quinta-feira, 12 de novembro de 2015

LÊDO IVO | O poeta e suas ilhas

Muito me alegra estar aqui, no instante em que esta Universidade se abre mais uma vez para o trabalho de transmissão do saber.
Esse rito anual se insere no processo que regula o fluir planetário das estações. E a todos nós, aqui presentes, esse momento magno lembra e adverte que a existência dos homens não se esgota na sucessão às vezes fastidiosa da vida cotidiana.
Os largos dias iguais, que não deixam memória, têm a sua monotonia quebrada por algumas ocorrências diferentes e até luminosas. São os instantes epifânicos da festa e da cerimônia.
Diante de tantos jovens anônimos, e muitos deles já firmemente empenhados em converter o juvenil anonimato na afirmação nítida de um nome e de um trajeto profissional; diante de eminentes professores vestidos com as suas togas preclaras, rendo-me à evidência de que sou, neste instante, um dos comparsas de um ritual. E essa comparsaria mais fortalece em mim a convicção de que o futuro do mundo e do tempo está condicionado à repetição e perenidade de ocorrências como estas, em que as gerações se defrontam, os saberes acumulados se fazem ostensivos na gravidade dos rostos, gestos e palavras dos mestres aqui presentes, e as ignorâncias radiosas despertam para as interrogações fecundas e as perplexidades inevitáveis.
Não concordo com aqueles que se satisfazem com a banalização perene da vida e enxotam os rituais, considerando-os sobras arcaicas e atávicas que colidem com a clareza da vida. Entendo, muito pelo contrário, que precisamos retornar sempre ao espaço mágico e sagrado em que o início e o fim se encontram e se unem, no conúbio misterioso em que o silêncio ao mesmo tempo inaugural e derradeiro sela todas as bocas e responde a todas as perguntas.
Confiou-me esta Universidade a honra de ministrar a Aula Magna deste ano. Talvez tenha havido uma transgressão nesse generoso ato de confiança, já que ela escolheu não um mestre, mas um aluno, e talvez um aluno relapso que, diante da noite que avança, tem a consciência plena de sua ignorância.
Rendido à sedução dessa escolha temerária, aqui estou com a minha palavra.
Inicialmente, peço permissão para evocar a alagoanidade do nome desta antiga Ilha do Desterro. Esta cidade marítima, insular e lagunar lembra Maceió, a minha cidade natal. Na primeira vez em que aqui estive, há vinte anos, convidado por esta mesma Universidade que ora me acolhe, para participar de um seminário sobre literatura brasileira, experimentei uma espécie de familiaridade geográfica ao percorrer as suas ruas e praças, ilhas e praias, e ao receber no rosto o vento que, para Virgílio Várzea, era o sinal de partida e evasão.
Era como se eu estivesse no Norte, no Nordeste mestiço e não neste Sul, que tanto deve à colonização alemã, italiana e açoriana, neste estado de Santa Catarina, em que mais de um viajante estrangeiro ficou de boca aberta ao ouvir negros puros falando alemão.
Ocorreu-me a explicação de que a semelhança por mim verificada entre Maceió e Florianópolis se originava de um imperativo geográfico. Maceió é uma península. Esta cidade é uma ilha. A peninsularidade de minha terra natal e a insularidade de Florianópolis terão assegurado a ambas defender e proteger certos valores – arquitetônicos, morais, religiosos, sociais, paisagísticos – das marés descaracterizadoras. Aqui, como a mormacenta Maceió, é castiça terra de peixe, de camarão, de lagosta, de crustáceos e moluscos.
Nessa minha primeira viagem a Florianópolis, a culinária magnífica de frutos do mar fez renascer o menino guloso que sempre se esconde e se exibe em mim – e espero que desta vez ele volte a manifestar-se com o mesmo brio.
Cidade que porta o nome daquele marechal misterioso que, no tumultuado e sombrio alvorecer de nossa República, implantou um autoritarismo que continua sendo um dos ingredientes das medicinas políticas do nosso país – Florianópolis tinha para mim o sabor de um estado que tirou o seu nome das águas: o estado das Alagoas.
Ao percorrer as suas ruas e ao deter-me na arquitetura graciosa e caprichosa e meio rococó do belo Palácio do Governador, tão assemelhado aos palácios brancos dos rústicos e perdulários governadores nordestinos, dominava-me o sentimento da unidade do Brasil – uma unidade nascida de sua notável e até surpreendente diversidade; tão diversa e misteriosa que foi aqui, nesta loura e branca Ilha do Desterro, que nasceu aquele poeta maldito que é hoje um clássico, e só pode e deve ser colocado ao lado de Castro Alves, Gonçalves Dias, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.
Com efeito, a aparição de Cruz e Sousa, o chamado Cisne Negro, sublinhada pelo contínuo esplendor do seu destino póstumo, aponta para o mistério das pequenas províncias que – como Alagoas produziu Jorge de Lima e Graciliano Ramos – geram figuras exponenciais das letras e das artes. Assim, para tudo resumir, em Florianópolis eu me sentia em casa; e o meu sentir-me em casa abrangia o lauto cardápio oceânico, o azulejo das casas, a claridade da paisagem, todo o longe tornado perto e íntimo. E ao sentimento do presente se colava a lembrança dos dias idos e esvaídos – o que acontece agora, induzindo-me a um cotejo entre a realidade marcada pela estampilha do tempo e o instante ainda à espera do selo da História.
No rosto de cada jovem que ora está diante de mim leio e vejo o processo de afirmação de uma personalidade, de busca de um destino e reivindicação de uma subjetividade. Aqui eles, os moços, estão procurando o sentido de suas vidas, como criaturas humanas e cidadãos. Estão ouvindo, no fundo de suas consciências, aquele chamamento ora claro ora escuro que é a voz da vocação e o desvelamento de um espaço profissional ainda nublado pela expectativa e interrogação do futuro.
Diante desses jovens postados no umbral da esperança, seja-me permitido trazer uma contribuição pessoal ao espetáculo do tempo que se sucede a si mesmo, carregado dos sonhos que também se repetem.
Foi na minha infância que escolhi o que queria e desejava ser. Eu queria ser poeta e escritor. Não havia precedentes literários em minha família. Não havia sequer uma biblioteca doméstica para atender às minhas crescentes necessidades de leitura, à avidez de evadir-me do pequeno horizonte ensolarado e atingir o patamar dos mundos imaginários. Na cidade de Maceió, na década de 30, não havia sequer uma biblioteca pública para o meu ostensivo prazer de ler. Essa carência me obrigou a entrar para uma irmandade religiosa dotada de algumas estantes prontas para saciar-me, na qual numerosos livros profanos, de cunho folhetinesco, contrastavam com a severidade edificante das vidas dos santos.
A descoberta da Coleção Terramarear consolidou para sempre um desejo que era uma vocação. O vento da aventura soprava em mim, rival do vento alagoano. As letras e palavras dos romances surpreendentes se convertiam em ondas que fustigavam os cascos dos navios, em gaivotas que abafavam as imprecações dos piratas, em ilhas que guardavam tesouros, em portos que abrigavam por um momento as desilusões e os cansaços.
Enquanto as leituras afortunadas se sucediam, abrindo para mim, cada dia, o horizonte do mundo, a experiência colegial completava a determinação obscura. Eu era o primeiro da classe no colégio de irmãos maristas em que estudava; mas, apesar dessa condição austera e magnífica, a minha nascente fidelidade aos mundos nascidos das transgressões me levara a admirar e invejar os alunos relapsos – os que se sentavam emblematicamente nos últimos lugares, os colegas que fumavam, jactavam-se de aventuras sexuais nem sempre ortodoxas e tiravam notas vergonhosas. O meu sonho era ser o aluno relapso – aquele que rompia a pequena ordem estabelecida e fincava desafiadoramente a bandeira de sua desordem no morno horizonte cotidiano, assim como um dos piratas dos romances de aventura por mim devorados plantava a sua bandeira negra na ilha conquistada.
Primeiro da classe, eu podia vangloriar-me de saber latim (pois naquele tempo se estudava latim nos colégios) e francês. O rigor no ensino do português, sob a férula de um professor que me desafiava a descobrir os objetos diretos de Camões nos lugares mais insólitos – e, muitas vezes, esses objetos diretos estavam nas Índias ou na brisa que fustigava uma caravela –, esse rigor me guiou para o território que haveria de ser o meu, para sempre: o território da Linguagem.
Para mim, as palavras tinham um som, um significado, uma figura, um peso, uma densidade, um sortilégio. Eu queria ser um poeta ou escritor, para poder converter a realidade em palavras e, juntando a verdade e a mentira, criar aquela “terceira coisa” que, segundo Goethe, é a criação literária.
Uma leitura ocasional e providencial decidiu o meu destino. Um dia, li num jornal estrangeiro misteriosamente ao alcance dos meus olhos a história de um poeta francês chamado Jean-Nicolas Arthur Rimbaud; e um dos poemas transcritos, “Les effarés”, que fala de alguns meninos acocorados na calçada de uma padaria, vendo o padeiro produzir pão, representou para mim a descoberta que faltava para que eu seguisse o meu bom ou mau caminho. Era a Poesia. A realidade mais trivial ou insólita era transformada em poesia através do uso específico da linguagem dotada de ritmo: uma linguagem que unia musicalidade e visualidade e construía, no vazio do mundo, um determinado espaço verbal.
Tempos depois, ao ir estudar no Recife, os meus primeiros passos me encaminharam para a Biblioteca Pública, onde estava à minha espera o volume bem-amado com as poesias de Rimbaud.
Varias lições recolho desse tempo colegial. O rigor das regras escolares não sufocou o meu caminho. Já que a literatura é uma operação linguística e semântica, o ensino imperativo do português, do latim, do francês e do inglês permitiu-me ingressar num universo léxico e sintático que é o próprio universo da criação poética e literária. A ética então dominante estabelecia o respeito religioso à norma culta, à regra modelar e exemplar. E impunha ainda a memorização reiterada e até implacável como condição soberana da aprendizagem. Quem não decorava não sabia.
Invoco esse tempo ditoso porque os jovens aqui presentes não o conheceram e começaram a estudar num meio educacional completamente diverso. Posso mesmo dar um outro exemplo. Quando entrávamos na escola, naquele tempo em que as crianças eram vistas talvez menos como crianças do que como futuros homens e cidadãos, aprendíamos caligrafia. A arte de escrever começava onde devia começar – no desenho das letras airosas, que conciliavam os padrões clássicos da escrita com uma nascente expressão pessoal. Assim, comecei a escrever que Ivo viu a uva.
No meu tempo de colegial só estudávamos os autores mortos – e, no caso dos textos em nossa língua, só autores portugueses, como Camões, Herculano, o Rebelo da Silva de “A última corrida de touros em Salvaterra”, eram admitidos nos manuais, que às vezes condescendiam em abrigar alguns trechos de José de Alencar, Machado de Assis e Rui Barbosa.
A literatura viva, a que se produz sob o nosso sol e sob os nossos olhos, não apenas não era admitida como era como se não existisse. Assim, ao me afastar dos bancos escolares, terminado o ciclo da literatura dos romances de aventuras, tive o maior susto ao descobrir que a literatura existia como uma realidade viva e nova, na poesia de Bandeira e no romance de José Lins do Rego. Descobri, inclusive, que em minha própria terra natal, um romancista chamado Graciliano Ramos escrevera Caetés, São Bernardo Angústia, antes que o tivessem jogado, de cabeça raspada, no porão de um navio, levando-o, como preso político, para a Ilha Grande. E também descobri que fora em Alagoas que o poeta Jorge de Lima cantara o Nordeste mestiço e dengoso, antes que, como remate a uma intriga amorosa, alguns tiros à queima-roupa, surpreendentemente desviados de seu alvo, o obrigassem a deixar a terra natal, tendo na bagagem os anjos e moças afogadas que tanto haveriam de aturdir a rotina da metrópole literária.
Creio que foi na década de 60, e por conta da belicosa onda nacionalista do regime instaurado por um golpe militar, que o ensino brasileiro enveredou pelo estudo ou até mesmo o culto da nossa literatura viva, engastando autores contemporâneos no currículo dos exames vestibulares. Simultaneamente, o ensino da gramática foi substituído pela disciplina da Expressão e Comunicação, a qual passou a privilegiar a fala coloquial e o texto bizarro ou transgressor. Deixou-se, pois, de estudar e ensinar gramática nas escolas, privilegiando-se o texto considerado palpitante, orvalhado pelo instante e pelo dia que passa. Até as vozes dos compositores populares e as mais desabridas ou consideradas corajosas experimentações linguísticas eram oferecidas às crianças, como uma dose cavalar de poesia e criatividade.
Não eram apenas as salas de aula que ostentavam essas notáveis modificações. Era a própria sociedade que mudava. Uma nova sociedade estava nascendo: a sociedade de massas, a sociedade eletrônica com a sua parafernália audiovisual. Novas linguagens se acrescentavam à velha linguagem verbal. A televisão, o disco, o filme, o computador, o cartaz veemente, o videoclipe, vinham para ficar. Mas vinham, também, para mudar e reduzir o espaço da comunicação e expressão verbal.
Na minha condição provecta de pai e avô, tenho autoridade para dizer que essa transformação formidável e irresistível se, de um lado, representa a aparição de um mundo novo e prosperante, de outro significa uma redução irrefutável na capacidade humana de exprimir-se verbalmente. As novas gerações brasileiras se estão convertendo em gerações de criaturas gestuais ou tartamudeantes, monossilábicas e onomatopaicas que, muitas vezes, substituem a palavra e a frase pelo grunhido. E grunhidos encantadores, quando emitidos por moças bonitas.
A supressão do ensino do latim e a extinção do estudo sistemático da gramática assentado no império da norma culta têm sido fatais para a nossa capacidade de expressão comunitária e nacional.
A televisão, ao impor um léxico básico e construções sintáticas padronizadas, está extinguindo a diversidade dos falares e dizeres regionais e anulando a diferença enriquecedora que há entre a expressão verbal dos habitantes de Blumenau e a dos moradores da alagoana Arapiraca. Nessa marcha vertiginosa, todo o povo brasileiro terminará falando, e até escrevendo, com a mesma regência e as mesmas e reduzidas expressões – o que significará que, falando igualmente, ele terminará mudo, uma vez que o uso da palavra é o uso de uma diferença e o exercício de uma peculiaridade.
Embora o Brasil seja a maior nação de língua portuguesa em todo o mundo, abrigando mais de 80% dos seus falantes, e tendo assim a responsabilidade inarredável do seu futuro e destino, escrevemos e falamos uma língua ameaçada e cada vez mais convertida num caçanje eletrônico ou jornalístico.
Essa ameaça não se circunscreve à base didática. Abrange todos os patamares da vida comunitária. Milhares de palavras inglesas povoam o nosso universo de trabalho e recreação. Não encontramos ou não logramos encontrar equivalentes, em nossa língua, para a utilização e fruição da parafernália que testemunha o nosso ingresso na modernidade industrial. O universo da informática e de outras tecnologias importadas incorporou-se a nós sem que o traduzíssemos – e mesmo as criaturas mais modestas, como as telefonistas, os antenistas de televisão e os operários de uma oficina de automóveis se exprimem num bilinguismo surpreendente, o mesmo que nos aguarda nos aeroportos, bancos e hotéis.
Cada vez exprimimos menos. Cada vez comunicamos e nos comunicamos menos. Quanto mais informados nos consideramos, menos estamos sabendo. E quanto mais falamos, menos dizemos. A televisão e o jornalismo padronizadores, ao silenciar os falares e dizeres regionais, devastam um dos nossos maiores tesouros, que é o nosso português renascentista, com os seus arcaísmos e giros sintáticos, de que somos, ou éramos, o santuário privilegiado. A portuguesa língua, que os colonizadores trouxeram para o Nordeste e os açorianos para Santa Catarina, corre grande perigo.
Sou um poeta. E na minha condição de poeta, de usuário de uma língua especializada dentro da língua correntia e comunitária, cada vez mais me sinto acuado num mundo que é o meu, por ser o mundo da minha contemporaneidade e de minha respiração espiritual.
Não me conformo em que a minha língua nativa seja uma língua estrangeira, ou apenas uma ilha sitiada, em minha própria pátria.
E também não aceito o processo de insulamento a que é submetida a própria criação literária.
Tem sido exaustivamente louvada a prioridade conferida, nas escolas e universidades, à literatura viva e em processo contínuo de gestação. Mas no outro lado da moeda, ou da ilha, está o esquecimento do passado, a falta de interrogação aos clássicos, a extinção impiedosa do ontem, o abandono às tradições e o menosprezo aos legados culturais ostensivos ou escondidos e às transmissões sociais e familiares.
Incontáveis professores que transitam no território literário são antigos alunos vitimados pelo processo repetitivo e simplificador que aboliu a visão da criação literária e artística como um grande sistema.
Para eles, a literatura brasileira começa no Modernismo de 1922, e não em Homero. O desconhecimento de línguas e do acervo cultural do Ocidente, quer o que guarda a imaginação humana, quer o de natureza crítica, agrava ainda mais a situação que converte a criação artística e literária do Brasil numa bizarra ilha tropical, sem as pontes, os portos e os navios que documentam a transplantação que nos modelou.
Assim como a supressão do latim nas escolas tornou a nossa língua portuguesa uma língua sem passado, a nossa criação estética é apresentada como uma filha de si mesma, sem genealogia e ancestralidade. A ausência do sentimento do passado a torna cativa de uma permanente atualidade que a desfigura, ao ignorar ou excluir a genealogia estética e a tradição que cada geração deve conhecer para poder reinventá-la e transgredi-la.
No contexto de expansão de um ensino das letras centrado em sua contemporaneidade, ocorreu no Brasil uma proliferação por assim dizer cogumélica de faculdades de Letras que não hesitou em avançar pelas geografias mais adustas. E, nelas, adotou-se uma pedagogia em que a Teoria Literária foi erigida à condição de ciência talvez mais exata do que a Química ou a Física, muito embora ela merecesse, pela sua configuração abstrusa e carga ficcional, ser colocada ao lado da astrologia.
Já se terá dito todo o mal possível, e todo o bem admissível e imaginário, dessa exacerbação teórica que grassou no sistema educacional brasileiro, conferindo ao texto literário uma nebulosa missão criptográfica, convertendo-o num território de adivinhações sucessivas e num poço de ambiguidades inesgotáveis, numa operação redutora e circunscrita a certos e determinados autores transformados em espaços únicos e privilegiados de uma leitura desmontadora.
Não necessitaremos mencionar o estigma de colonização literária evidente nessa prática, que ajunta, às vezes de forma colisiva, doutrinas e técnicas estrangeiras quase sempre hauridas em traduções discutíveis.
O que mais importa dizer é que essa operação desarticuladora exclui quase sempre a maior gratificação do texto, que é o prazer da leitura.
Ao colocar os alunos diante do texto como se eles fossem neófitos incumbidos de autopsiar um cadáver, os teóricos aborígines afastam e distanciam o que deveria ser aproximado ou iluminado. Substituem o prazer estético pelas análises letais.
Em vez de uma leitura gelada ou congelada dos textos literários, cabe reivindicar a que cria e recria a emoção e o fervor, como se o jovem leitor estivesse diante de um romance de aventuras e se sentisse tocado pela brisa que vem das ilhas afortunadas.
Cumpre devolver ao leitor – aquele que, ao ler, promulga a existência da literatura – uma inocência perdida. Nesta Aula Magna sob o signo do vento e da ilha, imagino a Universidade como um lugar de diferença e diversidade – um espaço que deve ensinar a cada um dos estudantes que ele é uma aventura pessoal irrepetível, e em sua presença no mundo e na vida se engasta um projeto de afirmação individual destinado a produzir e projetar uma personalidade nítida.
Vejo a Universidade como a ilha de saber e pesquisa em que os jovens passam da leitura dos livros à leitura do mundo.
Muito poderia eu falar sobre esse mundo da padronização e massificação, do consumismo compulsivo, do controle sutil das consciências praticado pelos grandes empórios da mídia eletrônica e jornalística, da economia globalizada, das indústrias do imaginário que produzem os novos ópios dos povos e das massas, das tecnologias que disseminam ao mesmo tempo as riquezas deslumbrantes e a miserabilidade planetária, desse mundo em que a razão e a irracionalidade disputam o mesmo espaço, e a segurança e a violência institucionalizada são tão cotidianas como a água e o pão; desse mundo onde as guerras religiosas e étnicas ressurgem e recrudescem como se fossem a aurora de uma nova barbárie. E não nos esqueçamos de que a destruição ecológica e as migrações dos sem-terra e dos sem-teto já começaram no Brasil; e o desemprego gerado pelo nosso neoliberalismo de estação repetidora aumenta cada vez mais o numero dos excluídos e oprimidos numa sociedade que, como a nossa, desde o seu alvorecer se colocou sob o signo da opressão e da exclusão decorrentes de uma impiedosa separação de classes.
Prefiro encerrar esta Aula desejando aos jovens estudantes desta Universidade que, enquanto aqui estiverem, aprendam a descobrir uma ilha – uma ilha de amor, de solidariedade humana, de esperança e confiança, e até de ambição de felicidade. Uma ilha de saberes, técnicas e conhecimentos a serviço da condição humana e do sabor e eternidade da vida. E guardem essa ilha em seus corações, a vida inteira.


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Aula Magna ministrada na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, em 7 de março de 1996. Texto reproduzido no livro O Ajudante de Mentiroso | © Lêdo Ivo, 2009 | Publicado pela Educam, Editora Universitária Candido Mendes | Reproduzido com autorização do Autor. Página ilustrada com obras de Gonçalo Ivo.







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