sábado, 11 de março de 2017

ESTER FRIDMAN | Uma obra perigosa no século das luzes


A filosofia nasce de uma ruptura com a poesia, mas essa ruptura nunca foi total. Só irá pretender ser total em Kant (Alemanha, 1724-1804). Com este filósofo, a filosofia se torna algo especializada e separada da literatura. Hoje, especialmente com o pensamento de Jacques Derrida (Argélia, 1930-França, 2004), há novamente uma junção de filosofia e literatura. Bento Prado (Brasil, 1937-2007) dizia que a literatura está sempre presente na filosofia. Esta nasce em cumplicidade com a literatura. Para Paul Valéry (França, 1871-1945) a filosofia é um gênero literário.
Para quem gosta de Literatura e Filosofia, faço aqui uma relação entre esta e o livro As Relações Perigosas, abordando o tema do fingimento e disfarce: o que é verdade e o que é falso quando se trata de seres humanos?
Sob uma perspectiva de águia, olhando de cima sem ficar preso a um só aspecto, podemos analisar uma obra literária, escrita na mesma época da publicação da resposta à pergunta: Que é Esclarecimento?, de Immanuel Kant. Esta obra é As Relações Perigosas, de Choderlos de Laclos. A época é século XVIII, século das luzes, época em que a razão triunfava no mundo ocidental.
Enquanto Kant se orgulha do poder e capacidade que a razão tem sobre tudo o que não é metafísico, parece que Laclos quer mostrar que não é bem assim. Kant limita a razão, mas confia nela. Laclos simplesmente a critica.
O militar Laclos escreveu sobre outro tipo de guerra: a guerra dos interesses e das vaidades. De gênero epistolar, As Relações Perigosas revela o que se passa nos bastidores da corte. Laclos abre sua obra com uma frase de Rousseau, de seu romance A Nova Heloísa: “Vi os costumes de meu tempo, e publiquei estas cartas”. Naquela época, as epístolas eram documentos oficiais, cujo selo era o brasão da família, moldado em cera, que lacrava o envelope. Tradicionalmente, o gênero epistolar reproduz a verdade. Mas, as cartas de Laclos revelam os artifícios da dissimulação através da manobra das palavras. São instrumentos de sedução, que traem a verdade, e manipulam os acontecimentos. No século das luzes, Laclos mostra que as cartas não são apenas instrumentos de transmissão de conhecimento. Enquanto Kant e seu amigo e médico, Marcus Herz, trocavam cartas sobre suas preocupações a respeito do entendimento humano, dentro da corte muitas cartas eram trocadas – a razão a serviço de seu uso prático. Ali não se fazia uma metarazão, na busca de entender a própria razão, mas sim usar da razão para obter prazer. O prazer se expressa pelo corpo, e a razão pela palavra. Mas se o corpo é a grande razão, como dizia Nietzsche, o prazer também está nas palavras. Em As Relações Perigosas a palavra é objeto de rigoroso controle dos protagonistas Visconde Valmont e Marquesa Merteuil. Esses dois personagens libertinos dão um show de virtuosidade ao demonstrarem excelente autocontrole, domínio sobre si mesmo e prudência. O libertino tem que estar sempre muito lúcido. A Marquesa de Merteuil dirige toda a sua energia para que seu ex-amante, que lhe abandonou, seja corno. É um exemplo de vontade forte, persistência, prudência e autocontrole. Vemos na obra de Laclos que a virtuosidade está também na ruptura da relação. O libertino se orgulha do rompimento, pois, como sempre conquista damas importantes, que estão protegidas pela sua classe social, seu prazer é burlar os grandes burladores. Sua façanha não termina até que o jogo tenha sido dramaticamente revelado. Sua regra básica é a indiscrição; esta é sua moralidade.
Vemos aqui as palavras surtindo efeitos muito diferentes daqueles esperados, talvez porque previamente estabelecido que assim seja. Diz a Marquesa que se chamaria de pérfida, e confessa que essa palavra sempre lhe deu prazer – “Depois de cruel, é a mais doce ao ouvido de uma mulher” (carta V. Obs: Esta e as demais citações de As Relações Perigosas foram retiradas da tradução de Carlos Drummond de Andrade, publicada pela Ediouro, Biblioteca Folha – Clássicos da Literatura Universal, em 1998).
Interessante também notar a relação entre a menina Cécile e sua “preceptora”, a Marquesa Merteuil. Escrevendo a uma amiga, relata: “Verei Mme de Merteuil esta noite, e se tiver coragem lhe contarei tudo. Fazendo somente o que ela me aconselhar, nada terei a censurar-me” – eis a questão do conselho e a responsabilidade que cabe ao conselheiro. Cabe lembrar que a Marquesa não teve uma “preceptora”. Em uma das cartas enviadas ao Visconde, ela lhe conta como se fez a si mesma. Ainda solteira, ao iniciar sua vida na sociedade, simultaneamente iniciou-se no aprendizado da dissimulação.
Na obra, há uma divisão do homem entre sujeito e objeto, onde sujeito seria o Visconde Valmont e a Marquesa Merteuil, e objeto, a menina Cécile Volanges, o garoto Danceny e a Madame de Tourvel. Quando a Marquesa Merteuil se refere a Cécile, ela diz: “’Isto’ tem apenas quinze anos” (carta II). São os tiranos e as vítimas. Quando o Visconde se refere à Madame Tourvel , ele diz: “Conheceis a Presidenta de Tourvel, sua devoção, seu amor conjugal, seus princípios austeros. Eis aí o que eu ataco; eis o inimigo digno de mim; eis a meta a que pretendo chegar” (carta IV). Em outra ocasião, diz ele: “Longe de mim a ideia de destruir os preconceitos que a assaltam. Eles aumentarão minha felicidade e minha glória. Que ela acredite na virtude, mas para sacrificá-la a meus pés”. (carta VI). O Visconde e a Marquesa envolvem e manipulam as pessoas através das cartas. Mas, o comportamento de ambos perante a sociedade, faz com que o parecer tenha forma crível através de uma ocultação do verdadeiro. O que é fingido assemelha-se com o verossímil, e o que é real toma aparência de fingido. Quase todos os sentimentos são fingidos ou dissimulados. O leitor atento tem acesso a essa relação entre o real e o aparente, pois sabe quando os personagens estão dissimulando. Já os personagens não têm esse privilégio, a não ser aqueles que têm acesso às cartas alheias, como o Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil, que leem correspondências destinadas a outrem. Mas, os disfarces e fingimentos também ocorrem entre os dois. Nessas circunstâncias é preciso astúcia redobrada.
Laclos tinha consciência de que a sociedade de sua época não valorizava a inteligência. Referindo-se a Danceny, Marquesa Merteuil diz: “Ele é tão tolo, que ainda não obteve nem sequer um beijo. Entretanto, esse rapaz faz versos tão bonitos! Meu Deus, como as pessoas de espírito são idiotas!” (carta 38).
No século das luzes, enquanto o mundo da ciência se vê tão confiante no homem e sua razão, e a religião continua querendo impor um modelo de virtude e boa conduta, os bastidores da corte mostram que a realidade é o avesso do que se crê. O que trás tranquilidade à alma de uma mulher da realeza não é a beatitude, mas sim a vingança. Em As Relações Perigosas, vemos que a vingança é mais importante que o amor. O papel da vingança é fundamental. Através dela se obtém a tranquilização. É o avesso da condição humana.
O libertino escolhe livremente o objeto de sua paixão. Sempre é sujeito, jamais objeto. Por isso é livre. A libertinagem é o contrário do amor paixão. A paixão escraviza. Enquanto o libertino atua, o apaixonado sofre, padece. O libertino não é um dom Juan – este se interessa por qualquer pessoa do sexo oposto.
A carta não funciona se não há a promessa do segredo. Como diz Foucault: “onde há segredo, há poder”. Para haver relações perigosas, o segredo é essencial. O perigo das relações é explorado às últimas consequências, quando, no final, a conspiração dos libertinos é desmascarada. Valmont acaba morto em duelo pelo amante de uma de suas vítimas. Mas, enfrentar esse perigo faz do libertino um homem de honra, e da libertinagem um jogo de grande estilo. E a mais clássica das provas é a correspondência da vítima. A ideia de destruir, encontrar, guardar as cartas, faz parte da trama. As cartas de Laclos não foram destruídas.
Laclos examina as relações humanas à nível micro. São relações de engano, astúcia, vingança. Na mesma época, Kant vê o pior da relação humana a nível macro, nas relações entre os povos. Enquanto Laclos trabalha individualmente, Kant tenta universalizar.
Podemos ainda pensar nas relações entre o autor e o leitor. Enquanto as cartas de Laclos não são acabadas, são fragmentos, Kant é todo fechado e definido. Temos o desgaste, o silêncio, que corta a relação autor leitor. No caso das cartas, as relações humanas são tão corrosivas, que por isso se esgotam.
A saída da Marquesa, como de qualquer mulher de sua época, é ser independente através do ressentimento. A vingança é o principal elemento presente no ressentimento. A moral da marquesa é a moral da vingança. O instrumento que ela usa é o Visconde. Ele obedece deliberadamente. É a vontade de poder nietzscheana ressentida. Ela se volta sobre si mesma. Se auto-elimina. A Marquesa se sente acima dos homens e dos seres comuns, mas se relaciona com eles. Não escolhe inimigos à altura, como faz Nietzsche. Rebaixa-se a um inimigo comum.
A imprevisibilidade da razão em Laclos é posta nas mãos de Madame de Volanges, que escreve à Madame de Rosemonde: “Adeus, minha digna e querida amiga; sinto neste momento que a razão, já tão insuficiente para prevenir nossas desgraças, o é ainda mais para nos consolar delas” (carta CLXXV). A filosofia, que consolou Boécio, não consolou Madame Volanges.



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ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963). Filósofa e escritora, pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra de Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos Kleshas no Yoga Sutra de Patanjali. Contato: ester8fri@gmail.com. Página ilustrada com obras de Joseph Cornell (Estados Unidos), artista convidado desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 25 | Março de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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