Em um estranho e imenso país chamado Brasil
costuma ocorrer coisas por vezes muito curiosas e até preocupantes. Ao
longo de minhas viagens a países hispano-americanos, convidado a participar
de eventos literários, sempre me surpreendia a maneira afetuosa com que se
falava em Lêdo Ivo (Maceió, 1924). A princípio me parecia um mal entendido,
porque a suposição correta era de que seriam outros os famosos a alcançar
projeção internacional. Mas logo vou descobrindo que a raiz de tudo está na
pouca (ou nenhuma) atenção que escritores brasileiros dão à América
Hispânica, um comportamento que reflete o alto grau de provincianismo de
nossa cultura. De qualquer maneira, fui constatando a frequência com que o
nome de Lêdo Ivo me era indagado e me encabulava o fato de não conhecê-lo
pessoalmente ou mesmo haver sequer trocado alguma correspondência com ele em
minha vida. Pior: eu praticamente não conhecia sua poesia. Um dia finalmente
coincidimos em Santo Domingo e fomos apresentados por nosso comum editor
mexicano, José Angel Leyva. Sua figura carismática, amiga, divertida,
rapidamente instalou entre nós boa amizade e mútuo respeito intelectual. De
regresso ao Brasil, Lêdo me enviou seus livros e avançamos em nosso diálogo,
sempre me inquietando o fato de que sendo autor tão reconhecido nos países
vizinhos não gozasse do mesmo prestígio no Brasil. Em 2009 recebi convite da
Casa das Américas, para ir a Cuba integrar o júri de seu famoso prêmio
literário. Ao encontrar entre os livros inscritos a poesia de Lêdo Ivo,
percebi a oportunidade que se abria e tratei de conversar com os dois outros
membros do júri, a brasileira Ana Maria Gonçalves e o angolano Ondjaki,
observando a importância de registrar, através do Prêmio Casa das Américas, o
valor da poesia deste brasileiro de ainda exíguo reconhecimento em seu
próprio país. E sem necessitar dever favores a ninguém, pois o livro
inscrito, Réquiem, não somente oferece grande poesia, como vinha
de duas belas edições no exterior, precisamente no México e na Itália. Assim
é que fico feliz por haver de alguma maneira contribuído no sentido de
remediar parcialmente a desatenção brasileira em relação à obra poética de
Lêdo Ivo. Posteriormente o poeta ganharia também o Prêmio de Poesia
do Mundo Latino Victor Sandoval (México, 2008) e Prêmio Rosalía de
Castro (Espanha, 2010). Publicado em países como Espanha, Dinamarca, Itália e
Estados Unidos, assim como, em países hispano-americanos, Chile, Venezuela,
Peru e México. A seguir, uma breve conversa nossa sobre alguns aspectos de
sua vida e da literatura brasileira. Abraxas
FM Há uma observação que fazes a respeito de
tua avó materna, no sentido de que ela “era uma católica praticante: um
catolicismo ortodoxo, jamais baianizado”. Sempre me pareceu que a literatura
no Brasil foi profundamente prejudicada pela interferência católica. Bem
entendido: do catolicismo adotado por nossos escritores e intelectuais.
Figuras determinantes como Alceu Amoroso Lima e Mario de Andrade quando menos
propiciaram um fio de alta tensão entre o que chamas de catolicismo ortodoxo
e baianizado, reorientando a vocação poética de muitos de nossos escritores,
interferindo na própria configuração cultural do país. Qual a extensão de um
prejuízo dessa natureza, em teu entendimento?
LI Não creio que “a literatura no Brasil foi
profundamente prejudicada pela interferência católica”. Como todos os países
do Ocidente, o Brasil, como civilização, é uma criação do Cristianismo, cuja
maior obra é a própria Europa. Foi o Cristianismo que colonizou a América,
deixando marcas imperecíveis em sua educação, arquitetura, música, pintura,
modo de viver e de morrer etc. Esse impacto civilizatório, destruindo em
muitos casos civilizações milenares, como as maia, asteca, inca, modelou o
sistema de educação e de produção literária e artística. O Brasil, desde o
dia de sua “descoberta”, com a Primeira Missa, seguiu e segue esse caminho.
Cabe destacar que, no século xix,
a inteligência brasileira em sua maioria seguiu o caminho do Positivismo, e
recebeu influências de Darwin e Spencer, neutralizando poderosamente o selo
católico da nossa civilização, a qual se caracterizava pelo fato de o
catolicismo ser a religião oficial do país. Além do mais, cumpre sublinhar
que essa nova direção literária e artística se disseminou no século xx. O grupo católico (Jackson de
Figueiredo, Alceu Amoroso Lima, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Otávio de
Faria, Tasso da Silveira e tantos outros) representa essa projeção de
espiritualidade, numa literatura de forte conteúdo regionalista, paisagístico
e de escassa interrogação existencial. Hoje, com a expansão dos evangélicos e
das religiões e seitas africanas, a influência católica, quer a temporal,
quer a espiritual, diminuiu sensivelmente, e são raros os escritores
brasileiros aos quais se poderia considerar “católicos fervorosos” ou
atuantes. Na imensa maioria, eles, como os pintores e músicos, são católicos
históricos e tradicionais (herdeiros de tradições domésticas)
“livres-pensadores” ou declaradamente ateus.
Deve ainda ser acentuado que a literatura não é um caminho único, e a
comunidade literária se irradia em várias e numerosas famílias espirituais,
tanto no plano estético como nos planos político e moral.
FM Bem, não podemos esquecer que o projeto
modernista de nacionalizar o Brasil tinha forte conotação católica, cujos
desdobramentos conduziram ao integralismo. Benjamin Moser, na biografia de
Clarice Lispector, por exemplo, ao referir-se a Plínio Salgado, observa que
“como muitos integralistas, Salgado era fortemente influenciado pelos
escritores católicos que emergiram nos anos 1920, com suas sugestões de
nacionalismo místico”. Havia então a presença da revista A Ordem,
dirigida por Augusto Frederico Schmidt, em um ambiente onde se confundiam
aspectos como a chamada escola introspectiva, nacionalismo místico, integralismo,
em uma mesma sala frequentada por Tristão de Athayde, Mário de Andrade, o
próprio Schmidt, Plínio Salgado, ambiente que em dado momento chegou a estar
sob a coordenação impositiva da Agência Nacional e Lourival Fontes, o
super-homem de Getúlio Vargas no comando do Departamento de Imprensa e
Propaganda. Ainda me refiro ao Benjamin Moser, ao dizer que “a fé católica de
muitos desses escritores levou alguns deles a se associar, em geral
temporariamente, ao integralismo, e a defender certas propostas reacionárias,
como a militância de Vinicius de Moraes em favor do cinema mudo”. Quando
passamos à Geração de 45, o que muda nessa relação com o catolicismo?
LI Não creio que o projeto modernista de
nacionalização do Brasil tenha tido “forte conotação católica” como você
afirma. Esse projeto se inspirou em elementos indígenas e folclóricos, como o
comprova o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade e a redescoberta do
barroco mineiro por Mario de Andrade, o qual era, aliás, um católico
tradicional. E a esses elementos de ancestralidade se acrescentou um tempero
de vanguardismo europeu, especialmente o sentimento da velocidade haurido no
futurismo de Marinetti. Observe-se que os modernistas de São Paulo ignoravam
o Nordeste brasileiro e o viam de longe com olhos turísticos. E de “turistas
aprendizes”, para usar aqui uma expressão afortunada de Mario de Andrade.
Plínio Salgado, com os romances em que se utiliza de um processo de
fragmentação da narrativa, e uso imoderado da elipse e do laconismo, é um seguidor
e discípulo de Oswald. Como é um discípulo incômodo, dada a sua condição de
criador do Integralismo (o chamado “fascismo caboclo”), a crítica e os
estudiosos do Modernismo sempre esconderam essa evidência, omitindo seu nome
ou menosprezando-o, com a exceção notável de Wilson Martins que, em sua
monumental História da Inteligência Brasileira, chama a atenção
para a importância seminal de O Estrangeiro no cenário da
nossa ficção. Quanto a Vinicius de Moraes, ele foi uma descoberta de Otávio
de Faria, que lhe dedicou parte do livro Dois Poetas (o
outro é Augusto Frederico Schmidt). Otávio de Faria, autor de um incômodo e
instigante ensaio Machiavel e o Brasil, em que denuncia as nossa
misérias políticas, influenciou profundamente Vinicius de Moraes em sua
primeira formação marcada pela sua simpatia pelo fascismo. Eram amigos
íntimos e ocorreu entre ambos uma relação homossexual que foi apagada quando
Vinicius se tornou um dos expoentes da esquerda e do comunismo de salão. O
seu interesse pelo cinema mudo veio de Otávio de Faria, criador do Clube
Chaplin, quando estudante da Faculdade Nacional de Direito. Nada teve a ver
com o catolicismo. E há uma retificação que deve ser feita: Otávio de Faria
nunca foi integralista. Ele foi fascista, assim como Jorge Amado, Graciliano
Ramos e Carlos Drummond de Andrade foram comunistas, e Rachel de Queiroz foi
comunista e depois trotskista num tempo em que a intelectualidade em sua
maior parte não acreditava na Democracia, considerando-a o regime da
burguesia conservadora e infensa às grandes reformas políticas sociais e
econômicas. E além do mais, o Brasil de 1930 até 1945 foi governado pelo
estadista autoritário, centralizador e ditatorial Getúlio Vargas, e na Europa
imperavam o nazismo de Hitler, o fascismo de Mussolini, o franquismo do
generalíssimo Franco e várias ditaduras sul-americanas dominavam a América.
Evidentemente que a inclinação dos escritores católicos ou de famílias
tradicionalmente católicas era pelo fascismo e o integralismo. (“Deus,
Pátria, Família”, era o lema do integralismo. Os integralistas envergavam uma
camisa verde com um sigma que os distinguia, como os nazistas e fascistas).
Quando a Geração de 45 emerge, finda a Segunda Grande Guerra com a
derrocada do nazismo e do fascismo, o debate político passa a um segundo
plano. Pelo menos no seu início, essa geração será formalista e esteticista,
preocupada com a “reconstrução” da poesia e da literatura brasileira. O
nacionalismo modernista será substituído por um subjetivismo crescente e por
um cosmopolitismo de natureza atualizadora. É o tempo da descoberta de Rilke,
T. S. Eliot, Paul Valery, Mallarmé, Ezra Pound, Saint-John Perse, Ungaretti e
outros, que substituíram as devoções modernistas. E estas eram Apollinaire, o
futurista Marinetti e o Blaise Ceadrars que Oswald de Andrade praticamente
depenou em seu Pau- Brasil. Uma coisa singular é que o
Modernismo, teoricamente programado para proceder a uma atualização da
literatura brasileira, foi um dos movimentos mais desatualizados e
desinformados em relação às revoluções estéticas que então se operavam na
Europa e nos Estados Unidos. No grande banquete dos ismos do século XX,
alimentou-se de migalhas.
FM Estamos de acordo que “uma luz impostora
ilumina todas as vidas”. Evidente que não significa com isto falsear a
realidade de forma canalha, mas antes reconhecê-la como uma mescla de razões
e desrazões, anseios e decepções, impulsos e repetições, essências e
trivialidades. Como a poesia te descobre? O que sabias de ti quando começaste
a escrever?
LI Ao longo de minha trajetória literária,
tenho me manifestado talvez exaustivamente sobre a criação poética e a
poesia. E decerto essas manifestações haverão de ser sempre fragmentárias e
incompletas. Para mim, a poesia é uma manifestação da criatividade humana; uma
arte – a arte de fazer versos; o uso supremo da linguagem, já que ela é uma
magia verbal, um “idioma” específico dentro da linguagem não só a comum como
também da linguagem literária da prosa; um testemunho da condição humana; uma
celebração do Universo pelo homem. Dentro desse quadro imemorial, que
proclama a necessidade humana de exprimir-se (inventando e documentando a
passagem do tempo e a sua experiência pessoal), cumpre sublinhar, com a
necessária ênfase, que a Poesia resulta de uma vocação individual e
intransferível, que se realiza e se aprimora através do trabalho, da
pesquisa, da experimentação e da capacidade de renovação diante da tradição.
O poeta nasce poeta e se faz e é feito pela cultura que consegue incorporar
ao seu ofício. E ele é apenas um elo no grande sistema poético do mundo, um
grão de poeira numa tradição que vem do início do mundo e haverá de continuar
enquanto este nosso planeta existir. Isto porque há algo, no mundo e sobre o
mundo, que só a linguagem poética tem condições de exprimir. Há algo, no
homem, do homem e para o homem, que só o poeta tem condições de dizer,
através de e com a sua linguagem.
Quando comecei a escrever na adolescência, nada sabia de mim, a não
ser que desejava ser um poeta e escritor, e colocar a minha poesia e a minha
prosa a serviço dos homens, o que significa colocá-la a serviço da vida e até
da mudança do mundo, já que a mim me doíam e me doem a miséria e a injustiça,
a desesperança e a morte.
O importante é que o escritor ou poeta projete em sua obra a sua
experiência, aquilo que Rubén Darío chama de “o tesouro pessoal”. E converta
essa experiência numa linguagem inconfundível.
FM Quais, aos olhos de um poeta brasileiro,
seriam as verdadeiras provas da realidade?
LI A realidade é sempre uma visão pessoal da
realidade. Cada um de nós tem a sua, e trabalha com ela ou para ela. É,
assim, uma representação, um modo de ver. Entendo que cada poeta, desde os
mais exponenciais aos mais modestos e obscuros, projeta em seus poemas uma
determinada visão da realidade, do mundo em que respiram, da vida que levam.
Para mim, até o sonho e a “alienação poética” são realidades, pois se
integram na vida pessoal do poeta e em sua produção. Direi que a visão que
tenho do mundo é a minha realidade. É talvez ou decerto uma realidade
pessoal, intransferível, mas nela cabem ou devem caber as realidades dos
outros. Goethe diz que os homens são seres coletivos. Isto significa que não
somos sozinhos nem estamos sós. Somos nós e os outros. Os outros de hoje e os
outros de ontem.
FM Entendes que o cosmopolitismo da literatura
brasileira é uma farsa? Como nos relacionamos com grandes centros canônicos e
não com a grandeza natural da cultura em cada país, que outro Brasil tens
descoberto à sombra dessa máscara?
LI Partamos do princípio e da evidência de que
nós, escritores latino-americanos, somos seres divididos entre o nosso
indigenismo e a nossa ibericidade. Como todos os países periféricos que
constituem a América Ibérica (à qual o Brasil pertence), temos uma língua e
uma etnia europeias (o espanhol, o português) e somos os herdeiros ou
usufrutuários de uma cultura transplantada e da cultura autóctone. E a essas
culturas se soma a cultura milenar que nos veio da África À cultura
transplantada – literatura, música, arquitetura, educação, culinária, modo de
viver e de morrer etc. – conferimos um selo nacional que é a nossa diferença
decorrente do nosso indigenismo. O chamado “cosmopolitismo” de parte da
literatura brasileira – como de resto a dos outros países como Cuba ou México,
Chile ou Argentina – testemunha a nossa ligação transatlântica com a Europa,
que, como centro inarredável de tradição e laboratório de experimentação e
invenção, atrai a nossa atenção, nos abastece com o seu saber e a sua
criatividade e contribui para o nosso aprimoramento. E se funde com o que
temos de telúrico e nativo, do nosso chão. Atualmente, podemos vangloriar-nos
de que a produção literária e artística na América Ibérica já atingiu um
ostensivo grau de autonomia e independência, não pelo que recebemos ou
imitamos, mas pelo que criamos e inventamos. A América Latina se tornou a
pátria da imaginação e da criatividade, cada vez mais apreciada pelos
estudiosos, críticos e leitores de uma Europa que atravessa um período da
ostensiva exaustão, após tantos movimentos renovadores como o simbolismo, o
surrealismo, o cubismo, o futurismo, o expressionismo e outros. A presença de
escritores latino-americanos no fluxo editorial europeu, e ainda a sua
presença nos festivais e congressos realizados na Europa, indica que cada vez
mais estamos sendo reconhecidos pela nossa diferença e originalidade. Com a
sua explosão imaginativa, a diversidade artística, o seu ímpeto testemunhal e
documental, a sua diversidade artística e a sua originalidade manifesta, a
literatura, hispano-americana é cada vez mais apreciada e aplaudida na
Europa. Ostentamos, ainda, uma “irracionalidade” e uma “magicidade” que, pela
sua dimensão onírica, primitiva e arcaica, é outra fonte de atração.
LI Há poetas e escritores que dão o melhor de
si mesmos na juventude ou na maturidade, e decaem ou se tornam repetitivos à
medida que envelhecem. Outros há que se inovam e dão o melhor de si mesmos na
idade madura e na velhice. É um quadro variado. O importante é que o poeta ou
escritor descubra o momento em que deve silenciar, se é que ele deve
silenciar em algum instante de sua vida.
FM Na pg. 132 do teu livro de ensaios O
Ajudante de Mentiroso mencionas a tua insularidade como elemento
responsável pelo que chamas de “talvez incômodo ar de estrangeiro no cenário
das letras brasileiras”. Restringes a uma inveja crônica a relutância do meio
literário em relação à tua obra e até mesmo à tua pessoa. O caso se explica
assim mesmo, de maneira tão provinciana?
LI No meu caso pessoal, a minha “insularidade”
decorre da circunstância de ser originário de Alagoas, no Nordeste brasileiro
– uma região que se caracteriza pela sua beleza oceânica e litorânea, pela
miséria clamorosa da maior parte de sua população. Acrescente-se a essas
evidências a minha solidão, já que, antes de mim, minha terra natal só
produziu dois escritores de projeção nacional, Graciliano Ramos e Jorge de
Lima. A esses elementos, acresce o fato de ter seguido, no meu ofício
literário e poético, um caminho que atesta irrefutavelmente a minha diferença
em relação à minha geração e talvez ao próprio legado cultural do Brasil.
Costumo dizer que os escritores são constituídos pelo talento (quando o têm)
e pela inveja (sempre). Mas esta minha frase deve ser acolhida mais como
uma boutade. Embora a vida literária seja um ostensivo domínio de
competição e conflitos, e espelhe as virtudes e vícios da condição humana, é
também o território de uma convivência harmoniosa. Ao longo do meu trajeto de
escritor, muitas mãos, algumas gloriosas, se têm estendido para mim,
apoiando-me e abrindo-me caminho. E, de minha parte, tenho procurado proceder
da mesma maneira. Minha vida tem sido um estuário de amizades. E também de
admiração. Sei admirar.
De qualquer modo, sinto-me um sobrevivente, já que atravessei vários
movimentos poéticos sem aderir a eles – o que não foi o caso de grandes
poetas empenhados em obter o aplauso ou a cumplicidade dos jovens – e assisti
ao sumiço e naufrágio desses movimentos. Confesso que sou muito cioso de
minha diferença, a qual se projeta no meu trabalho e na minha maneira de
conceber a literatura e a poesia, e deve constituir o meu selo pessoal de
poeta e escritor, o que me distingue dos meus queridos confrades.
FM Outro dilema curioso que encontramos na
literatura brasileira diz respeito a este seu aspecto livresco – uma
literatura “que só sabe respirar o ar abafado dos livros” –, como tão bem
mencionas. O escritor brasileiro, em geral, rejeita a si mesmo como elemento
constitutivo da relação – que só se realiza, por sinal, de maneira visceral –
entre realidade e literatura. Há o prejuízo imediato da superficialidade e um
outro, por efeito de decorrência, de ausência de diálogo com as grandes
correntes internacionais. Apontamos aqui as resultantes – teu diagnóstico é
perfeito, ao dizer que esta literatura “não pode fazer a leitura do mundo” –,
porém, qual é a matriz em que se origina este desvio?
LI Um escritor deve ser livresco e
antilivresco. Deve ser guiado pela evidência de que a literatura e a poesia
são problemas de cultura e não de mera sensibilidade. Um poeta, a meu ver,
deve ser o protagonista mais culto da comunidade literária, devendo conhecer
um legado que vem de Homero a Dante, de Virgilio a Camões, de Quevedo a
Shakespeare e se estende até os nossos dias. O conhecimento de outras línguas
é para mim fundamental, já que a tradição cultural da língua portuguesa era
insuficiente para as minhas necessidades de expressão e educação cultural. Já
o espectro da língua espanhola é diferente. Você pode ser um grande poeta ou
romancista em língua espanhola sem necessitar conhecer outras línguas, já que
no passado hispânico há Cervantes e Quevedo, Lope de Vega e Garcilano de la
Vega, Fray Luis de Leon e Rubén Dario, Góngora e Antonio Machado, e centenas
de outras referências basilares.
Por outro lado, o escritor deve respirar o ar da vida, da convivência,
o mundo dos outros, pois nele é que se abastece para a sua criação poética e
literária. E cada poeta ou prosador faz asua leitura do mundo – não
uma leitura global e total do mundo, que é muito vasto e inapreensível. Lembro o verso
magistral de José Martí: “Dos patrias tengo yo: Cuba y la noche”. Nós, poetas, temos sempre a nossa Cuba (o nosso Brasil, o nosso
México, o nosso Chile) encravada em nossos corações. E temos a noite: o
território das escuridões e constelações, dos sonhos e pesadelos, da
interrogação existencial, da indagação cosmológica, da fusão amorosa, do amor
e do ódio, de nossa condição humana.
FM Em 2002, quando Walter Galvani recebeu o
Prêmio Casa das Américas, em entrevista concedida a Fabrício Carpinejar (Rascunho,
junho de 2002), o romancista comentou haver sentido restrição da parte da
mídia brasileira, que ele supõe tenha sido em relação ao regime cubano,
observando que “a divulgação em si não foi à altura do prêmio, que tem
prestígio e significado internacional”. Mais recentemente ganhaste o mesmo
prêmio. Como há reagido à premiação a imprensa brasileira? Acreditas que este
prêmio tenha perdido prestígio internacional?
LI O Brasil é um grande gueto literário e linguístico.
A literatura brasileira é completamente desconhecida no Exterior. Alguns
poetas e novelistas são editados e apreciados, individualmente, na América
Hispânica e em alguns países da Europa, mas esse conhecimento de criações
artísticas individuais não chega a se configurar na presença de um país
(ainda exótico) e de uma literatura. No plano interno o desconhecimento é
ainda mais pungente. As tiragens dos nossos livros literários são quase
sempre exíguas. Predomina no mercado o livro estrangeiro, especialmente
o best-seller planetário, sinal inequívoco da colonização
cultural e da dominação comercial por editores multinacionais. A atividade
literária no Brasil é cosmética, decorativa, ornamental. Ser escritor no
Brasil é uma coisa muito melancólica.
FM És um dos poucos autores brasileiros com
trânsito livre nos países hispano-americanos. Transfiro para ti a pergunta
que quase sempre me fazem, acerca do indigesto silêncio que marca as relações
culturais do Brasil com esses países. Quais os motivos da pouca (ou nenhuma)
atenção que nossos intelectuais, sobretudo eles, dão à poesia
hispano-americana?
LI Não posso nem devo esconder que a minha condição
de “poeta ibero-americano”, decorrente de minha presença em numerosos
festivais de poesia e também de sucessivas traduções de minha poesia, em
antologias poéticas ou em livros autônomos, muito me alegra. Esse trânsito,
iniciado em 1980, quando Carlos Montemayor fez editar no México a
antologia La Imaginária Ventana Abierta, e que hoje alcança a
Espanha, onde a minha obra poética começou a ser traduzida de maneira
intensiva, é realmente um trânsito pessoal. Várias causas podem ser
atribuídas ao silêncio do Brasil. Menciono a circunstância de que a língua
espanhola só agora, no governo Lula, começou a ser ensinada nas escolas. Até
antes da Segunda Grande Guerra, os escritores brasileiros, quando sabiam
francês, ensinada nos colégios, se voltavam para França. E quando só
conheciam o português, contentavam-se com as traduções estrangeiras e as
produções existentes no idioma nativo. O exílio de incontáveis professores e
escritores brasileiros nos países da América Hispânica, durante a ditadura,
instaurada em 1964, estimulou a curiosidade em torno das literaturas desses
países. Mas o caminho da descoberta haverá de ser longo e demorado, e
literaturas ricas e vigorosas de uma América que é hoje a pátria da
imaginação e da poesia haverão de ser consumidas pelos escritores e leitores
brasileiros. Cabe ainda sublinhar a inoperância dos mecanismos culturais
destinados a promover a nossa literatura no Exterior, o que estabeleceria uma
contrapartida proveitosa com as demais nações hispano-americanas.
É notório que a poesia produzida em grandes países do Ocidente está
hoje esgotada e necessita de uma transfusão que a América ibero-americana tem
condição de oferecer.
A repercussão escassa do Prêmio da Casa das Américas a um escritor
brasileiro deve ser atribuída à visão provinciana que o Brasil tem do próprio
Brasil, e que se irradia por todos os setores. O prestígio dos prêmios da
Casa das Américas nos países hispano-americanos e na Espanha e em outros
países da Europa é incontestável.
Quando fui distinguido com o Prêmio Literatura Brasileira da Casa das
Américas, a repercussão nos países hispano-americanos e na Espanha foi
confortadora. No Brasil, foi irrisória.
O insulamento cultural do Brasil é uma realidade incontestável. E
precisamos de pontes, neste mundo cercado de outros lados.
|
Fortaleza, Rio de Janeiro - Julho de 2010. Página ilustrada com obras
de Gonçalo Ivo.
|
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
FLORIANO MARTINS | Um poeta chamado Lêdo Ivo
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