BEKSINSKI
Pintar sonhos!
Quem conhece um pouco dos trabalhos de Beksinski diria que ele desejava mesmo era
“fotografar” pesadelos, e daqueles bem sombrios. No entanto, ele confessou que quando
criança temia pensar em adormecer, pensando no que teria que passar
(GRZEBAŁKOWSKA, 2014, apud SOKOLOWSKA-SMYL,
2014). Que ironia, não? Quem antes tinha medo dos próprios pesadelos, resolve expô-los
ao mundo através de pinturas. Esse artista tem um amplo repertório de pinturas,
fotografias, esculturas e imagens manipuladas no computador com conteúdos/temáticas
do Realismo Fantástico ou Surrealismo, as quais apresentam um aspecto tenebroso
e possuem características do grotesco. No entanto, Beksinski sempre afirmou que
não sabia o que suas pinturas significavam, mas que apreciava suas formas. Nem título
ele colocava nas obras, para não induzir a apreciação/interpretação do espectador.
Como veremos a seguir, isso pode estar associado ao fato dele ter trabalhado com
arte abstrata antes de iniciar suas pinturas oníricas (KOPTSEVA; REZNIKOV, 2015).
Assim, pois, além do artista nos dar toda
a liberdade para fazermos nossas divagações poéticas, sabemos que as imagens não
são um simples recorte do mundo, mas sim “uma im-pressão, um rastro, um traço visual
do tempo que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares – fatalmente
anacrônicos, heterogêneos entre eles – que, como arte da memória, não pode aglutinar.”
(DIDI-HUBERMAN, 2012). A medida que a imagem é um espectro, quando este autor pergunta
“que tipo de conhecimento pode dar lugar a imagem?”, como a própria caraterística
do conhecimento não é específica, e nem fechada, a imagem pode ser apresentada/apreciada
através do cruzamento de inúmeros textos e/ou de conversas com outras imagens. Nesse
sentido, pretendemos deixar fruir o imaginário através das cidades pintadas por
Beksinski, as quais associamos à cidade dos mortos. O imaginário:
[...]
corresponde à necessidade do homem de produzir
conhecimento pela multiplicação do significado, atribuir significados a significados;
suas produções não são únicas, mas se acumulam e passam a significar mais por um
processo associativo onde um significado dá origem a um segundo ou terceiro e, assim,
sucessivamente. Pelo imaginário, a imagem urbana - locais, monumentos, emblemas,
espaços públicos ou privados - passa a significar mais pela incorporação de significados
extras e autônomos em relação à imagem básica que lhes deu origem. (FERRARA,
1997).
Seguindo essa vertente, podemos dizer que
a cidade é igual a um sonho. “Tudo o que
pode ser imaginado, pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um
quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo.” (CALVINO,
1990). As cidades que Beksinski apresenta, em geral são sombrias, parecem estar
abandonadas, mas por vezes são habitadas por mortos com corpos esqueléticos. Nos
trabalhos dele “a cidade é redundante: repete-se para fixar alguma coisa na mente.
[Assim como] a memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece
a existir.” (CALVINO, 1990). A neblina, a ruína, a sensação de solidão, esquecimento,
desolação, assim como a grandiosidade dos elementos arquitetônicos fantásticos perto
da pequenez dos seres humanos, os quais já perderam suas características e não passam
de fantasmas, são elementos reiterados constantemente nas cidades apresentadas por
esse artista.
Enfim, a representação
da cidade nas obras de Zdzislaw Beksinski, através da montagem, [1] se encaixa em algumas descrições das Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino
(1990), tanto quando este apresenta “a cidade e os mortos” quanto as cidades impossíveis
e/ou fantásticas, as quais são retratadas por Marco Polo a Kublai Khan. Igualmente,
autores diversos da literatura foram convidados pela autora a compor/descrever o
mundo imaginário das urbes criadas por esse artista polonês, tais como: Dante Alighieri,
Edgar Alan Poe, José Saramago, Machado de Assis e Franz Kafka.
O artista que fotografava pesadelos
Zdzislaw Beksinski
é conhecido por alguns como “o artista do Apocalipse” e por outros como o artista
“fundador das Artes Negras”. Ele ganhou tais apelidos pelo aspecto grotesco e soturno
das figuras cadavéricas e/ou em decomposição que representava; pela metamorfose
kafkaniana que o corpo humano adquiria em suas telas e pelas ruínas de lugares fantásticos
e devastados, quer pela peste quer pela guerra, que ele criava. Apesar desses apelidos,
muitos críticos [2] concordam que ele é um dos mais importantes representantes
do surrealismo polonês. Ele,
[...] produzia suas pinturas
e desenhos em um estilo que ele chamava ora de ‘Barroco’, ora de ‘Gótico’. Seu principal
estilo era dominado pela representação, com os exemplos mais conhecidos advindos
do ‘realismo fantástico’, em que ele pintava imagens perturbadoras de ambientes
“surrealísticos e atemorizantes”. (LIVISKI, 2017).
Beksinski nasceu
em 1929 em Sanok (Polônia) e foi assassinado em 2005 em Varsóvia (Polônia). Ele
se formou em Arquitetura (1952), [4] mas não se identificou com a profissão. Começou,
então, a realizar trabalhos de fotografia e escultura contemporâneas. No início
da década de 60 do século XX, faz pinturas abstratas, porém com o tempo desenvolve
um estilo de realismo fantástico próprio. Sendo o seu período mais fértil, o compreendido
entre as décadas de 60-80. Do final dos anos 90 do século passado até sua morte,
ele realizou trabalhos com imagem digital (computador e fotocópias), mas manteve
seu estilo, apesar da mudança da técnica. Quanto a essência filosófica dos trabalhos
desse artista, sua tese principal recai sobre a importância da forma e não do conteúdo.
Este é responsabilidade dos espectadores, dizia ele. Por esse motivo não dava título
às suas obras. Tal pensamento pode ser resultante do seu período como artista abstrato
e reflete o princípio de outro artista polonês, o suprematista Kazimir Malevich.
(KOPTSEVA; REZNIKOV, 2015).
Beksinski é um
artista pouco conhecido no Ocidente. Todavia, seus trabalhos costumam circular por
blogs e sites diversos que tratam sobre a morte e o mundo sombrio, geralmente
associados a subcultura “dark”. [5] Uma citação que pode resumir bem os trabalhos desse artista para quem não
o conhece é a mesma que Dante leu antes de adentrar o portal do Inferno: “Deixai
toda a esperança, ó vós que entrais” (ALIGHIERI, 1998). As pinturas de Beksinski apresentam, em geral, o mistério do espírito
humano, retratando aspectos do universo inconsciente, evidenciando a degradação
e a degeneração do ser humano através da desvalorização das figuras e dos ambientes,
sendo o grotesco a base para essas representações.
Segundo Vasquez
(1999) a categoria estética do grotesco costuma combinar elementos vegetais, animais
e humanos de maneira fantástica. Combinações estas, que se forem medidas de acordo
com o modelo classicista e/ou realista parecerão monstruosas. Apesar de inúmeras
evidências da presença do grotesco na arte em séculos anteriores, apenas no século
XVIII é que se começa a considerar o grotesco como categoria estética, principalmente
por meio do Romantismo, o qual não busca uma reprodução do belo. O grotesco costuma
aparecer para retratar um mundo estranho, fantástico, absurdo, com elementos irreais
e “antinaturais” através da mistura de elementos comuns, antropomorfismos, etc.
Ele pode associar, também, o angelical e o diabólico; o terrível e o maravilhoso;
o mistério da existência humana e o mundo dos sonhos.
O grotesco, ainda,
pode abarcar em seu seio a presença do estranho e do fantástico na própria realidade.
“Esses elementos estranhos, fantásticos, podem ocorrer em cenários distintos: o
sobrenatural! Quer seja como paraíso ou inferno; ali onde a realidade se perde como
no sonho [...]” (VASQUEZ, 1999). Ou seja, o predomínio do fantástico, do insólito
e do estranho não significa que o grotesco não mantenha certa relação com a realidade.
Aquele toma desta elementos para deformá-los e recombiná-los, desnaturalizando o
habitual e menosprezando o real. Uma leitura pelo viés psicológico do grotesco é
que este “vem em auxílio de nosso medo, frustração gerada por restrições
morais, sociais e estéticas.” (SOKOLOWSKA-SMYL, 2014, tradução nossa). A partir disso, podemos dizer que, assim
como outras pinturas de Beksinski, as cidades apresentadas por ele também são grotescas,
evidenciando, muitas vezes, a combinação entre o divino e o infernal.
Cidades dos mortos
A cidade dos mortos
antecedeu a cidade dos vivos! (MUNFORD, 1991). Entre o nomadismo e o sedentarismo
o ser humano enterrou seus mortos e para ficar próximo deles erigiu suas cidades.
“A cidade, por oposição à natureza, é o
lugar e a obra do homem que, tal como o Deus bíblico, a constrói à sua imagem e
semelhança” (PESAVENTO, 1997), podendo ser um local onde as pessoas depositam suas
angústias e esperanças. Beksinski construiu suas cidades à maneira de seus pesadelos
ou de um modo que fizesse alusão a isto. O que a cidade desse artista oferece aos
recém-chegados é a desilusão através da desolação e seus poucos habitantes logo
são esquecidos em meio a melancolia. No entanto,
As cidades não
existem só como ocupação de um território, construção de edifícios e de interações
materiais entre seus habitantes. [...] Atuamos na cidade pelas cartografias mentais
e emocionais que variam segundo os modos pessoais de experimentar as relações sociais.
Não é possível, então estabelecer com rigor o que é uma cidade, nem sequer o que
são cada uma das suas representações particulares.” (CANCLINI, 2008)
Conceituar o que
uma cidade é ou compreender as impressões peculiares que cada pessoa tem dela é
impossível. Ainda assim, o urbano nas pinturas de Beksinski aparece através de referências
a edifícios, igrejas, ruínas, torres, coretos e corpos. Esses são indicativos comuns
de elementos que constituem as cidades, mesmo esta não se reduzindo a eles.
“[...] uma sensação de insuportável tristeza me invadiu o espírito. Digo insuportável,
pois aquele sentimento não era atenuado por essa emoção meio agradável, meio poética,
com que o nosso espírito recebe, em geral, mesmo as imagens naturais mais severas
da desolação e do terrível.” (POE, 1978). A sensação que o amigo de Usher sentiu
ao vislumbrar sua casa, em meio a névoa e distante de tudo, é a mesma que pode ser
sentida ao visualizarmos a obra de Beksinski. É uma “[...] sensação de alguma coisa
gelada, um abatimento, um aperto no coração, uma aridez irremediável de pensamento
que nenhum estímulo da imaginação poderia elevar ao sublime.” (POE, 1978). As torres
de madeira precária, revestidas de corpos humanos esqueléticos, dos quais vemos
praticamente apenas braços e pernas cobertos de teias de aranha, se repetem no primeiro
plano e parecem se multiplicar inúmeras vezes num pátio cercado por prédios. Essa
imagem trás à mente outro conto de Alan Poe (1978), o “Gato preto”. Neste, o personagem,
ao matar a mulher sem querer por causa de um gato, resolve emparedá-la, tal “como
faziam os monges na Idade Média com suas vítimas”. Todavia, as torres humanas de
Beksinski evidenciam que quem as fez não se preocupou em esconder os membros que
ficaram pendurados. Há até uma antena de TV em cima de uma das torres. Seria esta
uma cidade onde os vivos utilizam os corpos dos mortos como alicerce e estrutura
para as construções? De maneira simbólica, o mundo dos vivos sempre é constituído
a partir do mundo dos mortos.
Calvino (1990), ao descrever as cidades
invisíveis, utópicas e/ou fantásticas apresenta “a cidade e os mortos”. Uma delas
é Eusápia:
Não existe cidade mais disposta a aproveitar
a vida e a evitar aflições do que Eusápia. E, a fim de que o salto da vida para
a morte seja menos brusco, os habitantes construíram no subsolo uma cópia idêntica
da cidade. Os cadáveres dessecados de modo que os esqueletos restem revestidos de
pele amarela, são levados para baixo e continuam a cumprir suas antigas atividades.
[...] na realidade, foram os mortos que construíram a Eusápia de cima, semelhante
à sua cidade. Dizem que nas duas cidades gêmeas não existe meio de saber quem são
os vivos e quem são os mortos. (CALVINO, 1990).
A obra de Beksinski nos remete à cidade
dos mortos construída à semelhança da cidade dos vivos. A posição vertical dos ataúdes,
colocados lado a lado tal como prédios, também nos lembram os cubículos que as pessoas
ocupam na contemporaneidade, os quais estão cada vez menores e muitas vezes apenas
uma pessoa o habita. Além das estruturas verticais, o artista deixa espaço para
o que seriam as ruas. Ruas estas desérticas, pois as pessoas preferem ficar cada
vez mais ensimesmadas, mesmo tendo certa proximidade física devido aos aglomerados
das construções urbanas. Em virtude disso, será mesmo possível saber quem são os
vivos e quem são os mortos entre as cidades gêmeas de Eusápia?
“A cidade de quem passa sem entrar é uma;
é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali.” (CALVINO, 1990). A figura
4 pode ser vista como uma Cidade-Purgatório, na qual, as pessoas, no caso os esqueletos,
ficam em volta de uma fogueira, cada grupo em sua torre de pedra, distantes uns
dos outros. Vemos que algumas fogueiras já foram extintas, pois ainda conseguimos
observar as cinzas restantes e a ausência de seres ao redor delas. As torres de
pedra se repetem até as perdermos de vista ao serem engolidas pela cerração densa.
Dante Alighieri, na “Divina Comédia”, ainda em vida realiza uma viagem pelo além-túmulo
para salvar sua alma. O purgatório descrito por ele em nada se assemelha com essa
imagem: “o purgatório é uma montanha alta e escarpada. [...] Nos flancos desse monte
estão encravados terraços, ou cornijas, circulares, onde as almas cumprem suas penas,
suas provações para o futuro acesso ao paraíso.” (ALIGHIERI, 1998). No entanto,
essa pintura de Beksinski nos transmite uma sensação de espera contínua, assim como
de inviabilidade de deslocamento. Pela lógica do Purgatório, após cumprirem suas
penas, as pessoas sairão dele um dia, mas a impressão que essa imagem passa é que
jamais o farão, à maneira do “Processo” de Kafka (2005).
Não se sabe se essa cidade foi “abandonada,
antes ou depois de ser habitada” (CALVINO, 1990). No entanto, não se pode dizer
que ela está completamente deserta. A cidade está em ruínas e suas colunas estão
cobertas de musgos, mas ainda assim ela é habitada por vermes, os quais são os primeiros
a residir nos corpos dos mortos. Tais habitantes podem até se tornar queridos, a
ponto de Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1994), dedicar seu
livro, com saudosa lembrança, ao verme que primeiro roeu as frias carnes do seu
cadáver quando este falava da sua vida antiga do além-túmulo. Ou seja, o corpo humano
também pode ser uma cidade para habitantes distintos.
Os cemitérios junto às igrejas são comuns
em inúmeras culturas há muitos séculos, sendo que no período medieval esta ocupava
um ponto estratégico da cidade (ARGAN, 1994). Laudômia é uma das cidades invisíveis
de Calvino. Esta, “[...] como todas as cidades tem a seu lado uma outra cidade em
que os habitantes possuem os mesmos nomes: é a Laudômia dos mortos, o cemitério.
[...] Para se sentir segura, a Laudômia viva precisa procurar na Laudômia dos mortos
a explicação de si própria” (CALVINO, 1990). A figura 6 nos mostra uma igreja que
aparenta estar abandonada. Sua estrutura espectral parece reduzida a um corpo esquelético
em decomposição, o qual sucumbe em meio a névoa. Diferentemente de Laudômia, parece
que ninguém visita os mortos desse cemitério, assim como ninguém visita essa igreja.
Esta definha junto com aqueles.
Saramago (2005),
um importante autor do realismo fantástico, em seu livro “As Intermitências da Morte”,
apresenta a situação de um país que a partir do primeiro minuto do ano novo ninguém
mais conseguia morrer. O que em geral, é visto como algo maravilhoso, escapar da
morte/viver eternamente, se mostra como um grande problema. Pois, até os que foram
decapitados continuam vivos, agonizando. O fato das pessoas deixarem de morrer interfere
no cotidiano dos vivos. Os hospitais ficam lotados, as funerárias entram em grave
crise financeira e é preciso rever os planos de aposentadoria. Surge até uma máfia
para levar os quase-mortos para a fronteira do país para estes darem o último suspiro.
Enfim, Saramago consegue retratar a importância da morte, tida como um mal necessário,
para a continuidade harmônica do mundo dos vivos.
Diferentemente da igreja anterior, esta
outra pintura: https://80.lv/articles/zdzislaw-beksinski-dystopian-surrealism-in-games/ exibe
uma igreja no alto de uma montanha, parcialmente encoberta pela névoa, com aspecto
imponente, mesclando o rústico ao design gótico. Ao fundo temos um céu que, pelas
linhas e cores, ostenta uma aura transcendental. É como se a igreja esquelética
retratada anteriormente, junto a um cemitério, se transformasse. Assim como os mortos,
os quais foram apresentados nas imagens anteriores tanto em cemitérios quanto fora
deles, com toda a sua materialidade e putrefação, agora se tornassem invisíveis
ou simplesmente se desmaterializassem.
Beksinski,
tal como vimos anteriormente, afirmou que produzia trabalhos ao estilo “Barroco
e/ou Gótico”. [6] Segundo Argan (1994)
o Gótico inicia uma nova gramática na arquitetura “ao requinte das tipologias citadinas”
e a catedral se torna um palácio público, sendo o arco ogival uma referência ao
interesse espiritual do período. As dimensões dessas catedrais góticas apequenavam
o ser humano, proporcionando às pessoas um vislumbre de um mundo distinto. “Tudo
o que era terreno, pesado ou trivial fora eliminado. Os fiéis que se entregavam
a contemplação de tanta beleza podiam sentir que estavam mais próximos de entender
os mistérios de um reino afastado do alcance da matéria.” (GOMBRICH, 1993). E, mesmo
quando vistas à distância, essas catedrais parecem proclamar o esplendor celeste
ainda hoje.
De acordo com Argan (1994), o estilo Gótico
costuma ser resgatado de tempos em tempos, ficando subjacente no Humanismo, no Barroco
e no Romantismo. Enquanto o Gótico apresentava um novo interesse pela invenção em
contraposição à “canonicidade bizantina”, assim como se caracteriza pela variedade
multiforme dos “dialetos” estrangeiros, o Barroco era “a poética da maravilha”,
permeando a ambiguidade entre arte e vida e a “permuta entre realidade e ficção”
(ARGAN, 1994). Muitos desses elementos parecem estar presentes, de uma forma ou
de outra, nos trabalhos de Beksinski.
A impressão que
temos é que esta cidade está ou esteve no fundo do mar. Nas sacadas, feitas de conchas,
há inúmeras pérolas. Ou seriam caveiras? As pessoas representadas na figura 8, uma
à esquerda e outra na parte central, ambas na parte inferior do quadro, parecem
minúsculas diante da magnitude das construções. Essa é outra característica das
pinturas sobre a cidade apresentadas por Beksinski: ou não há pessoas ou existe
apenas algumas em tamanho reduzido perto da grandiosidade da natureza ou de elementos
da cidade, tais como edifícios e igrejas. Em uma entrevista concedida por Beksinski,
em 1989, ele afirma que, em sua juventude, o artista romântico polonês Arthur Grottger
(1837-1867) o influenciou (KOPTSEVA; REZNIKOV, 2015). Talvez, por esse motivo, consigamos encontrar
alguns elementos do romantismo nos trabalhos desse artista. De acordo com Gombrich
(1993) no Romantismo há um certo desprezo pela arte tradicional e ocorre um movimento
que engrandece a feiura, a loucura, os monstros, os sonhos assombrosos e os artistas
passam a se expressar mais livremente. Enquanto que na paisagem romântica, a natureza
se engrandece: “sentimo-nos pequenos e esmagados em face de poderes que não podemos
controlar [...]” (GOMBRICH, 1993). Sentimento este que também pode ser agregado
a imponência das catedrais góticas. Tal reunião de possibilidades temporais está
associada a liberdade, essencialmente imaginativa, que a montagem permite ao observarmos
as imagens. (DIDI-HUBERMAN, 2012).
A estrutura é de um coreto que se funde
com a paisagem. Em seu teto há um céu azul estrelado. Céu este que contrasta com
o céu que se encontra do lado externo da construção arquitetônica. Observamos que
há duas camadas no coreto, sendo que a inferior mostra nuvens carregadas com a possibilidade
de luz mais adiante, enquanto que a parte superior mostra o espaço infinito. Nesta
imagem ocorre a inversão da lógica habitual da estrutura arquitetônica, na qual,
geralmente, a natureza fica do lado de fora e dentro há coisas que remetem a ideia
de aconchego, com objetos confeccionados pelo e para o ser humano. A figura 9 revela
que dentro do espaço arquitetônico existe uma imensidão, com o céu simbolizando
o infinito. Alighieri (1998) apresenta o “Paraíso” através da trajetória pelos céus
invisíveis até “O céu invisível”, ou “Céu dos céus”, afirmando que não é possível
descrever a experiência de chegar neste através da transumanação. Esta não pode
ser entendida por palavras, é preciso vivenciar a ação, a qual está destinada a
poucos escolhidos. No entanto, algumas pinturas de Beksinski nos permite imaginar
essa sensação, através do etéreo, tal como essa. Todavia elas são muito raras, a
maioria nos arrasta para o Inferno de Dante. [7]
Considerações finais
As cidades dos mortos de Beksinski vão do
Inferno ao Paraíso de Dante; são habitadas ora por vermes ora por mortos esqueléticos;
ou ainda, por mortos que se parecem muito com os vivos e vice-versa; lembram tanto
o Purgatório quanto uma simples barreira de corais; fazem referência a divindade
através das suas igrejas góticas ao mesmo tempo que parecem cenários de filmes de
terror. Todavia, todas nos lembram continuamente do nosso inevitável destino: a
morte e trazem à tona o mistério da nossa existência. Nesse sentido, “as imagens
tomam parte do que os pobres mortais inventam para registrar seus tremores (de desejo
e de temor) e suas próprias consumações.” (DIDI-HUBERMAN, 2012).
Sabemos que a cidade não pode ser reduzida
a sua estrutura arquitetônica, no entanto utilizamos alguns elementos comuns as
elas em relação a seu aspecto formal para selecionarmos as pinturas desse artista
sobre a urbe. Mas, como vimos, nem sempre essas referências apareceram de modo explícito
devido a fantasia presente nas obras e/ou na interpretação imaginativa da autora.
Vimos, também, que o surrealismo grotesco de Beksinski apresenta alguns elementos
“Góticos e/ou Barrocos” e até mesmo Românticos. Além disso, as referências à arte
abstrata aparecem no discurso e na prática do artista quando ele afirmou valorizar
mais a forma do que o conteúdo e pelo fato dele não ter colocado título nas obras.
Enfim, como a imagem é um vestígio e sua
compreensão será sempre lacunar, buscamos, através da montagem, associar as pinturas
de Beksinski aos autores que nossa imaginação foi buscando e criamos múltiplos significados
para elas, através de um possível caminho de leitura visual à maneira da Divina
Comédia de Dante Alighieri (do Inferno ao “Paraíso”). Caminho este que também poderia
ter sido invertido, afinal, os pesadelos grotescos “fotografados” por esse artista
polonês nos dá mais calafrios do que nos faz pensar no Éden.
NOTAS
Ensaio publicado originalmente na revista Art & Sensorium, da Universidade Estadual do Paraná, Brasil. Agradecemos
à autora por sua generosidade na atualização para a presente edição. As obras de Zdzislaw Beksinski podem ser visitadas aqui: www.shopbeksinski.com/.
1. Este método de análise permite uma sobreposição
de tempos, assim como associações a partir de elementos diversos da memória, os
quais podem ser essencialmente imaginativos. (DIDI-HUBERMAN, 2012).
2. Dentre eles, destacamos: Tadeusz Nyczek, Anna Dmochowska e
Piotr Dmochowski, Remigiusz Grzela, Liliana Śnieg-Czaplewska, Magdalena
Grzebałkowska, Wiesław Banach, Artur Olechniewicz e Katarzyna
Winnicka. (KOPTSEVA; REZNIKOV, 2015).
3. É uma expressão francesa que significa
“enganar o olho”. Esse engano ocorre por meio da ilusão de ótica criada através
de técnicas realistas de pintura, sendo um dos elementos comuns a perspectiva “distorcida/exagerada”.
4. Banach (2005) apud Sokolowska-Smyl (2014) afirma que ele queria fazer Cinema, mas
foi obrigado a seguir a carreira da família e cursar Arquitetura.
5. Suas obras
também serviram como inspiração para o cenário do filme “Alien” (o design deste filme foi projetado pelo artista suíço Hans Rudolf
Giger) e para outros filmes, principalmente
de terror. Dentre eles destacamos: “O labirinto do Fauno” e a “Colina Escarlate”
de Guillermo del Toro. (KOPTSEVA;
REZNIKOV, 2015).
6. Segundo Argan (1994) os períodos históricos
são geralmente assinalados de acordo com as mudanças que ocorrem em relação ao período
anterior. Aqueles são campos de relações e mudam de acordo com a interpretação dada
aos sistemas e suas respectivas relações. Ademais, lugares distintos, na mesma época,
podiam estar produzindo trabalhos artísticos sem relação com as características
elencadas do período estipulado por uma determinada localidade. Ou seja, as referências
ao “Barroco” e ao “Gótico” afirmadas por Beksinski, assim como sua influência do
“Romantismo” polonês, podem ter características distintas das que foram elencadas
por Argan (1994) e Gombrich (1993) sobre esses períodos. No entanto, para buscarmos
relações com os trabalhos do artista em questão nos baseamos nelas, por estas serem
mais recorrentes. Cabe ressaltar que apesar dessas influencias de “estilo”, as obras
desse artista apresentam mais características do Surrealismo e/ou Realismo Fantástico.
7. Diferentemente do Inferno de Dante representado
por Botticelli (1445-1510), o qual buscava apresentar o que estava escrito na Divina
Comédia, as imagens sombrias de Beksinski nos remetem a ideia de inferno presente
no senso comum, com suas tormentas infindáveis gerando desespero e agonia. Sensações
estas, que também estão presentes no texto de Alighieri.
REFERÊNCIAS
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Italo Eugênio Mauro. – São Paulo: Ed. 34, 1998.
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à Estética. /Adolfo Sánchez Vásquez;
tradução: Gilson Baptista Soares. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
VALÉRIA METROSKI DE ALVARENGA (Brasil). Doutora e Mestra em Artes Visuais (UDESC). Graduada em Artes Visuais (Licenciatura e Bacharelado/UFPR). Atualmente leciona a disciplina de Arte na Secretaria do Estado da Educação (SEED/PR) e trabalha como professora colaboradora na UEPG no curso de licenciatura em Artes Visuais. Também atua no Mestrado Profissional - PROFARTES (UDESC). Membro do Grupo de Pesquisa Arte e Formação nos processos artísticos contemporâneos (UDESC), do projeto de pesquisa Observatório da Formação de Professores no âmbito do Ensino de Arte: estudos comparados entre Brasil e Argentina (OFPEA/BRARG) e da Rede Latino-americana de Investigação na Formação de Professores de Arte (LAIFOPA).
SARA SAUDKOVÁ (República Tcheca, 1967). Fotógrafa e escritora. Sara Saudková fotografa principalmente nus. Do ponto de vista técnico, são principalmente fotos clássicas em preto e branco tiradas em médio formato. Seu trabalho inicial foi influenciado pelo trabalho de Jan Saudek, com quem – como ela diz – aprendeu, porque melhor escola não há. Gradualmente, ela encontrou seu próprio estilo muito distinto. Dedica-se exclusivamente à criação livre – com fotografias encenadas documenta relações entre homens e mulheres – despedidas e esperas e entre: amor, saudade ou solidão. Suas fotos são bem lúdicas, com uma carga erótica. Saudková também escreve livros. Publicou Midnight Fairy Tales, para crianças, bem como o livro autobiográfico Ta zrzavá, Sweaty Back, sobre a crise de um homem de meia-idade bem-sucedido e um romance policial sombrio, Chuva. Nelas, trata de relacionamentos dramáticos, tramas sofisticadas e histórias emocionantes. Ele escreve sua prosa em uma linguagem viva. Sara é nossa artista convidada, a quem agradeço, pois desde nosso primeiro encontro foi muito generosa e simpática.
Agulha Revista de Cultura
Número 218 | novembro de 2022
Artista convidada: Sara Saudkovà (República Tcheca, 1967)
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