Se existe algo que faz da
narrativa algo próximo de um sortilégio, de um gesto que pertence menos aos domínios
humanos e mais a uma esfera sobrenatural, metafísica, é o mistério. E as narrativas de Jonathan Wood (como na participação que fez no
volume em homenagem a Fernando Pessoa, Dreams of Ourselves, lançado pela Ex Occidente/Zagava Press) transbordam de mistério, um mistério fundamental e transcendente que
transtorna a própria realidade, não apenas a percepção
dela. Na entrevista a seguir, nos propomos não a decifração do mistério, atividade vã e destrutiva, mas em
contextualizar a mente criadora de Wood. Entre as obras já lançadas de Jonathan Wood (um autor do qual temos limitadas informações biográficas), podemos enumerar: os contos “White Souls against a
Dark Background” (publicado na coletânea Cinnabar’s
Gnosis – A Homage to Gustav Meyrink, editada por Dan Ghetu,
Bucharest: Ex Occidente Press, 2009), “Beloved Chaos that Comes by Night” (publicado na coletânea The Master in Café Morphine – A Homage
to Mikhail Bulgakov, editada por Dan Ghetu, Bucharest: Ex Occidente
Press, 2011), “Pray
to the God of Flux” (conto publicado na coletânea Transactions
of the Flesh – A Homage to Joris-Karl Huysmans
(editada por Dan Watt e Peter Holman, Bucharest: Ex Occidente Press, 2013), “Vale of
Gold” (na coletânea Sorcery and Sanctity: A Homage to Arthur
Machen, Hieroglyphic Press, 2013), além
da novela The
New Fate, Bucharest: Ex Occidente Press, 2013.
ADM | Um
aspecto de sua ficção que salta aos olhos e que sempre ressurge, em novos e
complexos formatos, é o logro, o engano, a de decepção. Em
The New
Fate, por exemplo, há o logro do
protagonista, que precipita o espantoso desfecho. Não se trata de um truque
literário mais ou menos ingênuo, é bom frisar: o logro (deliberado ou voluntário),
em suas tramas, se aproxima da Hamartia, a
falha trágica,
tão essencial na tragédia
para a obtenção do terapêutico
efeito de catarse. Como você chegou a essa noção de Logro? Haveria, nesse caso,
alguma influência?
JW | O
logro domina meu silencioso pensamento literário
pois estou, continuamente, refletindo a respeito das qualidades da verdade e
daquelas que definem a realidade; como ao redor de cada esquina a harmatia surge caminhando ou é vista nos reflexos das poças
de água. O ato de escrever, os processos do pensamento que estão
por trás dele e o jogo de personagens, tudo isso respira o oxigênio do logro e as percepções que acompanham o ato de
escrever surgem de um complexo espectro de ilusões e enganos. Por exemplo, é possível aplicar o conceito sintético de logro a amplo
espectro de pensamento e, para mim, isso é central,
uma ponto de partida natural ao tentar discutir ou explorar questões morais,
temporais ou espirituais, ou até mesmo para criar
personagens do nada. A evolução e o jogo entre personagens surge da interação
complexa de ações e significados ou o contrário
de tudo isso e o logro pode ser observado naquilo que definimos sem muito rigor
de “vida real”, observando de uma distância nada segura as nuances
de conversão e linguagem e expressão. A identidade sutil de um personagem é resultado do que talvez seja um reconhecimento despercebido de algo que não é “direto”
mas que possui um número
singular de cantos e curvas. Não construo ou observo o logro ou o engano como
resultado de uma observação deliberada, mas algo que está bem além de ser uma marca dentro do personagem e da narrativa; uma tendência natural como o clima, se preferir. É a representação normal daquilo que gostaríamos de pensar e de
experimentar. Quando alguém estabelece uma
conversação com você, isso acontece
contra um pano de fundo de verdade ou com um segundo plano de nuance e
significado e comportamento simbólico que leva a um espelho
secreto, no qual você consegue ver apenas a parte de trás
de sua cabeça? Quando olho para a tela de Rene Magritte, La
Reproduction Interdite [1937], eu acredito que
tenho tudo o que preciso saber… E isso, claro, é uma
mentira.
ADM | Existe
algo de paradoxal em suas tramas: de um lado, temos complexas construções metafóricas amparadas por noções e princípios filosóficos quase abstratos; de outro, uma forte tendência
de recuperação de contextos históricos.
Assim, Por exemplo o universo do nazismo em The New Fate é ao mesmo tempo uma evocação e uma construção imagética
sólida, o mesmo valendo para o universo que se configurou após a Primeira Guerra Mundial em "White Souls Against Dark
Background". Haveria alguma metodologia para esse paradoxo? Você poderia
descrever algo de seu processo de criação?
JW | Não
utilizo o contexto histórico para necessariamente “escorar”
uma narrativa em um quadro temporal ou período reconhecível, mas como uma tentativa de esboçar o contexto e a cor, algum elemento particular que pode ser algo oblíquo ou evasivo ou ilusório, quase como os
pensamentos ou arrebatamentos de uma conversão em passantes que possua alguma
qualidade real para eles; um menear de cabeça
ou uma expressão furtiva que possua uma história própria passível de desenvolvimento em seu sentido próprio
de periodização dentro do reconhecível. O contexto histórico central de “White Souls” se concentra na perda e na
angústia com a Grande Guerra e examina os mecanismos empregados para mitigar o
imenso talho que seccionou a mente, o corpo e o espírito
de toda uma geração. Há a ambiguidade das vozes
distantes no campo de batalha e os impulsos febris de Grovelock, além da
desprezível ressonância do padre Bankman e da
sala da sessão espírita mas, mesmo assim, o que se torna
importante na minha concepção seria o exame dos personagens que estão “fora”,
se você preferir dessa forma, do amplo conceito histórico reconhecível, no qual a linguagem pode vir
repousar trazendo consigo o sabor de uma época.
Meu desejo era me concentrar nesse conflito interno do pós-guerra em Londres. Em The New Fate,
deseja me distanciar do contexto histórico significante – aquele que todos podemos identificar – de
modo que a experiência descrita se torne mais rarefeita e
altamente localizada, transformando o tema central e os personagens em [se
preferir] manchas no Sol prontas para desaparecer até o
momento da conclusão, quando o contexto histórico
entra aos solavancos com aquilo que poderíamos
chamar vingança
adicional. É a chamada para despertar na amarga realidade histórica. O cultivo do contexto diz muito a respeito do exame efetuado nas
sobras da memória, da tristeza mais profunda e do desespero da mesma forma que da ficção
precisa, refletindo aquilo que é conhecido e compreendido.
Desejo
uma viagem descendente pelo orifício do deslocamento da
sensibilidade que nos conduz ao desespero lógico,
racionalizado, e ao distanciamento. Também
desejo garantir que os personagens em “White Souls” e The New Fate estejam o mais desconfortáveis o possível, mas também levemente deslocados nos termos de um
meio social conhecido. Provavelmente há algo da
esquizofrenia no interior do princípio central que rege
o contexto e a caracterização que será examinada
em um trabalho futuro. Em “Pray to the God of Flux”, o
contexto histórico talvez tenha se revelado através
de costumes e maneirismos dos dois personagens centrais que foram pegos em meio
ao conflito entre aderir à vida
“normal”
estultificada das classes médias
comerciais e a ronda diária, a alternativa em
experimentar os lúridos e proibidos frutos de Bruxelas,
apenas para serem impelidos de volta à vida “normal”. Aqui, tinha em minha mente a evocação daquela grande massa de pessoas
arrastadas dos subúrbios, transportadas por trens até o miasma espesso que era Londres no início
do século XX, mas seria uma atitude pautada no logro da minha parte confirmar
isso para você! Não desejo que esses
personagens centrais sejam livres, antes que sejam cegos em relação aos próprios impulsos e às linhas borradas do
período, do tempo e do local no qual estão inseridos. Há muita
coerência nos grandes romances do início do século XX que seguem as trilhas do homem de comércio
até
as portas com um ponto de interrogação impresso! Huysmans
trabalhou com isso primeiro, antes de todos no século
que morreu a seguir! E talvez Poe.
ADM | Percebo
em suas narrativas certa instabilidade do tempo: o passado, o presente e mesmo
o futuro de seus personagens, o tempo virtual e real, todos esses elementos
temporais parecem colidir e confluir – processo levado às
últimas consequências
no conto “Pray
to the God of Flux”. Essa forma de elaborar o tempo narrativo,
de modo simultâneo ou como um fluxo, surgiu de alguma concepção filosófica
específica? Ou teria sido fruto de alguma experiência empírica?
JW | Penso
que sua observação é bastante perspicaz e gostaria de dizer
que minha resposta surge do ato de ponderar entre a reação diante da consciência e da vida em geral, do ponto em que os limites e as
distinções lógicas entre experiência e existência
transbordam uns nos outros. “Pray to the God of Flux” é
uma resoluta recuperação minha da vingança,
na qual eu meramente ocupei o papel de “imaginar” a partir do meu presunçoso ponto de vista de um
assim chamado “autor”
a experiência dos “macacos
sonâmbulos”
que marchavam pela London Bridge na forma de um terrível pesadelo modernista, e que se tornou meu próprio
destino uma vez que eu continuo a ganhar meu sustento diário do comércio, mas agora em novo endereço! A vida imita a
arte de uma forma desprezível e merecida! Imagino que
deva haver igualmente um elemento filosófico
no ponto em que o Tempo se torna muito preciso e compacto e febril em minhas
histórias, algo que se combina com as experiências dos protagonistas. Eu aprecio experimentar com a fluidez de ideias e
tempo e experiência, como se houvesse um diálogo unificado em minha cabeça com tudo o que deverá acontecer. Penso que a mente está em “fluxo
constante”,
como você mencionou acima, e do centro da mente se configura uma
espiral de pensamento e experiência
completamente paradoxal em todos os seus detalhes. Em “Pray to the God of
Flux”, eu desejava prospectar em profundidade esse conjunto
paradoxal de impulsos descrito de modo tão rico por Huysmans com seu Des
Esseintes, que percebia atentamente e fazia as vezes de servo do mundano e do
excitante. Quem sabe tudo isso também não
apareça em alguma ficção futura. Os personagens, assim, parecem estar sempre em
trânsito, servindo ao Deus do Fluxo; a compulsão definitiva e uma variação da
mola mestra retesada em The New Fate.
Sou bastante interessado nessa noção de um trânsito
interior contínuo, da jornada de ideias e noções e personagens para a Terra e além, para o interior de si mesmo. Em “Beloved Chaos that
comes by Night”, as meditações interiores nos abismos do personagem
principal –
um receptáculo, se preferir, pronto para ser preenchido –, os pensamentos que pretendem se deslocar para além
de seu contexto, para novos lugares, para seu destino final. Os personagens se
tornam hospedeiros de algo profundo e em seu fluir transformam-se em abstrações.
ADM | Existe
em suas narrativas a elaborada construção imagética de objetos, ao mesmo tempo belos e simbolicamente relevantes – os
cálices em “Pray
to the God of Flux”, o passeio dos irmãos em The New Fate,
o sonhador cartógrafo em “White Souls Against a
Dark Background”. Tais imagens são construídas dentro do continuum da
narrativa ou surgem à parte? Como você as visualiza e insere na trama?
JW | Não
consigo separar a captura da construção de objetos pelo imaginário da continuidade oferecida pela escrita de modo geral. Os elementos
visuais e simbólicos parecem despertar tão logo coloco a caneta no pape. Sou afligido por
uma mente que recorda imagens e símbolos de modo que esses
elementos são catalogados em um arquivo mental, para futura referência. Carrego um caderno de anotações comigo tanto nos
dias bons quanto ruins, carrego fragmentos de papel para registrar todos os
tipos de impressão que poderão alimentar posteriormente a construção de imagens. Minha tendência
é
meditar a partir de imagens visuais – indo e vindo, indo e vindo – em minha mente por um tempo
que parece ser a eternidade e assim essas imagens, além
de algumas novas, surgem em muitos de meus sonhos. Ao sonhar, parece que estou
apto a tocar no passado com facilidade, de modo que experimento uma realidade
altamente retrospectiva – o que constitui, talvez,
uma noção com a qual posso trabalhar em minha ficção. Sinto que minha mente
captura coisas “antiquadas” e
sempre foi assim desde que eu era bem jovem, de modo que consigo recordar com
precisão imagens com mais de quarenta anos de idade que talvez estivessem
perdidas em minha mente de modo definitivo. Posso dar um exemplo – uma velha lareira de pedra em um castelo arruinado, situado na extremidade
de uma famosa paisagem de dunas arenosas, visto quando eu era uma criança. O piso decaiu com os anos graças às intempéries do tempo e da história, mas a lareira ainda
está
de pé, a meio caminho da antiga fachada, na verdade não se
trata mais de uma lareira mas de uma espécie
de portal fabuloso que espera para ser atravessado. Da mesma forma, na esquina
da Rua Sclater no East End de Londres, há um
local similar. Percebo que é difícil distinguir entre
escrita e o constante exame e utilidade do imaginário.
Assim, penso que tenho um grande débito para com meu
interesse precoce nos trabalhos de Edgar Allen Poe por isso! Mas precisamos ser
cuidadosos, contudo, com o que concebemos a partir da realidade e da fantasia.
Certa
vez em Palermo, Sicília, nos anos 1980, eu caminhava diante
da vitrine de uma loja em um beco abandonado que exibia um imenso vestuário ritual com o selo do Mega Therion de Aleister Crowley bordado no feitio
de um brasão. Mas, ao analisar os detalhes daquela rua logo no dia seguinte,
percebi apenas uma vitrine extremamente banal sem qualquer tipo de vestimenta
ritualística. Experimentei essa segunda descoberta como uma perda e a imagem
inicial ainda está em minha mente e foi usada em uma distante ficção de juventude. O uso da imagerie também
é um portal apropriado para expandir ou estreitar os
limites de uma história, de modo que pode automaticamente
crescer em uma vida artificial de feitio próprio.
Me interesso, igualmente, por aquilo que os personagens percebem como imagens
importantes dentro do quadro da narrativa – talvez
isso seja mais aparente em “White Souls”
[espelhos, parélios,
símbolos
ocultos] e “Pray
to the God of Flux” [visões
que não são visões mas compulsões que ocorrem no interior da busca por satisfações iníquas de personagens que nelas se enredam como alguém
atingido por uma droga]? E depois existem as imagens captadas da própria existência. As taças
entram nesse caso e vou deixá-las por isso mesmo.
ADM | A novela The New Fate é notável em mais de um ponto de vista: a abordagem do tema do duplo, o
imaginativo retrato da Alemanha durante o nazismo, por exemplo. Em minha
opinião, trata-se de uma narrativa poderosíssima,
no mesmo patamar de narrativas no mesmo formato como Morte em Veneza de Thomas Mann ou The Day of the Locust de
Nathanael West. Fale um pouco sobre o processo de construção desse magnífico livro.
JW | Estou
prostrado diante de suas palavras e mesmo assim não sei por onde começar. A escrita de The New Fate
deixou uma enorme sensação na boca do estômago
e seu desfecho ainda me assombra, uma vez que ela foi escrita antes que eu
tivesse consciência de tê-la
escrito; como se alguma coisa se alojasse e ainda que eu percebesse que falhara
na construção desse desfecho, notando isso instantaneamente, ele já estava no papel. Se podemos afirmar a existência de algo chamado “escrita automática”, então certas partes de minha novela caberiam em tal conceito. Pois não se
tratou de evasivas ou de distanciamento diante das responsabilidades do
escritor como parteiro universal, mas a compreensão de que existem elementos no
processo criativo que são indefiníveis e alarmantes de forma singular. The New Fate caiu do céu como um Ícaro maligno após um período
de significativa meditação silenciosa; eu estava em certo
sentido concentrado na meditação daquilo que poderia ser descrito como o
definitivo niilismo da “nadificação” e
sobre quão vazio o “homem
interior”
poderia ser. Eu sabia que meu desejo era escrever sobre
certos traços do Nacional Socialismo – quando Dan Ghetu [editor]
me descreveu a noção principal por trás
da série de livros The Last Thinkers [“os
últimos pensadores”] – e ainda assim meu desafio
era captar as sutis tendências
ocultas que estavam em jogo criadas pela miríade de imagens históricas que eram extremamente familiares devido aos noticiários, mas de forma que minha representação cessasse de pertencer ao documental,
que ao contrário desdobrasse uma narrativa a respeito de si mesma vinda de si mesma,
testando os limites da história e do ser, alterando a
certeza de reconhecer o nazismo em algo antecipatório
mas sem nome.
Desejo
escavar algo que possuísse certa opacidade, algo
bruto e indefinido, mas que possuísse ao mesmo tempo a
distorcida dinâmica que conduz à compulsão nacionalista irrefreável
e dessa forma, por esse método, o construto obtido se
tornaria a mania acontecida e que era, de fato, cega. O que me ajudou na tarefa
foi o fato de que essa palete em segundo plano parecia fertilizar por si mesma,
naturalmente, as palavras. Sem retorno, diversas vezes, em minha mente às
associações Studentenverbindung da Alemanha do século XIX como a “Terra” central da novela porque desejo descrever e trabalhar com esse tipo de
atmosfera febril em que o pensamento filosófico
e a discussão fossem irrestritos; mas essa ideia ou noção de fraternidade me
conduziu apenas ao conceito localizado dos dois irmãos, Karl e Pieter, uma
significação que eu pude articular apenas de forma indefinida, aqui e ali, de
onde surgiu o pareamento de mentes e ideias que caminhavam do fertilidade e
afirmação da vida para o vazio, ecoando contra o pano de fundo de muitos
emblemas, de uma cacofonia, da confusão caótica.
Depois, peguei essas ideias sobre os irmãos e na tentativa de escrever um “livro de histórias” mundial sobre a tradição
Volkish e aprisionamento cotidiano e destino, acabei por construir algo que
funciona como a meada central da compulsão. Sem dúvida, eu estava dominado pela tradição do conto de fadas e pela noção de
que dentro de cada um de nós haveria certo número
de personalidades que estariam sintonizadas com os noturnos e sombras da “outridade”, uma separação se preferir, que nos envia cada vez mais profundamente do
reconhecimento sadio para as capelas profundas da irracionalidade e do
encantamento. Eu desejava personagens que pudessem ser entendidos como possíveis de aparecer em uma estrada solitária,
fora da página.
E na impressionante permanência
em minha memória dos contos de fada tradicionais que amo, isso se tornou realidade. O
que eu desejo em certo sentido é ser cruel com e dentro da
narrativa, comas figuras em sua paisagem de modo que não existisse conforto em
suas expectativas, nenhum reconhecimento através
dos meios de seu Doppelganger,
apenas o mais elevado retesamento da espiral de iniquidade e o destino
refletido do que foi inflingido a tantos.
Senti
poderosamente as diversas percepções e preceitos de certos tipos de filosofia
da época, como todos esses elementos foram coletados e injetados na alma pelo
protagonista[s] e também o conceito de compaixão e
como, sob determinadas circunstâncias, ele pode ser
esticado até
os pontos extremos da experiência humana, como se de alguma forma fosse filtrado através do reflexo em um espelho fragmentado. The New Fate é algo bem ordinário, habitado e infectado
pelas mentes cotidianas de pessoas ordinárias
que alimentam a irrefreável corrente de
desaparecimento que corre na secura em direção às cinzas. Tenho percepções muito claras a respeito do relacionamento entre
arte e literatura e os temas – que poderiam ser
determinados como uma forma de “abstração”, na qual o que é certo sangraria sem parar naquilo que é incerto, irreconhecível e que se torna mortal e
retorcido quando antes foi tão ordinário. Observar as
operações do Doppelganger na página
se tornou a parte alarmante de trabalho noturno e ainda não
a entendo por completo. Nós nunca podemos estar
certos a respeito de quem também está presente em nossa natureza. Devo considerar que você e D. F. Lewis
conseguiram captar com precisão a essência
de The
New Fate nos raios de Sol. Quanto isso, posso apenas agradecer
imensamente ao tratamento editorial exemplar dado por Dan Ghetu… sei que isso é um fato.
ADM | O
componente imagético e visual de suas tramas possuiria
alguma relação com o cinema, talvez como algumas das criações de Jean Cocteau?
Pois as imagens sistematicamente construídas
em suas tramas não parecem ter uma ressonância
cinemática
tão poderosa como outras narrativas que buscam se
aproximar da linguagem cinematográfica. Haveria algum filme,
diretor ou estilo cinematográfico no qual você
reconheceria uma influência?
JW | Desde
minha infância, sempre fui tão influenciado pelo cinema e
pela linguagem do filme quanto pela literatura. Eu era assombrado, e ainda sou,
pelo cinema alemão antigo e pelo expressionismo alemão – Lang, Wiene,
Wegener/Galeen, etc. – e em particular pela maneira como
narrativas simples se desdobram seguindo a habilidade da imaginação do
espectador em permitir tal desdobramento de modo que elas se implantam em nossa
mente e nunca mais nos deixam. Há perfeitos contos de fada
populares para o lado mais aconchegante da minha mente. Filmes com legendas e
intertítulos, nos quais a noção de narrativa vivenciada e capacidade da imaginação
em contar históricas estavam fundidas no limite em que o espectador se tornava e
permanecia obcecado porque ele ou ela caminhava pela história do filme da mesma maneira que um romance significativo se imprime em
nossa mente filosófica. Não há escapatória. Penso, em particular, no trabalho de Ingmar Bergman – especialmente O Sétimo Selo, Persona,
Silêncio, A hora do lobo, etc. – nos quais as lutas
dos personagens são tão internas quanto universais em sua
anatomia filosófica. Também penso em epifanias
pessoais [talvez essa palavra tenha sido excessivamente utilizada] quando vi
pela primeira vez Espelho do grande diretor russo Andrei Tarkovksy – a poesia visual das imagens e o sentido narrativo do passado e do presente
chegam a ultrapassar as possibilidades de descrição, uma vez que foram
capturados em um crisol com todos os elementos brutos da vida – luz e escuridão, natureza, juventude, velhice, tradição,
história, dor e beleza e alegria espiritual para além de qualquer descrição. É a cascata bruta da vida e
do pensamento que atinge o clímax com a avó retornando através de campos balouçantes. Nada poderia ser melhor. Eu poderia mencionar Alfred Hitchcock, o diálogo interior de Janet Leigh e Anthony Perkins em Psicose e o perfeito caminho de sonho de Du Maurier conduzindo Manderley em Rebeca; Derek Jarman e sua desconstrutiva obra-prima Jubilee; Luchino Visconti – o mestre dos grandes temas
entrelaçados com decadência moral em Morte
em Veneza e
Os deuses malditos [um
nazismo oblíquo e finamente sintonizado, muito superior às noções de [Liliana] Cavani em O porteiro da noite, que não conseguiram tirar
minha frieza] –
e o excepcional ofertório canônico de Roman Polanski, no qual a capacidade narrativa, vulnerabilidade
pessoal e destino são fundidos de forma única.
No
cinema, existem camadas de existência
simbólica
que são capturadas como poeira nos raios da luz solar em uma única sequência de fotogramas, da mesma forma que uma frase dentro
de um romance –
o filme como um único fotograma, ou
seja, como uma única imagem escrita ou passagem ou capítulo. Nos meus primeiros anos em Londres, lá pelos
idos de 1978-81, estive obcecado com o Magick
Lantern Cycle de Kenneth Anger – pois essas breves e
peculiares obras-primas são os equivalentes visuais das fábulas, histórias curtas, parábolas, poemas e sonhos esquecidos ou fragmentos
de sonhos induzidos pelo ópio que se perderam antes
do clímax do REM. Assistir os filmes de Kenneth Anger permite a abertura de um
sentido questionador da articula o estado de sonho em uma narrativa, na qual a
lucidez comatosa é o passaporte para oportunidades
infinitas da caneta no papel. Eu poderia dizer que se trata de uma influência chave. Imagine a força
da imagem de um pé de elefante pisando em uma cobra, visto
por apenas um segundo como se não existisse. Se foi… mas
não de nossa cabeça… estará para sempre. Veja Lucifer’s
Rising e veja por si mesmo.
ADM | Tendo
em vista o material que você já publicou, há de sua parte uma aparente preferência
pela narrativa curta – o conto ou a novela. É uma
escolha deliberada? Você pensa em publicar um romance no futuro?
JW | Tive o privilégio de ser agraciado com oportunidades
significativas para desenvolver o conto até o
formato da novela e devo isso a Mark Valentine e Dan Ghetu pelo encorajamento e
fé
em meu trabalho. Eu diria que tal trabalho não foi assim
deliberado, como uma previsão, uma transição altamente instrutiva para o
processo de formatação de ideias, noções e sombras de personagens a partir do éter; quase um “deixe acontecer”,
se preferir. Eu acredito que a forma da novela é um
mecanismo bastante preciso para o desdobramento e exame de noções e ideias.
Trata-se de um formato desafiador, mas que traz mas que traz consigo vantagens
em seus próprios
limites, especialmente úteis quando o construto
central dentro da novela está encubado, inculcando a si
mesmo como em um automático e distanciado
processo. Tais recursos se manifestaram em um recente material que enviei para
Mark Beech [editor] da Egaeus Press e também,
parcialmente, no trabalho que fiz para Dan Ghetu sobre Fernando Pessoa. Me senti,
nesses casos, profundamente perturbado e profundamente excitado porque
aparentemente significava que havia outras forças
trabalhando, forças bastante cruas e profundamente
independentes da idealizada personalidade de um escritor. Talvez eu desenvolva
essa percepção posteriormente, talvez eu apenas termine com isso para o mundo
ver os resultados. Eu adoro a pergunta: “existe
um romance em você?” – meu pai me perguntou isso – e minha resposta seria “sim, provavelmente”.
Tenho
dois projetos em desenvolvimento atualmente – espero
que os deuses permitam que eu posso fundi-los em um romance – que jogarão alguma luz nas Sombras de Londres [conheço uma pessoa que vai reconhecer essa ideia] juntamente com algo chamado O
livro das bruxas de Londres – mas não espere bruxaria
aqui, mas sim uma insidiosa e incerta filtragem de certo espectro de Londres
que se acumula no fundo da ampulheta acompanhando minhas perambulações pela
Alameda da Memória,
torcendo para que aquilo que eu recupero faça
algum sentido. Mergulharei nessa fusão a primeiro de janeiro de 2015, como uma
defesa contra o tédio e os rituais de final de ano, de
uma transição que é como a face de Jano e por que não?
Muitos fragmentos foram escritos e agora devem ser arranjados. Contudo, não sou
corajoso o suficiente diante da ideia de um romance. É uma perspectiva
apavorante, a expansão do regime e da paisagem da novela em uma nova e
cultivada terra. Há o conflito no romance – entre o equilíbrio e a confiança
na narrativa, a constância e a credibilidade dos
personagens e a nobreza e grandiosidade da situação; e se essa “grandeza” for confinada aos pensamentos íntimos de um velho
misantropo, então é necessário
apressar um estudo e mais tinteiros antes da chegada do destino. Não sou tolo o
suficiente para pensar que algo assim seria fácil.
O medo de um escritor é pior que qualquer bloqueio
criativo.
RESENHA DE THE
NEW FATE | Estou diante de um romance breve, uma
novela, The New Fate, de Jonathan Wood. Do autor, nada sei: a não ser que esse é o seu primeiro livro (antes, apenas
participou de coletâneas) e que sua editora, a Ex Occidente
Press de Bucareste, publicou um dos mais belos livros que já tive em minhas mãos com The New Fate.
Tipografia, design, arte e acabamento da edição são
primorosos, com detalhes interessantes; a contracapa do livro é de um tecido, provavelmente um tipo de pelúcia,
que lembra o pelo de animal, quente e suave ao toque. Aliás, toda a coleção a qual The New Fate
pertence, de título "The Last Thinkers", possui esse acabamento (o mote da série é de uma sutileza ferina, enigmática: "The Seer is
Never Thanked" ou "O vidente (se bem que seer é um termo de complicada tradução) nunca recebe gratidão").
A narrativa em si de Wood, contudo, é a parte mais extraordinária do
livro, ultrapassando os limites da embalagem de luxo: parte digressão filosófica, parte conto fantástico, parte alucinação ou sonho, vemos uma bestialidade que, ao longo da narrativa, mostra ser
o nazismo desde um ponto de um ponto de vista singular, do delírio. Acompanhamos uma visão alucinatória
que se desdobra, um trabalho de ampliação do significado usual do duplo através do deslocamento do ponto de vista do mesmo para o outro lado, o lado
aparentemente espectral e ameaçador do ponto de vista do
outro. O desfecho nos lembra que o totalitarismo, qualquer que seja seu matiz e
mesmo quando supostamente afirma a dimensão do mito e do sobrenatural, é destruidor do mito e do sobrenatural ao impedir as interações possíveis com o Outro. O afastamento de um dos lados do duplo, Pieter, seduzido
pela rotina do universo feroz que é aquele do nazismo e
a percepção dessa nova realidade de uma maneira singela e emotiva (talvez
transtornada) do segundo "eu" que é Karl (ou Klaus) é uma remodelagem original ao tema do duplo. A trama também possui forte ressonância especulativa e filosófica, algo em comum com os outros livros da série,
focados em uma experiência filosófica
que não se traduz apenas na descrição de conceitos, mas inclui
o aspecto visionário e dissonante do estar-no-mundo. A
complexidade das concêntricas idas e
vindas (uma das imagens recorrentes da trama é a
mola, a espiral) não tira do poderoso desfecho algo de
comovente… Trata-se de uma das melhores narrativas do século
XXI que, provavelmente e infelizmente, jamais será traduzida
ao nosso idioma.
ALCEBIADES
DINIZ MIGUEL
| Doutor em História e Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas,
atualmente pesquisador em programa de pós-doutorado pela Fundação Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro. Entrevista e resenha realizadas
com apoio do programa PNAP-R, da Fundação Biblioteca Nacional
(FBN). Contato: alcebiades.diniz@gmail.com. Página ilustrada com obras de Egon
Schiele (Áustria), artista convidado desta edição de ARC.
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