segunda-feira, 14 de agosto de 2017

JACOB KLINTOWITZ | Rubens Matuck: diário dos vestígios dos dias


A TRANSPARÊNCIA DA TOTALIDADE: O TAMANHO DO HOMEM | O que é notável em Rubens Matuck é ficar tão claro na sua obra que não sabemos o que somos, mas apenas o que vemos e sentimos. A nossa extensão qual será?
É como se Matuck esquecesse o corpo, ou eliminasse o corpo por não ser referência confiável. Nele, no artista Rubens Matuck, o que somos é, talvez, a aceitação do todo. Somos a aceitação e, portanto, somos parte do todo. Somos o observador e o objeto observado na esperança de que a parte contenha a mesma organização do todo e, portanto, possa perceber a totalidade por semelhança estrutural.
O objeto de seu trabalho é verificar a existência do mundo, não apenas o mundo da física e da química, mas o mundo dos homens, ou seja, aquele articulado pela linguagem e construído pelos milênios e o imbricamento de intersecções de civilizações. Parece muito?
 Tudo interessa e ele é, na verdade, este ser que se interessa. Rubens Matuck tudo vê, tudo registra e tudo sente. Rubens Matuck é o ser que possui o sentimento da matéria. Ele é o viajante do mundo.

O VIAJANTE DOS VENTOS | Existem pessoas que tem uma espécie de instinto de liberdade. Um indomável tropismo. Um impulso irresistível em direção à descoberta da sua identidade ou a construção da sua identidade. São nautas que ao fim da jornada encontram a si mesmo.
Não acredito que tenham um horizonte de esperança e que para eles o universo tenha uma razão de ser, apenas não resistem à trilha que eles próprios criam e que, na primeira consideração, os tornará solitários. Não se perguntam qual é a natureza do ser humano, apenas a sua vida seria inviável sem este percurso. Para Matuck o ser é aquele que vê e sente.
O corpo? Perceber é a extensão do corpo. O saber é o corpo. O conhecimento, no sentido de estar na estrutura da percepção, de ser um com aquele que conhece, é o corpo.
Certamente Rubens Matuck não é um artista que pretenda ter tudo sob controle. Não existe um projeto a ser cumprido, mas um projeto que circunstancialmente se delineia a medida que incorpora partes do todo. Rubens Matuck é forçosamente o artista do fragmento.
Entre os últimos poemas de Pablo Neruda existe um muito pequeno, distinto e melhor que a maioria – Neruda, às vezes, era homem de muitas palavras - que nos fala da ausência e de um duplo enigma:

Já os poetas tinham ido embora
E as estátuas não me conheciam

Ya los poetas se habían ido
Y las estatuas no me conocían

Os poetas ausentes significam que ninguém mais nos falará e ninguém mais criará enigmas e as obras criadas, as estátuas, os poemas, as pinturas, já não conhecem quem as contempla e não se revelam. E ninguém mais as explicará. A ausência dos poetas interrompe o fluxo, não se cria mais e as obras já criadas não serão entendidas.
Entre elas e o público apenas restaria este duplo enigma de seres que se contemplam e não se veem; o público por não saber ver, as estátuas por terem os seus olhos velados para o cotidiano.
Neruda nos fala da essência, do significado do poeta para a civilização; o poeta é o centro da criação e o fulcro que formula o enigma. É o poeta que faz a pergunta.
E Neruda nos fala, também, do dilema da nossa civilização que se depara com a possibilidade da perda da alma, da poesia. Neruda, como tantos outros, percebeu a crescente contradição entre a produção e o consumo em massa e a altura da linguagem. De resto, este fenômeno é sempre mais bem observado e evidente nas áreas onde se exercita a linguagem, como os meios de comunicação e os poetas, entendido aqui como poetas os músicos, pintores, escritores, atores.
O poema de Pablo Neruda é luminoso, tanto para explicar o mecanismo oculto da civilização, a sua vitalidade essencial, quanto como metáfora de um período histórico especialmente conflituoso onde barbáries diversas disputam o trono.
Rubens Matuck é o polo oposto deste mal estar da nossa civilização. Como poeta itinerante, Matuck vivencia a história como um mitologema e cria ou recria, com o seu rastro, um novo mito. A nossa época refaz a fisionomia do viajante, do errante, daquele que passa e por onde caminha propícia a formação de núcleos de vivência poética. Ao que parece, estamos novamente diante do poeta itinerante e do poeta errante, o que vivencia novas percepções e cujo rastro luminoso nos oferece trilhas luminescentes que nos encantam. No Brasil a tradição destes poetas errantes é imensa.
Na verdade, a considerarmos o cerne do trabalho do poeta, ele é permanentemente um viajante. O seu percurso sempre é por terras incógnitas. E quanto maior ele é mais é assim. Entretanto, por facilidade aglutinadora, podemos dizer que a nossa época consagrou dois tipos de artistas viajantes. O que percorre países, rotas, aldeias, trilhas, montanhas, lagos, paisagens. É o viajante do espaço. E o que percorre a história da arte, os outros artistas, as obras de arte, os resíduos e fragmentos de várias civilizações, o mundo construído da linguagem. É o viajante do tempo
 Podemos, é claro, pensar nos artistas que viajam ao interior do ser, ao psiquismo do ser humano, mas o objetivo deste ensaio não é esgotar o assunto “viajante”, objeto de um livro que escrevi (“Os novos viajantes”, Edit. SESC, 1993), e de um próximo livro em preparo. Fiquemos, portanto, nas duas categorias mais evidentes. Os Poetas Viajantes do Tempo e os Poetas Viajantes do Espaço.
Certamente é possível falar da tradição humana dos poetas errantes e itinerantes, desde Homero até os poetas japoneses do Hai Kai. Também é preciso notar que este poetar é igualmente construir formas de percepção, sistemas de iluminação. A distinção entre arte e misticismo, ou seja, entre arte profana e arte sagrada, é muito recente. Na nossa arte histórica, laica, dedutiva, é comum encontrar o sagrado. No início éramos um só. Não é só o teatro que nasce como arte sagrada e iniciadora, mas todas as formas de arte nascem como revelação. E hoje, ainda que orgulhosos da nossa feição histórica e conscientemente evolutiva, muito do melhor do que foi feito desde a Renascença tem, intrinsicamente, elementos e conteúdos da arte totêmica e da arte sagrada. 
Mas não precisamos recorrer à tradição universal, aos que percorreram as trilhas e a arqueologia das civilizações e da história da arte, basta, neste caso, o Brasil, um país de imigrantes e local ideal para viajantes artistas e cientistas que aqui produziram e se extasiaram, ora diante do exótico, ora diante da variedade cultural linguística e artística e diante da extraordinária biodiversidade. Matuck descende filosoficamente de pioneiros como estes. Mais ainda, ele descende dos brasileiros, aqui nascidos ou não, que inventaram e renovaram uma nova saga de observação. É com estes, e com alguns de seus contemporâneos, que ele dialoga em silêncio: Aldemir Martins, Poty Lazaratto, Candido Portinari, Carybé ,Miguel dos Santos,  Yukio Suzuki, Mario Cravo Jr, Maureen Bisilliat, Claudia Andujar, Mario Cravo Neto, Sebastião Salgado, Siron Franco, Danúbio Gonçalves, Vasco Prado, Bené Fonteles,  Mário Gruber, Octávio Araújo, Israel Pedrosa, Lívio Abramo, Inos Corradin, Glênio Bianchetti, Glauco Rodrigues, Vicente do Rego Monteiro, Fernando Pacheco, Yara Tupinambá, Juarez Machado,  Carlos Freire, Carlos Vergara, Ana Maria Pacheco, Frans Krajcberg,  Artur Alipio Barrio, Rosangela Rennó, Maria Bonomi, Valdir Sarubbi,  Cildo Meireles, Shirley Paes leme, Wesley Duke Lee, Marcos Coelho Benjamim, Anna Bella Geiger, Takashi Fukushima, George Love, Cildo Meireles, Marcos Coelho Benjamim, Valdir Sarubbi.
Este percurso, o do diálogo com o existente, por sua própria essência, não tem fim. A cada descoberta, a certeza da imensidão da falta. A curiosidade é estimulada pela percepção da incompletude. O objeto de estudo é o todo. Se o objetivo é ir além, ele é inalcançável pela própria definição de “além”, mas a ventura é infinita, pois, em todos os momentos, o aventureiro estará no incógnito.

Tanta sede é meu destino
Esse amor é beduíno
E o oásis teu lençol

Mas sempre no fim da viagem
Você volta a ser miragem
Areia e sol.

[Edu Lobo e Aldir Blanc. Ave Rara]

Eu nada sei de pássaros
não conheço a história do fogo.
Mas acho que a minha solidão deveria ter asas.

[Alejandra Pizarnik]

Os assuntos e temas da atividade artística de Rubens Matuck são ilimitados e as fronteiras entre o gesto e a obra são difusas. Matuck fez cerca de 300 cadernos de viagem. Neles ele faz anotações, desenha árvores, rios, canoas, paisagens, homens, cola objetos e papeis e, enfim, faz um registro reflexivo e formalmente pouco ortodoxo. E, enquanto isto, na cidade de São Paulo, ele já plantou 1.200 mudas de árvores.  E descreve, ao ser indagado por crianças, professores, anônimos, as cores das flores das árvores e as épocas de floração, as variedades de troncos, madeiras, sementes, enumeração que parece não ter fim. E também a descrição de Matuck parece não ter fim. O seu é o tempo da conversação.
Ele é professor e dedica-se a alunos com necessidades especiais. Mas ele não se preocupa em ensinar técnicas, mas procedimentos, modos de ser, exercícios artísticos, de maneira que os seus alunos tenham proveito na sua relação com o mundo, na sua capacidade de elevar a percepção, no aumento de sua possibilidade de interagir. O seu ensino é uma terapia não convencional, uma espécie de nova conformação através da estrutura linguística. Qual o retorno desta atividade para o artista Rubens Matuck?
É como se Rubens Matuck habitasse dentro da linguagem. Ele se movimenta nesta estrutura e ela o alimenta. O seu gesto traria forçosamente um desgaste de energia, mas nele existe uma realimentação permanente. É como se o fluxo de energia emitido retornasse. Talvez esta alimentação circular explique a sensação do artista de que tudo é arte. Ou, melhor, tudo é a sua arte.
É comovente para o observador a dedicação de Rubens Matuck a um aluno com paralisia cerebral. Mas a comoção é nossa, pois ele se move com a naturalidade da tarefa cotidiana. Ele poderia estar desenhando e a naturalidade seria a mesma. É possível que para Rubens Matuck o percurso seja tudo. Neste caso, pode ser entendido muito de sua atividade cuja essência é o movimento. O mistério da criação e do movimento.
Arthur Rimbaud percorria a pé inacreditáveis distâncias. O que deve ter significado para ele quando teve a sua perna amputada! Werner Herzog atravessou um país em caminhada votiva. Henry Miller atravessou estados americanos a pé. Borges, já com a visão deficiente, caminhava longamente pelas ruas de Buenos Aires. O romeno Constantin Brancusi percorreu uma imensa distância até chegar a Paris. E já era um mestre. As companhias teatrais itinerantes marcaram a nossa civilização. E o fascínio dos circos que perambulavam entre as cidades e os países. O enigma dos ciganos cuja pátria parecia o espaço da Terra. Conta-se que o cego Homero percorria as aldeias gregas declamando a Odisseia. Recentemente, há poucos séculos, no Japão, poetas e mestres zen-budistas percorriam as aldeias criando haikais e interagindo com a população. A história da nossa civilização é marcada pelo movimento de Ulisses. E a da nossa fantasia sobre o mundo de então por Marco Polo e o Livro das Maravilhas onde conta as suas viagens.
Rubens Matuck é o homem do movimento, ainda que ele tenha dois vetores aparentemente divergentes. Por um lado, ele é o viajante clássico que percorre o território e narra as suas aventuras, as pessoas e as paisagens, os costumes e a essência humanística de cada lugar. Por outro lado, ele é o narrador que cria desenhos, pinturas, esculturas, álbuns de gravura, histórias infantis. Ele é Ulisses, sem dúvida, mas, igualmente, é Sherazade,  que, a cada dia, cria uma nova história e é esta narrativa que a faz viver e sobreviver.
Neste percurso ininterrupto e nesta movimentação quase perpétua do artista, ele é um narrador. Ele conta histórias, ele desenvolve formas narrativas, ele registra o cotidiano, ele discute a linguagem e os modos da linguagem, ele opera na área do desenho como os velhos mestres – Poty Lazarotto, Aldemir Martins, Marcello Grassmann, Darel Valença – da ilustração à invenção de personagens e, como todo narrador, ele é fascinado pelas narrações históricas.
Qual o narrador que não se deixou fascinar pelo novelo de histórias de Sherazade que, a cada noite, salvava a sua vida e fascinava o ouvinte com a próxima história. Atribui-se a Edgard Allan Poe a invenção da novela policial e da novela de horror. O seu detetive Dupin é o pai espiritual de Sherlock Holmes. Mas tudo não virá das “Mil e Uma Noites”? É difícil imaginar H.G. Wells, o mais brilhante e imaginoso dos escritores de antecipação, se não pensarmos que ele continua a tradição dos narradores, desde a fogueira tribal até a mitologia. Estamos impregnados de histórias, de narrações. Onde Freud buscou os nomes dos complexos, Édipo e Electra? E onde Shakespeare recolheu as histórias que transformou em tesouros? Causa espécie para alguns que Pablo Picasso recolhesse de maneira tão clara imagens em seus antecessores, como Velázquez, El Grego, Cézanne, Manet, para transformá-las em obras picasseanas, ou seja, da nossa época. Mas esta não é a história da arte e da civilização?
Matuck é fundamentalmente um narrador. E, como tal, fascinado com as técnicas, as maneiras, os procedimentos e, principalmente, magnetizado pela certeza de que a linguagem é criação coletiva e de que a cultura é oriunda de inúmeras civilizações e que somos, ao final, filhos da África, onde tudo teria surgido.
A característica principal, como denominação, da obra de Matuck que se expressa como narrador, ilustrador, desenhista, gravador, pintor, escultor, editor, impressor, professor, é o seu caráter enciclopedista.
É preciso anotar que muitas obras de Rubens Matuck fogem de classificações tradicionais, pois são híbridos. Como uma folha dobrada em dois, vertical, tendo em uma das faces um quadrado preto. É um desenho? Em Picasso, algumas experiências menos radicais do que esta, foram consideradas esculturas. Não é curioso? Uma escultura sem peso, sem densidade, sem volume.
Acolher tudo, ser tudo, para ser uno.
Rubens Matuck deixa claro que não vê divisão qualitativa em suas várias atividades: livros de viagem, edição de álbuns de gravura de vários autores, edição de livros infantis, gravura, desenho, pintura, escultura, história em quadrinhos, ilustração, caligrafias. Neste amplo espectro, na vida como atividade artística, na história pessoal onde o gesto e a concretude da arte são a mesma coisa, Rubens Matuck é um aventureiro sem medo. Possivelmente porque ele considera que a doação e uma forma de benção ou porque não faça mais a diferença entre o profano e o sagrado. A vida, ou o movimento da vida, a vida ou o conhecimento da vida, a vida ou a amplitude do sentir, é o terreno do sagrado.
Voar sem queimar as asas. Ícaro capaz de se aproximar do sol. Pássaro, pássaro de fogo, homem-pássaro mito da Ilha da Páscoa, Esta questão comum aos artistas: até onde se pode ir sem queimar as asas. Ou o limite da ação humana e o ponto em que ultrapassa a medida, como na mitologia grega, a Hybris, a desmedida humana passível de punição por parte dos Deuses.

CALIGRAFIAS

A mão que escreve vale a mão que lavra. – Que século de mãos! – Jamais darei as minhas.

La main à plume vaut la main a charrue. – Quel siécle à mains! – Je n’aurai jamais ma main.

[Arthur Rimbaud, Une saison en enfer]

TUDO CANTA NO MUNDO DE RUBENS MATUCK | No começo era o verbo. Nas escrituras sagradas é a materialização do som que se torna o universo conhecido.
Também o som das palavras é a revelação dos segredos. As cidades antigas não eram conhecidas por seus verdadeiros nomes. Estes ficavam em segredo, conhecidos por reis e sacerdotes, de muitos poucos, pois conhecer o nome verdadeiro equivaleria a ter poder sobre a cidade.
Existem 72 nomes de Deus na Cabala, mas são atributos e não o próprio nome. O nome sagrado de Deus é desconhecido.
Conta a lenda que o nome de Deus não pode ser pronunciado por ser sagrado. Nas lendas conta-se também que o nome de Deus pronunciado invertido destruiria o mundo.
Aproxima-se do pensamento hinduísta. O Dia de Brama é a criação e expansão do universo. Brama aparece montado numa flor de lótus que brota do umbigo de Vishnu e cria o universo. Na Noite de Brama, quando Brama dorme, o universo regride até a mônada primitiva. Expansão do universo, regressão do universo.
A concepção cíclica da criação e destruição do mundo.
A crença num universo criado pela Divindade é a convicção de que tudo faz sentido. E, se tudo faz sentido por sua origem sacra e pela incapacidade divina de fazer o sem sentido, cada coisa significa. Nada é aleatório. É por esta razão que cada período, cada frase, cada letra, cada lugar de cada letra, cada ornamento, tem uma razão de ser. É esta razão que os religiosos estudam e procuram. É esta significação absoluta que origina os estudos cabalísticos.
Talvez, intimamente, alguns artistas queiram escrever o nome sagrado. Descobrir o oculto. A luz em alguns artistas, como Velázquez, não parece uma mensagem sagrada?
Matuck é fascinado pela caligrafia, pelo grafismo, pela tipologia. A letra não é o início de tudo?
Antes de tudo havia uma sensação de incompletude. Rubens Matuck pressentia que faltava um ponto de partida e isto o imobilizava. Nunca sabia se o seu movimento era real. E certo dia ele sonhou com as letras e elas marcavam um território sem fim. Eram letras hebraicas, latinas, egípcias, hieróglifos, cuneiformes. Compostas, solitárias, individuais, agrupadas, tudo parecia  alfabetos e tudo parecia, ao mesmo tempo, estar no começo. Aleph.
As antigas famílias de tipos, conjuntos originais para uso de impressão (de tipo vem tipografia), surgidas a partir de Gutemberg, eram deslumbrantes obras de arte ligadas à nova tecnologia. Para imprimir escolhia-se, e isto até bem pouco, qual a fonte adequada, ou seja, a família de tipos, com toda a variedade interna, mais pesada, mais leve, mais alongada, o corpo (tamanho) das letras, as capitulares. Conhecer as famílias de tipos, e saber de suas sutilezas internas, combinar estas variedades, às vezes combinar duas ou mais famílias, era tarefa de artistas gráficos qualificados, de alto senso de equilíbrio, composição, criatividade.
O artista judeu-americano Bem Shan fez uma série de pinturas com o alfabeto hebraico. Interessantíssimo que uma religião que proibiu a imagem para combater a idolatria tenha ocasionado artistas magníficos, como Bem Shan, que faz a reflexão plástica a partir do inicio, pelo princípio, a letra, o verbo.
Escultura com letras, caligrafias manuscritas, caligrafias com figuras. Rubens Matuck também faz a reflexão a partir do início. A visualidade da letra e o som da letra. A letra, como a palavra, tem um som e este é, na verdade, um som interno. O escritor William Somerset Maugham em certo momento dominou a cena teatral inglesa. Um jornal publicou uma charge em que William Shakespeare datilografava o nome de Maughan. Na sua autobiografia ele conta dessa vivência teatral e atribuiu o seu sucesso a uma espécie de “ouvido interno”, ele sabia o som da frase, a pontuação correta, aquela capaz de tornar o ator mais convincente.
Quem já escreveu texto para ser lido por locutor sabe que a palavra tem som e um impacto próprio. Os mais clássicos locutores de telejornais tem um tempo padrão para ler as frases. A pontuação errada é um desastre, palavras que não combinam entre si são montanhas a ser ultrapassadas. Não bastam as palavras estarem no telepronter, é preciso que sejam as palavras justas.
Nelson Rodrigues, provavelmente o nosso maior dramaturgo de todos os tempos, tinha um ouvido interior perfeito. Mesmo nas crônicas, muitas delas despretensiosas, feitas como obrigação jornalística, tinham este “martelar” de suas frases definitivas. Entretanto, mesmo o ouvido interno, não é padronizado e exemplar. Rubem Braga, ao contrário de Nelson Rodrigues, nas suas crônicas, fala para um ouvido interno poético, suave, delicado, em tom baixo, sussurrante, quase farfalhante. O quase nada dos seus assuntos se prestam à maravilha para o verdadeiro tema, sentir o momento fugidio e a poesia do dia. E em Mário Quintana, nas suas crônicas, nos seus quintanares, existe, tantas vezes, um som, oculto, mas perceptível, de cantigas de roda.
Em Rubens Matuck a sua caligrafia, os seus manuscritos, formam ondas sucessivas, marés, movimentos marítimos, balançar de águas. Elas são essencialmente visuais, ondulantes, incessantes, intermináveis, como alterações nas dunas. A paisagem é sempre a mesma, mas nunca é igual. O vento a desenha a todo o momento e a referência imutável é só, eventualmente, a do contemplador.
É necessário assinalar que em Matuck a caligrafia, o minucioso manuscrito, nos fala de uma história não expressa, não inteligível, misteriosa, que quase adivinhamos, para perdê-la em seguida. E que esta caligrafia oceânica, muitas vezes, tem um som imemorial, como se nos alertasse para a nobreza de origem, para os segredos que ela guarda. Por que a caligrafia de Matuck, versada no nosso alfabeto romano, tem a capacidade de nos remeter para o ideograma e para a placa de argila com inscrições? É possível que a caligrafia de Rubens Matuck seja um eco da Biblioteca de Alexandria?
Que tipo de sopro sobre a argila criou o homem? Seremos uma placa de argila com inscrições? E, por isso, em ocasiões especiais, sentimos o som oculto das caligrafias universais. Em Matuck a caligrafia é uma partitura.
O Universo também canta e alguns, entre nós, tem o ouvido interno capaz de escutá-lo.

DO COMEÇO DE TUDO |

Num mundo em que o cisne conhece todos os cisnes, em que as flores amam as flores no leito dos ventos, só o homem constrói a sua solidão. Entre um e outro homem o espírito reserva um estranho espaço.

[Antoine de Saint Exupery]

A semente, Perséfone, a filha de Deméter, raptada por Plutão, não pode ser resgatada por Zeus. Ela havia comido no Reino Inferior e agora fazia parte dele. Deste então ela permanece seis meses na superfície e seis meses no interior da Terra. Ela tem sido identificada como a semente.
A obra de Rubens Matuck tem a característica, por vezes, de ser fruto do gesto e do impulso e, em outras ocasiões, literalmente, ser fruto de décadas de lento desabrochar.
Na verdade, Matuck nos afirma, não há pressa.
Em certas épocas, o céu brasileiro é de um azul denso, contínuo e, menino, quis tocá-lo para que fosse palpável. E o outono sulista não tem igual, com o ouro velho das folhas que ilumina as manhãs de uma doce ferrugem. Outra vez, envolvido por árvores, ao contemplar a queda d’água que descia por pedras negras, eu acreditei escutar o som de uma flauta de Pan. Onde estão estes meus dias e aquele que uma vez já fui?
Contemplei os “cadernos de viagem” de Rubens Matuck, os esboços e as anotações visuais, os lugares, as pessoas, e neles, nestes diários singulares, tudo parece para sempre. Os bichos, o mar, as sementes e as árvores, os barcos e as redes, o silêncio que habita nas pessoas, a quietude do artista e de seu olhar, me devolveu a intuição de que o mundo é íntegro e único.
Há muito eu penso em Matuck como um viajante dos ventos. No meu sentimento lá está ele e o seu olhar sabedor, numa superfície tecida em folhas, entregue às correntes, ascendente e descendente, num percurso sem fim. Para fora e para dentro, por onde anda o nosso nauta? No leito dos ventos, é certo, mas também num permanente tornado interior apaziguado ao descortinar o momento, esta trilha revelada aqui e ali, ora ao luar, ora ao poente.

No primeiro dos dias
Os dedos róseos da aurora
Envolvente carícia
Inesperada aliança
Transitório e permanente.

Não me lembro de ter conhecido um artista mais envolto no tempo. Como uma semente. Às vezes, dobrado sobre si mesmo, outras tantas, em gloriosa expansão, ele é seminal de si mesmo. Entre tantos, nos lembra de Leonardo da Vinci (1452-1519), um artista que também anotava e cujos cadernos nos deslumbram. A arte não se passa por décadas, mas por famílias artísticas que se reconhecem por sensibilidade e afinidade.
O uso de tantos suportes e técnicas diferentes entre si - papel, madeira, tela, desenho, gravura, pintura, escultura, ilustração – o torna contemporâneo. E, no entanto, amparado na tradição, na história universal da arte. E na contemplação da vida. O seu método é simples, pois é feito de observação, pesquisa e estudo. E o seu movimento é de igual simplicidade, pois Rubens Matuck espera que cada assunto amadureça, da mesma maneira que as madeiras de sua escultura, anos e anos à espera que sequem e estejam prontas para a intervenção da mão humana.

EM NOME DA TERRA | Uma escultura feita em forma da semente. É o exemplar que nos conta do todo, que contém o método, o princípio fundamental, o núcleo gerador, como uma semente.
As ranhuras, cortes horizontais feitos com goivas. Parentesco com a xilogravura.
Os ritmos feitos de sulcos que a goiva cria. Sinfonia.
A transformação da herança pré-colombiana com os vasados, os entre- formas, entre sólidos, com o vazio, desta vez de maneira original, vital, criativamente utilizada, atualizada, em configurações geométricas inesperadas.
O verso e o anverso, nas posições das duas formas-sementes, não só em lados opostos, mas uma o vice-versa da outra.
A qualidade da madeira.
O ritmo ascendente e o diálogo com o ritmo horizontal nas duas placas.
O tamanho exato, não pode ser maior, não pode ser engrandecido, não pode ser diminuído, não está em escala para ser desenvolvido por artesões, mas em tamanho único, escala 1:1. É o tamanho exato, o único possível.
Agora, é possível viajar neste espaço, nesta forma feita de duas formas, pois ela não se opõe a perscrutação, mas não faz concessão, permanece íntegra na sua originalidade, no seu estar artesanal e simbólico.
Esta escultura realmente é feita pela mão, pois é impossível ser feita por máquinas ou delegada para outros, já que a forma, neste caso, exige e expõe uma pulsão interna, só possível pelo fazer do próprio artista, pelo diálogo quieto e sensível entre o artista e a sua matéria prima, a madeira.
Desta vez cumpre-se a profecia, pois a escultura é feita no ato de fazer. Ela caminha nos seus próprios pés e quando caminha faz a estrada, a trilha. E quando termina, o caminho se apaga, não há rastros, pois o fazer está incorporado à forma.
Ela é ela e é o caminho para ela, o caminho dela, o percorrido, o encontrado, tudo isto faz a sua epiderme e o seu epicentro.

O CASAL SAGRADO

(Esposa)
Eu sou a rosa de Sarom
O lírio dos vales.

(Esposo)
Levanta-te, querida minha,
Formosa minha, e vem,
Porque eis que passou o inverno,
Cessou a chuva e se foi;
Aparecem as flores na terra
Chegou o tempo de cantarem as aves.

Cantares. Cântico dos cânticos.
Salomão. Antigo Testamento.

A mulher, o feminino, a semente da espécie.

[Cântico dos cânticos]

A terra é um Athanor, vaso alquímico para transformação da matéria.
Mulher, feita de barro, é um Athanor.
Em Rubens Matuck o lugar do desenho é o lugar onde o desenho foi feito. Não há a padronização mercadológica dos formatos.
A breve sequência no caderno dos desenhos de uma jovem mulher é comovente, expectante, pois desejamos mais desenhos. Existe nesta série uma revelação do ser e a curiosidade é saber o que este corpo que parece entregue e plácido nos afirma.
Em “O tempo deve parar”, Aldous Huxley faz o seu personagem, já idoso e reflexivo, examinar uma série de desenhos de Edgar Degas e se perguntar em que o erotismo do mestre o revela para si mesmo. Sempre é isto, a arte nos revela para nós mesmos.
Logo após, desenhos de mulheres feitas com o pincel num único movimento negro, num traço onde se adivinha que o pincel no seu percurso jamais saiu do contato com o papel. Em um momento dado o pincel e o braço do artista eram uma só extensão e ele olhava para a forma que se delineava com olhos distraídos, pois a sua alma estava prisioneira da forma ideal que adivinhava em algum lugar do cosmo, em algum lugar de si mesmo. Os desenhos se sucediam e o pincel e a tinta negra, o braço e o espírito eram um só instrumento a riscar a matriz do mundo, a criar contornos rápidos e únicos, precisos e necessários, contornos justos. Só os traços essenciais, só a sugestão, apenas o vislumbre da forma ideal e o sentimento da Deusa. E nós, os que olhamos, imersos no universo contido em um formato de 10 x 15 cm, igualmente os nossos olhos procuram a Vênus Primordial. Cantares. Cântico dos cânticos. Anotações de Rubens Matuck para a Escritura do Novo Mundo.
A sensualidade e o recato de Matuck nas dezenas de figuras femininas. É um estranho artista, pois capaz de juntar as formas eróticas sagradas dos templos do Camboja, a tradição sensual do Oriente próximo e o cuidado respeitoso do amante zeloso.

O PAÍS FABULOSO DA FÁBULA | Desde sempre havia um lugar extremamente colorido em que algumas pessoas viajavam, conversavam e agiam entre só. Um lugar fluídico, moldável, que poderia ser modificado à vontade. Ele era cada uma destas pessoas e era a paisagem, as flores e a floresta e os bichos que habitavam na floresta. E a porta de entrada deste lugar era num ponto escuro que ele situava embaixo da mesa da sala, mas, também, poderia estar, em certas horas, embaixo do lençol. Certamente ele era o senhor deste mundo, ainda que não se visse desta maneira, pois o seu destino era igual ao do povo deste lugar. E só ele sabia encontrar a porta de entrada e só ele poderia sair. Os outros estavam para sempre neste lugar tão colorido e não poderiam sair. Tudo se movia e agia e tudo estava, para sempre, num lugar imóvel, fixo, eterno.
As encantadoras aventuras do Sir Charles Magadom, a história em quadrinhos inventada pela criança Rubens Matuck, semente de toda a fabulação que lhe sucedeu.


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor de Agulha Revista de Cultura
Página ilustrada com obras de Rubens Matuck
Foto de JK © Pedro Sgarbi
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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