, já que alterava um dos pontos de referência do sistema: o belo não era branco mas negro. É fácil reconhecer aqui, embora talvez de forma involuntária, a vizinhança com certos segmentos da negritude: para nós, o essencial, porém, era romper o mais sistematicamente e coerentemente possível com o mundo de dominação dos brancos.

Se a nossa actividade anterior e a mostra de Janeiro de 1957 pudessem ter deixado qualquer dúvida, algumas declarações ulteriores, as minhas em particular, se encarregaram de as eliminar. É verdade que elas hoje revelam claramente a falta dum claro enunciado político, que, mesmo nos momentos em que está presente, é muito confuso. E nenhuma surpresa há nisso: não havia naquela época em Portugal e menos ainda em Angola, tirando alguns minúsculos grupos africanos, quem tivesse um vocabulário político coerente. Demais a censura era uma realidade e o grupo de censores em acção na Luanda daquele tempo cumpria com rigorosa e cega determinação a sua tarefa. Não vale a pena esmiuçar pormenores, mas numa sociedade branca extremamente minoritária e solidária, cada passo devia ser controlado: cautela compreensível do ponto de vista do aparelho repressivo. As nossas posições podiam ser também ingénuas, como ingénua seria a nossa acção, mas não por isso foram menos reveladoras.

A violenta reacção da população branca de Angola, através dos seus “teóricos” que eram os jornalistas, e a mobilização da imprensa para comentar um acontecimento essencialmente estético, mostram até que ponto a sociedade colonial se sentia comprometida não apenas com a exposição de 1957 como até pelos comentários que ela suscitava. A falta de humour era muita e eloquente. Na exposição foi colocada, atravessada numa porta, uma volumosa corrente de ferro, que havia pertencido a uma locomotiva, a qual foi baptizada como corrente de ar. A colocação do objecto, que parecia ter como único objectivo impedir a passagem, criava a princípio perplexidade, e depois irritação, e já que não constava do catálogo, a pergunta fazia-se inevitável: o que é? Mais tarde, quando todos sabiam já que a exposição erro conjunto formado pelos objectos mais os seus símbolos, juntava-se: o que quer dizer? A resposta – nem fria nem provocatória – era a seguinte: não se vê mesmo que se trata duma corrente de ar? A deslocação daquele objecto pesado e reconhecível para um novo lugar, onde, permanecendo reconhecível, ganhava uma nova e inesperada categoria, irritava em alto grau os colonos de Luanda. Foram muito poucos aqueles que responderam com um sorriso de cumplicidade; a maior parte protestou contra aquela mentira da inteligência destemida e exorbitante dos surrealistas.


Neste episódio sobressai já com nitidez aquilo que mais preocupava a população branca e colonizadora; os objectos da vida comum e do dia-a-dia, facilmente identificados e reconhecíveis, tinham outras potencialidades e podiam, se usados com habilidade, assumir papéis diferentes. Ficava assim posta em evidência a polissemia do objecto, que se revelava como a forma mais autêntica de o abordar. Uma tal revelação não só tornava o mundo incómodo como continha de forma implícita, ou até mesmo francamente explícita, uma sugestão: o mundo não é como vocês julgam tê-lo organizado mas estrutura-se de modo autónomo, independentemente dos vossos desejos. Assim, se o mundo dos objectos do quotidiano podia ser transferido para um outro espaço, mais preocupante parecia ainda ser a deslocação dos homens. Também eles eram dominados, mas também eles podiam entrar depressa numa lenta deriva de sentido que os levasse a expulsar os brancos e o seu poder. A sociedade branca deu-se conta de forma acentuada, naquele princípio de 1957, que o seu domínio não era assim tão total como ela desejava e pensava.

Também a reacção diante dum outro objecto é singularmente reveladora. Tratava-se dum tabuleiro de xadrez com uma caixa que continha as peças e da qual saía uma longa cabeleira negra que flutuava no espaço como uma alga ou uma nuvem. A relação entre o objecto geométrico e o carácter aparentemente livre dos cabelos criava surpresa, se bem que não fosse óbvia a intenção do objecto assim criado. O sentido oculto estava noutro ponto, e nas visitas demoradas, organizadas ou desorganizadas, era necessário esclarecer-lhe o sentido. As peças, a preto e branco, postulavam uma interpretação das cores: não podia existir nem tabuleiro nem jogo se não se considerava a necessidade funda e constante de igualdade racial. Os espaços brancos e negros equilibravam-se alternadamente, e no confronto do jogo, entre peças brancas e negras, entre rei negro e rei branco, não havia uma prioridade de dominação mas apenas a igualdade proposta e imposta pelo acaso. O nosso objecto desejava chamar a atenção sobre a estrutura que devia ser proposta a qualquer sociedade e em especial àquela em que vivíamos: a igualdade. O antropomorfismo subtilmente sugerido, ou até imposto pela cabeleira negra servia como elemento revelador, para colocar ainda mais em evidência o sentido humano da nossa proposta.

Se as explicações sobre a corrente de ar eram só provocadoras, ou desse modo podiam ser interpretadas, já que induziam um mal estar que podia ser superado se o espectador considerasse que tudo aquilo pertencia ao domínio do irracional, a reacção frente ao tabuleiro antropomorfizado não era do mesmo tipo, nem podia sê-lo, pois não existia aí a mínima ambiguidade interpretativa; nesse momento, como no seguinte, a simples hipótese duma paridade de grupos étnicos não se limitava a desgostar, mas repugnava. Creio que as nossas propostas e as reacções que suscitaram não podem ser compreendidas se não se tem em conta o contexto em que se situavam, onde a mais pequena invocação da pura e simples igualdade jurídica ou constitucional dos direitos provocava a cólera dos colonos, que justificavam o seu privilégio social com a cor branca da pele, por vezes um branco mais teórico do que real, ou melhor ainda com a ausência, também só hipotética, duma única gota de sangue negro. É então óbvio que a nossa proposta de igualdade, simbólica por um lado, mas acompanhada por outro por novas manifestações e atitudes, se colocava como um desafio à maioria branca, presunçosa da sua missão civilizadora, ao ponto dum qualquer branco, privado de gosto e de cultura, se considerar superior a qualquer negro, desprezando, como se soubesse ajuizar com critério, as criações estéticas africanas.

Em conclusão a exposição tornou-se bem depressa o lugar onde eram postos em causa os valores sagrados daquele mundo colonial. Numa declaração que me foi pedida pelo jornalista Acácio Barradas, nosso cúmplice activo na divulgação jornalística das nossas obras de denúncia dos vícios do colonialismo, quis expor os pontos que me pareciam mais significativos: o carácter da sociedade colonial inteiramente votada a obter lucro a qualquer custo e a existência de outras hipóteses sociais. Para o primeiro ponto apoiei-me em Fernando Pessoa, que tinha denunciado os cadáveres adiados que procriam; quanto ao segundo, tentei demonstrar que apenas na sociedade negra, e porventura em alguns nichos campesinos, teria sido possível encontrar uma motivação suficiente para continuar a viver e sobretudo para transformar radicalmente o que existia. Foi a proverbial gota de água a mais, que fizeram explodir os insultos, como de resto era inevitável. Um comerciante sério, Jaime de Amorim, proprietário duma casa de ferragens na baixa da cidade, adiantou-se a sugerir em segredo coisas sórdidas contra nós, que teriam significado a nossa destruição, afirmando que ele e os seus colegas estavam na disposição de colocar as coisas no seu lugar. Com a violência, naturalmente: e nada disto é para admirar, já que a cidade de Luanda, como qualquer outra cidade africana onde uma minoria domina sobre uma maioria, respirava o medo, o pânico, talvez mesmo a morte.


Se as exposições e a actividade surrealista em Portugal, e em Lisboa mais do que em qualquer outro lugar, sempre suscitaram contra si a cólera dos bem pensantes e até daqueles que por si nada pensavam, um resultado ainda mais dramático foi obtido em Luanda, com a totalidade da população branca, a que se juntou uma importante parcela da mestiça, condenando-nos em nome da estética e sobretudo mostrando-se disposta a defender-se duma ameaça vaga mas sentida como muito perigosa. E se o contexto cultural de Lisboa ainda podia permitir alguma ilusão sobre a veemência da rejeição, em Luanda não existia um tal contexto e as reacções eram mais nuas e cruas. Não se pode porém esquecer que a exposição de Azevedo, Lemos e Vespeira, na Casa Jalco, em 1951, provocou uma exposição por parte dos comerciantes de Lisboa, pedindo que a mostra fosse encerrada, pois constituía um atentado à honestidade deles. Ainda assim, podia-se sempre invocar diante das autoridades, no campo da estética, os comentadores reconhecidos e toda a parafernália da cultura para defender uma actividade puramente criativa. Isto em Luanda não era possível, pela falta dum tecido cultural que permitisse defesa ou legitimação.

A falta deste tecido, que nos podia ter servido de escudo, provocou ainda outros efeitos reveladores. A população de Luanda, e uma parte significativa da população do resto de Angola, informada pela imprensa e pela rádio, sentiram a exposição de 1957 como uma manifestação de incrédula alucinação: a iniciativa partia de brancos que não hesitavam em colocar em cima da mesa a hipótese duma africanização da cultura. É preciso aqui ter consciência do carácter eminentemente racista da sociedade portuguesa, que nos trópicos se acentua ainda mais. Diz-se um pouco por todo o lado, e Gilberto Freyre muito contribuiu para consolidar esta tese, que o luso-tropical não tem o mesmo código de comportamento racial dos holandeses e dos ingleses. Todos sabemos que não é verdade: a sociedade portuguesa pratica o racismo dos hipócritas, dos que não ousam olhar de frente a questão, mas qualquer um se pode dar conta que a exclusão existe. Para o demonstrar bastava então a topografia de Luanda, com um pequeno núcleo, a cidade baixa ou branca, e em volta a imensa cidade africana e negra, com os vários bairros ou aglomerados, de nomes bem expressivos (Cayatte, Prenda, Lixeira...).

Foi até num destes bairros que nos instalámos, numa casita da Circunvalação, isto numa noite em que Cruzeiro Seixas e eu nos decidimos a pintá-la, depois de termos comprado na loja mais próxima todas as latas de tinta que tinham. Pintura improvisada ao máximo, sem plano determinado, mas que procurava a adesão dos nossos vizinhos africanos, que tanto entravam para juntar um traço insólito, uma extravagância, uma sugestão. Uma casita que afinal provocou um conflito entre nós e o encarregado da ordem pública na cidade africana, o famoso Poeira, que não podia admitir a existência daquela ilhota africana, a qual não podia controlar com os mesmos meios despóticos que usava com os africanos. Só a nossa presença naquela zona era já um sintoma duma osmose profunda entre surrealistas e africanos: uma convivência e uma preferência que era preciso condenar peremptoriamente. Também as outras actividades por nós desenvolvidas não deixavam dúvidas quanto à loucura das propostas. Uma vez comprámos um grande automóvel, modelo de 1925, com estofos de veludo verde, e decidimos transportar nele uma gigantesca árvore de cajú que fora desenraizada para dar lugar a uma construção, com o fito de a replantar no nosso logradouro que não tinha árvores suficientes para o nosso gosto. Num domingo saiu à estrada toda a população branca da cidade para assistir à passagem daquele inesquecível cortejo, acompanhado ainda musicalmente por alguns amigos africanos que havíamos convidado. Infelizmente o cajú não pegou e este facto é ainda hoje uma das minhas grandes tristezas luandinas.

Era necessário tomar também em mãos a reapropriação da natureza. Um grande número de objectos expostos foi montado a partir de restos abandonados por um mar generoso nas intermináveis praias dos arredores. E mais uma vez a sociedade branca era forçada a estabelecer uma conexão com esta natureza desprezada e sobretudo desfigurada. O crescimento de Luanda podia medir-se pelo número de embondeiros abatidos para dar lugar às casas dos brancos, ao capital branco, ao capitalismo branco. A relação directa entre o embondeiro e a população negra era destilada no texto de apresentação da exposição; através duma tradução de Lautréamont punha-se em relevo a qualidade mágica do embondeiro. Isto era uma outra forma de provocação, pois esta árvore, que fornecia frutos comestíveis, madeira para construções e até água, já que armazenava este líquido no momento das chuvas, assim se enraizando de forma incontornável na vida dos negros africanos, era tomada pelo homem europeu apenas como uma árvore exótica e por isso insignificante. De novo a visão que nós, surrealistas, tínhamos da África era diferente da concepção utilitarista da colónia branca.

A operação de recuperação dos detritos litorais funcionou às mil maravilhas no sentido desejado pelos surrealistas. Na natureza – e era isto que se procurava dar a entender – não há desperdícios; a natureza, em cada fase, apenas propõe formas novas, ao contrário de tudo o que acontece na sociedade branca e aos objectos que ela produz. Um albatroz morto pelos caçadores europeus, caído no mar e restituído às praias reduzido a esqueleto devido à voracidade dos peixes e dos crustáceos transformava-se logo num concentrado de propostas plásticas, que bastava deixar sedimentar para que pudessem ser usadas na reconstrução do universo. Improvisadamente o desperdício autonomizava-se, propunha-se como exemplo e incitava a criticar o gosto destrutivo da sociedade branca, incapaz de compreender a subtileza das proposições da natureza. Neste campo acontecia o nosso encontro com a sociedade africana: porque ao mesmo tempo que os brancos denunciavam sistematicamente a nossa acção, os africanos vinham visitar a exposição misturando-se com os brancos e encontrando nela motivos de adesão e de entusiasmo. Também nesta forma de reagir os africanos se opuseram ao snobismo dos brancos: ou aprovavam, compreendendo e amando, ou reprovavam, mas sem falsos argumentos intelectuais, privados de afecto.


A nossa mostra, e fora dela de toda a nossa actividade criativa e provocatória, não prescindia, é verdade, de construção intelectual, mas exigia também uma dimensão afectiva, dimensão esta quase inexistente no mundo branco, absorto de todo na procura do lucro. Na verdade a denúncia do espírito comercial de Luanda continha a denúncia de todo o sistema baseado na venda da força de trabalho e na venda da terra. A África de expressão portuguesa, como as outras regiões do continente, havia sido vítima desta transformação essencial da economia liberal. Assalariados, submetidos ao código urbano, os africanos estavam excluídos da natureza e todavia compreendiam a essência da nossa proposta, que refutava antes de mais os elementos urbanos puros. Não alinhando por inteiro com a posição de denúncia da cidade que havia sido feita pelos expressionistas alemães ou por alguns poetas portugueses, como Gomes Leal e Teixeira de Pascoaes, não podíamos ainda assim aceitar a topografia de Luanda, rigidamente dividida num espaço branco e num espaço negro. Nisto os surrealistas eram mais coerentes que a oposição política, já que denunciavam o desfasamento existencial entre a proposta europeia e a qualidade da vida, enquanto os segundos não iam além dum discurso formal que elogiava os valores duma oposição política suficientemente vaga, promovida de resto por homens que pertenciam ao escol dominante e controlavam em qualquer caso alavancas essenciais da economia angolana. Ao invés os surrealistas apresentavam-se sem suportes oficiais ou oficiosos e não se serviam das instituições para encontrarem uma razão deles, que de resto não queriam alcançar, nem elaborar nem programar, admitindo deste modo uma a-razão e sobretudo uma não-razão, isto é a possibilidade de construir formas livres dos modos razoáveis em que se estruturava o mundo português e europeu no seu conspecto.

É necessário desde já desfazer qualquer engano: os surrealistas não fizeram tudo aquilo que devia ou podia ser feito. Ainda assim, para se entender a importância da sua acção, e fora de qualquer intenção de canonização hagiográfica, que está longe dos meus propósitos, bastará reflectir no facto de, num ambiente no qual os brancos calavam entre si as discórdias para fazerem frente comum contra os negros, terem aparecido alguns brancos que não só desertavam do bloco português como afirmavam a radical superioridade dos valores africanos sobre a miséria dos projectos europeus. A sociedade branca foi forçada a interrogar-se, ainda que pouco e por pouco tempo. Tratou-se, é claro, duma auto-crítica difícil, para não dizer impossível, porque teria comportado um mal-estar que obrigaria a pôr em causa o próprio colonialismo. Por esse motivo a reacção da imprensa foi tão violenta e fechada a qualquer tipo de diálogo: se um branco se afasta, pouco ou muito, dos modelos da sociedade colonial, deve ser de imediato condenado e marginalizado, se não mesmo expulso.

E se a sociedade colonial aceitava os casos de africanização de brancos isolados na floresta que adoptavam usos e costumes africanos, era porque se tratavam de casos esporádicos, sem contacto com o mundo urbano e dizendo respeito a indivíduos de estratos sociais modestos, desprovidos da bagagem cultural indispensável para resistir com eficácia à pressão do contexto social. Tais acidentes, condenáveis em si, tinham porém uma larga utilidade, já que serviam de pretexto para impor normas severas de comportamento, em especial aos africanos, que deviam permanecer nos seus espaços, preservando a sociedade europeia de qualquer forma de contaminação. Ora os surrealistas podiam ser culpabilizados de tudo ou de quase tudo, mas nunca podiam ser acusados de analfabetismo ou de irresponsabilidade no plano cultural ou no social. As suas actividades profissionais, os seus percursos académicos não deixavam qualquer espaço para este género de argumentos. A africanização que eles propunham não só era inédita mas a sua racionalização, a sua teorização impunham argumentos diversos, que os ideólogos do colonialismo não eram capazes de contraditar e por isso se viram constrangidos a recorrer à repressão.

 

NOTA

Ensaio generosamente cedido pela revista A ideia, através de seu editor, Antonio Cándido Franco. A edição em Portugal traz a seguinte nota final:

O texto de Alfredo Margarido (1928-2010) que aqui apresentamos foi publicado pela primeira vez em língua italiana, Surrealismo in Colonia, em Quaderni Portoghesi (Pisa, Giardini Editori, Primavera de 1978, pp. 53-64), com separata. No mesmo número, Jorge de Sena publicou o texto “Notas acerca do surrealismo em Portugal”, datado de Santa Bárbara, 16 de Abril de 1978, por certo um dos derradeiros que escreveu, se não mesmo o último, visto que morria muito pouco tempo depois. Na reedição em livro, em Estudos de Literatura Portuguesa – III (1988), volume organizado por Mécia de Sena, a organizadora, em nota bibliográfica final, esclarece que o texto foi solicitado por Luciana Stegagno-Picchio e por ela traduzido ao italiano. O mesmo terá acontecido por certo com o de Alfredo Margarido, cuja versão original, em língua portuguesa, hoje se desconhece. Optei pois por uma tradução a partir do italiano, dando tanto quanto sei a conhecer pela primeira vez o texto em português. Tendo sido um dos protagonistas da acção surrealista em Luanda, Margarido, que acabou expulso de Angola por causa dela, pagando muito caro a ousadia, deixa nestas linhas um contributo para se começar a entender um segmento quase desconhecido do surrealismo português, a intervenção que ele teve na Luanda colonial da década de 50 do século passado. No livro A Intervenção Surrealista (1966), Mário Cesariny recolheu a propósito desta extensão alguns trechos jornalísticos de bom recorte, centrados todos nas duas exposições de Cruzeiro Seixas na cidade, a primeira em Novembro de 1953, e a segunda em Janeiro de 1957, esta largamente tratada no texto de Margarido. Entre os extractos relativos à segunda mostra, Cesariny recolhe um, publicado em O Comércio de Angola (23-1-57), da autoria de Jaime de Amorim, referido por Margarido como um dos que atacaram a exposição. Deixo um passo do seu texto, que bem pode dar a ver a medida do escândalo que a mostra provocou na sociedade branca angolana: Também eu, depois de engolir um sapo, cobrei ânimo para ir até o antigo “covil dos ladrões”, ver uma coisa a que impropriamente chamaram exposição de pintura... Fui evidentemente logrado, porque ali não há pintura, não há cor; há cheiro... fétido. (...) Não vi pintura, mas vi lixo; não vi arte, mas vi imundície; não vi originalidade, mas sim... ! Um dos interesses do texto de Margarido está em fornecer elementos que vão além dos dois eventos, dando a conhecer a existência dum grupo surrealista organizado em Luanda na segunda metade da década de 50 e que terá acabado por causa da dispersão dos seus membros – Cruzeiro Seixas regressou a Lisboa no início da década seguinte e Margarido foi expulso de Angola, pelo governador-geral, logo no final de 1957, e proibido de aí regressar, tendo-se exilado em Paris no início da década seguinte, não sem antes passar pelas mesas do café Gelo, vindo a colaborar nas mais importantes publicações desta geração, Folhas de Poesia, Pirâmide e KWY. [A.C.F.]

 

 


ALFREDO MARGARIDO (Portugal, 1928-2010). Dedicou-se especialmente à sociologia da literatura e aos problemas africanos. Poeta cuja obra apresenta elementos surrealizantes, bem como ensaísta e ficcionista, foi um dos introdutores do nouveau roman francês em Portugal. Após alguns anos em África, onde trabalhou na produção agrícola em São Tomé e Príncipe, transferiu-se para Angola, onde foi responsável pelo Fundo das Casas Económicas, corporação que pretendia resolver o problema de habitação da classe média ascendente. Todavia a sua intervenção na imprensa provocou uma reacção violenta do Governador-geral, Horácio José de Sá Viana Rebelo, que ordenou a sua expulsão. A partir de 1964 instala-se em Paris, com o apoio de uma bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian, tendo-se integrado nos movimentos de extrema-esquerda. Criou e codirigiu a revista Cadernos de Circunstância.

 


SARA SAUDKOVÁ (República Tcheca, 1967). Fotógrafa e escritora. Sara Saudková fotografa principalmente nus. Do ponto de vista técnico, são principalmente fotos clássicas em preto e branco tiradas em médio formato. Seu trabalho inicial foi influenciado pelo trabalho de Jan Saudek, com quem – como ela diz – aprendeu, porque melhor escola não há. Gradualmente, ela encontrou seu próprio estilo muito distinto. Dedica-se exclusivamente à criação livre – com fotografias encenadas documenta relações entre homens e mulheres – despedidas e esperas e entre: amor, saudade ou solidão. Suas fotos são bem lúdicas, com uma carga erótica. Saudková também escreve livros. Publicou Midnight Fairy Tales, para crianças, bem como o livro autobiográfico Ta zrzavá, Sweaty Back, sobre a crise de um homem de meia-idade bem-sucedido e um romance policial sombrio, Chuva. Nelas, trata de relacionamentos dramáticos, tramas sofisticadas e histórias emocionantes. Ele escreve sua prosa em uma linguagem viva. Sara é nossa artista convidada, a quem agradeço, pois desde nosso primeiro encontro foi muito generosa e simpática.

 



Agulha Revista de Cultura

Número 218 | novembro de 2022

Artista convidada: Sara Saudkovà (República Tcheca, 1967) 

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022

 






                


 

∞ contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

floriano.agulha@gmail.com

https://www.instagram.com/floriano.agulha/

https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/

 

  

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário