∞ editorial | A comunhão de todos os tempos
00 | Após as séries “Partituras do Maravilhoso” (2021) e “Surrealismo Surrealistas” (2022) – que será concluída na edição de 25/12 –, a Agulha Revista de Cultura prepara para 2023 uma nova etapa dedicada à reflexão sobre os caminhos da criação artística em nossa época. Durante todo o ano publicaremos duas edições mensais, sempre aos dias 10 e 25 de cada mês, cada uma delas incluindo um total de 10 ensaios que deverão ter um mínimo de 3 mil caracteres. Sob o tema central, “A arte no Século XXI”, os ensaios deverão abordar o modo como política, economia, mídia, mercado, guerras, religiões etc., têm afetado a criação artística em sua perspectiva humanística e quais as projeções para um novo renascimento ao longo do presente Século. Evidente que as escolhas pelos elementos externos serão distintas em cada convidado, de acordo com sua experiência de vida e a natureza de seu trabalho. De igual modo, esses elementos podem ser outros, não devendo haver limitação em face de nossas sugestões. O que desejamos, em tese, é um ensaio sobre as relações entre arte e cultura.
As datas exigidas para entrega dos textos obedecem a uma agenda editorial,
assim definidas:
30/12/2022 (para o primeiro trimestre 2023)
28/02/2023 (para o segundo trimestre 2023)
30/05/2023 (para o terceiro trimestre 2023)
30/08/2023 (para o quarto trimestre 2023)
Cada uma das referidas datas só poderá contar
com a inscrição de 60 convidados.
Para o momento o que queremos de todos os convidados é que confirmem sua
participação em nosso projeto e que definam a própria data de entrega de seu ensaio.
Lembramos ainda que os ensaios não devem acompanhar imagens, pois cada uma das edições,
como tem sido uma marca da Agulha Revista
de Cultura em seus 21 anos de existência, apresenta uma mostra de 48 obras de
um artista convidado. Agradecemos a todos, pela renovada cumplicidade.
01 | Alguém se surpreende com o modo como as
luzes lambem a carne decomposta dos acidentes. Um manancial de sangue decerto altera
a modulação do espanto. Tantas vezes a estrada acoberta os desastres que circulamos
muitas vezes em volta de espectros de uma dor invisível. Não faltam ocasiões em
que nos confundimos com aquele grande clandestino
apontado por Aníbal Machado, o que descobriu que o tempo não faz nada às claras,
e acabou por compreender que destruição e
reconstrução se confundem, e que sacos
e sacos vão se enchendo e esvaziando toda a vida. Não há outro sentido na ferocidade
virtuosa com que nos enganamos com o destino. É inútil sair a procurar uma razão
que se faça mais indigna do que essa. Novamente Aníbal Machado: O temor de que a sociedade possa um dia transformar-se
fundamentalmente: Eu tenho defeitos próprios para vencer nesta. Não somos vitoriosos
ou fabulosos. Perambulamos entre os pretextos formidáveis de um obscurantismo aviltante.
Nossas perspectivas de vida e morte permanecem baseadas em estruturas econômicas,
o dinheiro como meio de transporte de um tempo que progride quase sempre em direção
contrária ao da comunhão de todos os povos.
02 | Em um livrinho
mágico que é um dos marcos da entrada em cena do Surrealismo, já em 1919, André
Breton e Philippe Soupault reclamam que o
imenso sorriso da terra não nos é suficiente: necessitamos dos antigos desertos,
das cidades sem arrebol e dos mares mortos. Por esta imagem de Les champs magnétiques começamos nossa viagem,
pelo imperativo de descobrir outras dimensões de nossa passagem pela terra. O próprio
Surrealismo nasce nos diários de bordo da escuna errante chamada Cabaret Voltaire,
e suas intensas reuniões de viajantes.
O automatismo
era ali a mecânica de cartas-colagens, a firmação do instante como o carvão propiciador
da magia perene da existência humana. A verdadeira compreensão do tempo como um
jogo sem fios. A comunicação sublime do eu com seus impronunciáveis outros. Nas
páginas da revista Littérature o mundo
duplo, que levamos dentro e fora, começa a viajar.
Uma viagem
que leva em si tanto dos lugares de encontro como da geografia do espírito de cada
um de seus participantes. As multiplicações criativas dos abismos pessoais e o fluxo
dos olhares em novas formas de explorar o mundo. Nova teoria de horizontes. Uma
metafísica do desconhecido. Por aí a vida vai alcançando sua entranhável altivez
polimorfa.
Assim nasce
o Surrealismo. Com esse sentido incessante de buscar novas terras. Como um centro
de atração dos viajantes mais empenhados em desvelar novos truques de união entre
imagem e palavra. O entusiasmo de ir e vir por mundos inapagáveis. Este centro,
por impulso de vitalidade, desde seu íntimo tem se afirmado como uma rede de canais
em perpétuo movimento. Seu nome não é Zurich ou Paris, mas sim um cabaré e logo
um café e mais, as ruas e galerias e portos.
Os jogos
e criações coletivas, as alocuções do entusiasmo comum, um sem número de atividades
enriquecedoras que permitiam levar seu espírito na bagagem de regresso a vários
países do mundo. Desse modo o Surrealismo atracou em outros continentes, chegou
a Adelaide, Lima, Tóquio, Rabat etc. O Surrealismo chega ao Japão pelas mãos de
Nishwaki Junzaburo (1894-1982) e seu encontro com Takiguchi Shuzo (1903-1979), os
dois poetas e artistas plásticos, ou na Inglaterra, graças a Roland Penrose (1900-1984)
e a formação de um grupo com David Gascoyne (1916-2001), ou no Peru, com o retorno
de César Moro (1903-1956) e sua amizade com Emilio Adolfo Westphalen (1911-2001),
e assim foi por todas as partes. Porém quase igual a este modo de impulso do movimento
também contribuiu a 2ª Guerra Mundial e seus exílios inevitáveis.
Com o tempo
se foi descobrindo que era impensável uma prática ortodoxa do Surrealismo, pois
tanto se registravam em seu curso ações grupais como isoladas. Além do mais, as
viagens propiciaram uma reciprocidade que foi pouco a pouco agregando novas perspectivas,
alterando os erros de formação, sem deixar de se basear em sua tríade fundamental:
o amor, a poesia, a liberdade. Era necessário livrar-se dos eufemismos da ortodoxia
para criar novas visões de si mesmo e do mundo. Nisso o Surrealismo cresceu ao ponto
de ser o movimento cultural mais importante do século XX.
Um de seus
erros clássicos derivou da rejeição de André Breton de conhecer outros idiomas além
do francês. Com isto pôs em cena uma presença mais plástica do que poética no surrealismo
internacional, deixando sob certa obscuridade a grandeza da obra renovadora de muitos
de seus poetas. O próprio Breton, acerca da imagem surrealista, anotou no primeiro
manifesto:
Para mim, não o nego, a mais forte é a que apresenta
o mais alto grau de arbitrariedade; a que requer mais tempo para ser traduzida em
linguagem prática, seja por conter uma enorme dose de contradição aparente, seja
por um de seus termos estar curiosamente oculto, seja por, tendo-se apresentado
como sensacional, parecer que termina fracamente (que fecha, bruscamente, o ângulo
de seu compasso), seja por tirar de si mesma uma justificativa formal derrisória, seja por ser de natureza alucinatória,
seja por, muito naturalmente, conferir ao abstrato a máscara do concreto ou vice-versa,
seja por implicar a negação de alguma propriedade física elementar, seja por provocar
o riso.
Poetas como
César Moro, Enrique Molina, Ludwig Zeller, descobriram uma chave de raízes entrelaçadas
que os conduz aos mais altos graus da criação poética em língua espanhola. O mesmo
se pode dizer dos gregos Odisseas Elytis, Andreas Embirikos e Matsi Chatzilazarou.
De igual modo podemos pensar no japonês de Kansuke Yamamoto, Kitasono Katue e Takiguche
Shuzo, ou no inglês de Max Harris, Joyce Mansour ou Philip Lamantia. Os exemplos
se reproduzem em muitos outros idiomas e essa chave radica não no antagonismo entre
mundo auditivo e mundo visionário – como defendia Breton, elegendo o auditivo como
a forma maior de concepção do poético –, mas sim como uma fusão dos dois e sem esquecer
os demais sentidos.
Ainda estamos
por conhecer as esferas encadeadas do Surrealismo na poesia de incontáveis países.
As janelas abertas dessa tempestade que avança muito além dos conceitos de tempo
e espaço. Um século se passou desde a escritura de Les champs magnétiques e o palco de maravilhas que foi a revista Littérature. Um século desde a compreensão
dada pelas colagens de uma nova realidade. Um século desde a aventura transcendente
dos jogos coletivos, onde a verdadeira poesia se faz no reconhecimento – jamais
na submissão – do outro. Essa alquimia dos sentidos atua como uma prova a mais da
vastidão do pensamento, como as letras de fogo que ampliam nossa permanência na
terra, e sua esfera mágica – a soma do angélico e do demoníaco que brinda o Surrealismo
– é o que há construído tudo em nosso tempo.
03 | A nudez e o teatro celebram uma peregrinação mística pelo tabuleiro da existência. De um lado a transfusão perene dos fluidos da inocência e da luxúria, de outro a representação da essência do próprio ser. Ao escrever sobre a fotografia de Sara Saudková (República Tcheca, 1967) – artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura, e cabe mencionar a generosidade com que nos recebeu –, o crítico Emilio Bellu observa que ela mostra o poder do relacionamento tcheco com o corpo, a sexualidade e a curiosidade que são difíceis de encontrar em outras culturas. Sua obra plástica é ainda muito ligada à de Jan Saudek, com quem realizou muitos trabalhos comuns – Fiquei completamente surpresa com o mundo dele e sua personalidade me atraiu muito –, porém se deixamos pousar livremente o olhar nas fotos de Sara, no que pese a coincidência da teatralidade, das fotografias encenadas, compostas como tableaux vivants, logo percebemos que sua dramatização fotográfica não contempla a abjeção que tanto singulariza a estética de Jan. Ao contrário, em Sara, o erotismo, acentuado em seu íntimo pela força expressiva do uso de fotos em preto e branco, procura imprimir em sua linguagem animada a sensibilidade feminina em busca de uma simbologia própria, onde o desejo e a maternidade são personagens valiosos. Sara, que também tem escrito alguns romances, destaca, no tocante ao este equilíbrio arriscado que consegue imprimir em sua fotografia, que, na montagem dos cenários, todo prazer é redimido com algum problema ou tristeza, cada problema é substituído por alegria e felicidade. A densidade surrealista de sua obra, em especial no plano de sua criação livre, é intensamente ampliada pelo humor e a graça de uma linguagem que se mostra ser outra, inesperada e reveladora.
Floriano Martins
∞ índice
ALFREDO MARGARIDO | Surrealismo negro
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/alfredo-margarido-surrealismo-negro.html
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO & MANUEL SIMÕES
| Duas vezes Carlos Loures
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/antonio-candido-franco-manuel-simoes.html
CARLOS M. LUIS | Eros,
violencia y surrealismo
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/carlos-m-luis-eros-violencia-y.html
CÉSAR BISSO | Las razones de Roberto Arlt para inventar
otra sociedad – Aproximación a su novela Los siete locos
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/cesar-bisso-las-razones-de-arlt-para.html
DARRAN ANDERSON | David Gascoyne, Surrealism and the Vanishing Muse
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/darran-anderson-david-gascoyne.html
FLORIANO MARTINS | Ernest Pepín, Caribe y Surrealismo
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/floriano-martins-ernest-pepin-caribe-y.html
JOSÉ
ÁNGEL LEYVA | Armando Romero, movimiento y quietud de la poesía
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/jose-angel-leyva-armando-romero.html
KIRILL KOBRIN | Las
tentaciones de Pierre Molinier
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/kirill-kobrin-las-tentaciones-de-pierre.html
GUILLERMO AGUIRRE MARTÍNEZ
| La huella de lo sagrado en la poesía de Juan-Eduardo Cirlot
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/guillermo-aguirre-martinez-la-huella-de.html
VALÉRIA METROSKI DE ALVARENGA | A cidade dos mortos: o mundo
imaginário do artista polonês Zdzislaw Beksinski
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/11/valeria-metroski-de-alvarenga-cidade.html
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Agulha Revista de Cultura
Número 218 | novembro de 2022
Artista convidada: Sara Saudkovà (República Tcheca, 1967)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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