RSCL | Eu queria saber como começou esta sua conexão com
a escrita e com a arte. Não de influências, leituras e tal, mas em que momento você
escreveu o seu primeiro texto e para que foi. Você pensava em viver de arte?
FM | Eu sempre pensei em viver como algo incondicional.
A ideia de viver de algo jamais me atraiu. Acho que qualquer tipo de sucesso na
vida de um criador é uma consequência normal, embora não seja exatamente indispensável.
O que não se pode ter, mesmo, é o sucesso como meta, como razão de ser daquilo que
se faz. Eu fui copista, antes de ser criador. Copiava com guache capas de livros
do José de Alencar em papel cartão, e copiava breves relatos eróticos. Neste caso
eu copiava da transbordante e luxuriosa imaginação da adolescência.
RSCL | Quantos anos neste momento?
FM | Não tenho bem certeza, mas imagino que algo em torno
de uns 14 anos. Meus pais haviam mudado de casa. Saímos do centro da cidade para
um bairro típico de classe média ascendente. Isto mudou a minha convivência e certamente
dessa mudança vieram as primeiras tentações da criação.
RSCL | Com 14 anos você já sentia o ímpeto criador?
Isso estava claro na época?
FM | Quando morávamos no centro, na casa de
meus pais havia uma biblioteca que era ao mesmo tempo ampla e caótica, uma mistura
de tudo quanto se possa imaginar em termos de ambiente de leitura. Nesta época também
se ouvia uma variedade incrível de música em casa, porque divergiam muito os gostos
musicais de pai e mãe. Na escola e sobretudo a partir dos novos amigos que me foram
presenteados com a mudança de bairro eu completei o caudal de diversidade dessa
minha fonte de formação. Então aos 14 eu já vivia esse fervilhar de espírito que
nos torna um criador. Eu podia não saber em que labirinto estava me metendo, mas
certamente me sentia bem identificado com ele.
RSCL | Eu sei que seu pai gostava de jazz. Qual
a música de que gostava sua mãe?
FM | Minha mãe gostava de um cancioneiro brasileiro
mais sentimental, algo em torno de Sílvio Caldas e Orlando Silva. Ela tocava piano
na adolescência. No entanto, em grande parte pela doença de meu irmão, ela teve
uma vida muito sacrificada. Após a sua morte, eu acho que ela não conseguiu retornar
de seu mundo de ausência de tudo. Coincidiu com a minha entrada na adolescência,
minhas primeiras andanças por outros ares e logo em seguida ela morreu.
RSCL | Quantos anos havia de diferença entre vocês?
Como ele se chamava?
FM | Seu nome era Marcos Vinicius, quatro anos
mais novo do que eu. Teve problemas em decorrência do parto e perdeu por completo
sua atividade motora. Isto exigiu de minha mãe dedicação integral, de modo que eu
acabei sendo um pouco criado pela avó materna.
RSCL | E como foi esta criação paralela?
FM | Minha mãe representa aquele mistério maior
que suponho cada um tenha em sua vida. Segundo me revela uma foto minha diante dela,
em meu primeiro ano de vida, era uma mulher dotada de imensa delicadeza e transbordava
alegria de viver. Eu convivi muito pouco com ela, tenho fragmentos de memória que
se impõem dentro do possível. Foi uma relação interditada. Não me interessa falar
em fatalidade. Esta sempre soa como um infortúnio garantido, o que é ridículo. A
vida de uma pessoa está repleta de um conjunto tão variado de assonâncias e dissonâncias
que é impossível prever o desdobramento até mesmo de um sorriso. Os acertos ocasionais,
com ares de misticismo de quermesse, são fagulhas de uma crendice vulgar, mais do
que evidências de alguma conexão entre dois pontos. De qualquer modo, eu tive uma
infância repleta de incômodos inexplicáveis, todos da ordem do espaço por habitar,
até hoje não sei diferir certos escassos momentos de memória se tiveram por cenário
a casa de minha avó ou de meus pais. Além da curiosidade de que não tenho uma única
lembrança do caminho percorrido de uma casa à outra ⎼ distavam entre si umas seis quadras ⎼, se o fazia a pé ou de carro. Sequer recordo
a frente dessas casas. Em uma novela que escrevi eu identifiquei na biblioteca existente
na casa dos pais o portal secreto que me conduzia à casa da avó. Uma espécie de
moto perpétuo de um rito de passagem.
Eu ia e vinha, de um ponto a outro, ainda sem dar por conta do que viria a ser.
FM | Eu já cheguei a pensar que meu irmão sequer
tenha existido. A fotografia não é uma prova da realidade. A memória menos ainda.
Existir é a incógnita de uma equação cujas duas variáveis se chamam resistir e desistir.
Que não caiba dúvida quanto à fatalidade do personagem que cada um de nós representa
na vida, não sei. Acho que a formulação está errada, dado que sempre que não coincide
com o estabelecido crucificamos o pensador e não o pensamento. Eu me sinto impregnado
de meu irmão e de minha avó, porque eles de algum modo representaram o papel de
pai e mãe, mesclando as impossibilidades de cada função. Já sei, é como salpicar
estrelas em um céu nublado. Mas não é fácil acordar diariamente sem as suas referências
mais primárias. Eu fui acordando assim, durante pelo menos a primeira década de
vida, eu tive que tornar o mundo disciplinado por uma magia lúdica. A intuição ⎼ talvez meu sentido de resistência ⎼ foi redefinindo os parâmetros de minha relação
com o mundo.
RSCL | Me deu vertigem ao incorporar as suas falas, vertigem
em estar em seu lugar, em ser você…
FM | …Um arrepio na alma? (risos) Eu já tive
isto várias vezes. Há um momento em que a gente se ilude, achando que domina essa
volúpia, esse transbordamento. A vertigem melhora quando incorporamos mais elementos
a um acervo de técnicas ou quando aprendemos a lidar com a ansiedade. Houve uma
época em que eu me dizia que havia algo de estratégico em tudo isto: eu lidava com
tantas coisas, atirava para tantos lados, criava tantas perspectivas de trabalho,
que era impossível sentir o baque das inevitáveis respostas negativas. De algum
modo deu certo, pois jamais tive crise de angústia ou identidade diante das recusas
de produção e/ou promoção de minha criação.
RSCL | Mas havia uma base, um ponto em que alguma
referência literária lhe desperta e então você percebe que seu caminho era o de
um escritor, de um poeta.
FM | A vida é brincalhona e se esconde nesses
intervalos em que não se deixa sequer entrever. Creio que muito de nossas referências
descobrimos ao acaso. Recordo que ali pelos 16 anos reuni uns primeiros poemas e
um amigo me levou à mesa de um decano destacado de nossa poesia. Ao ler aquelas
não mais do que umas 20 páginas me falou de O
guardador de rebanhos, do Alberto Caeiro. Eu fiquei caladinho, passando a impressão
de ser tímido, porque jamais havia lido Fernando Pessoa. A minha infância foi marcada
pela leitura de José de Alencar, Dostoievski,
Shakespeare e Milton. O poeta cearense que leu meus poemas se chama Francisco
Carvalho, de quem me aproximei muito posteriormente, mas até hoje acho que ele foi
não propriamente generoso, mas sim astuto, ao me indicar um caminho. Sabia que eu
sairia daquele nosso encontro à procura de todos os livros de Pessoa. De qualquer
modo, permaneceu uma inquietude: como posso sofrer a influência de quem jamais li?
Um dia compreendi que a razão disto tem menos a ver com o ambiente limitado de quem
se dedica a identificar influências do que com o fato de que a vida se encontra
definida por um vultoso e diverso traço de afinidades com o que nos é visível ou
invisível, não importa. Aos poucos fui aprendendo que as mínimas experiências de
vida são postas na panela da criação como ingredientes que sabem ser tão indispensáveis
ao prato final quanto os grãos de conhecimento, as pedras de referência, o diapasão,
as hortaliças do mistério, os truques da memória.
RSCL | Mas algo o perturbava de um modo que até
aqui me passa a impressão de que em seu momento você não sabia identificar.
FM | É verdade. Fui apanhado por algo maior
do que eu, naquele instante, dava conta ao menos de entender. Não se trata de destino,
de fatalidade. Creio que é uma espécie de disposição para o crime, de reciprocidade
de sinais entre causa e efeito. De algum modo eu estava ali prontinho para ser aquele
menino que não se encaixava em parte alguma de sua vida. Eu vivia aquele momento
em que uma janela não significa o espaço por onde algo entra, mas sim a chance de
escapar. E por vários anos eu tratei de escapar e escapar e escapar… Demorou até
eu compreender que a janela poderia funcionar de outro modo. Eu me excedi em ser
fugitivo de muitas coisas em minha vida.
RSCL | Eu queria retornar à sua família, os seus
pontos de fuga, se assim os podemos chamar, são referidos como umas zonas incômodas
que necessitavam ajuste ou simplesmente exclusão de um mapa existencial. Como você
distinguia o papel que ocupavam aí o pai, a mãe, a avó, o irmão, quem mais?
FM | Naquele momento eu queria apenas ir para
o mais longe possível. O único que consegui foi abafar a atuação externa de um espectro
que seguiu pulsando. Os tempos se deram em uma cascata de vertigens. Havia uma religiosidade
informal na família, disfarçada pela aceitação tácita do tema. Eu fui semanalmente
levado a duas igrejas por minha avó. A minha memória se atém às quermesses de uma
- ela quase sempre arrematava um frango assado envolto em celofane azul -, incluindo
seu trágico incêndio. Então passamos à outra igreja, para mim sem muito atrativo.
Recordo que ela recebeu ocasionalmente a visita de um bispo, e que tive que beijar-lhe
o anel. Esta cena de algum modo redigiu em meu espírito uma bula antepapal (risos).
Meu irmão vivia em seu mundo de ausência perene. Era algo indecifrável para a minha
infância. Eu queria tocar-lhe e que reagisse como qualquer pessoa. Eu talvez não
entendesse o que aquele silêncio completo significasse. Minha mãe era devotada a
ele, era seu sacerdócio. Meu pai era uma figura ausente no ambiente doméstico, aos
meus olhos, eu me lembro dele ouvindo sua música, quando surgiu a televisão nos
aproximamos muito, fascinados pelo espectro em si, mas lembro bem que ele me levava
ao cinema, nas manhãs de domingo eu me deliciava com filmes como os de Carlitos, mas especialmente com O gordo e o magro. Já a avó, ela era a coluna
central, o pé direito, quem garantia o fiel de uma família que deu de cara com a
morte do pai quando o filho mais velho tinha apenas 18 anos. Lilia - era seu nome
- ficou viúva muito jovem, de um comerciante bem sucedido e muito mais velho do
que ela. tinha diante de si um desafio enorme. Esta foi a minha avó-mãe.
RSCL | O que acho mais interessante em nossa conversa
é que ao responder você não se limita a encerrar o assunto, pelo contrário, está
sempre abrindo novas perspectivas. A sua poesia também é assim. Você cria um mundo
alucinante em que se misturam sonho e vigília. As drogas alguma vez estiveram presentes
em sua vida?
FM | Eu jamais tive problema moral com as drogas.
Meu dilema com a maconha é que ela me deixava letárgico. Eu precisava calibrar a
voltagem de meus sentidos e a maconha me deixava preguiçoso. Caso eu cheirasse cocaína,
o efeito seria inverso e igualmente danoso. O álcool permitia então concentrar e
equilibrar a energia necessária à criação. O poeta Enrique Molina, que também pintava,
disse que uma distinção entre ambas - a poesia e a pintura - é que o pintor, ao
contrário do poeta, pode pintar o dia inteiro. A energia acumulada em função da
criação do poema se esvai de um jato, e nos deixa momentaneamente vazios. Eu tinha
muita dificuldade em me concentrar, de modo que houve uma época em que eu necessitava
de uma ajuda neste sentido, o de acumular em meu íntimo a soma dos seis sentidos,
a carga total de sua apreensão do mundo.
RSCL | De qualquer modo, é muito difícil ter acesso
ao frasco de sua essência. Talvez ele se esconda por trás dessas prateleiras tão
múltiplas que vemos ao adentrar a sua oficina de criação. Quem, por exemplo, é a
mulher que fala em você?
FM | Não chega a ser um truque, não há intencionalidade
nisto. Tocaste bem a escala mais alta de meus sentidos, não a mulher, propriamente,
mas o que está por trás do feminino e que nos escapa, ao homem e à mulher, de um
modo desastroso. Um dia alguém me disse que não há como fugir de uma coisa na vida:
sempre, em algum momento, acabamos por precisar irremediavelmente do outro. E me
disse como se aí radicasse alguma tragédia. Mas esta é a maravilha da vida. A mulher
que fala em mim, e não através de mim, é a voz de uma compreensão desse falseamento
da essência do ser. Não se trata de uma evocação, seria uma visão simplória e marcada
por certo machismo. Tampouco é uma encarnação, porque não há transferência de mirador,
eu não empresto meu olhar à mulher. O que me atrai é esta confiança em uma irmanação
de sentidos, uma alquimia da percepção de que o mundo não se dá em isolado senão
como mercado ou usufruto religioso.A mulher que fala em mim é a única que tem acesso
a esse frasco de essências, assim mesmo, no plural, sem truques, insisto. Eu não
tenho interesse no criador como um intelectual. São dois planos distintos, que se
encontram como um acidente geográfico. Uma vez publiquei um livro de ensaios chamado
A inocência de pensar e uma resenha, após
elogiar o livro, disse ser inaceitável que o pensamento fosse inocente. O mundo
acadêmico está tão habituado a justificar ou contradizer um pensamento já existente
que por vezes esquece o frasco de essência do mesmo. Isto nos leva a Goya e sua
entranhável compreensão de que "os sonhos da razão produzem monstros".
RSCL | Às vezes eu acho que você é um pensador
que, ao procurar algo para se expressar, encontrou a poesia por acidente.
FM | É uma perspectiva fascinante. Tenho por
autores que sempre me inquietaram a mesma impressão, independente de serem poetas
ou não. Penso em Milan Kundera, Francis Bacon, Duke Ellington, Jorge Luis Borges,
Clarice Lispector, Keith Jarrett… Impossível estar com eles sem entender o quanto
há de expressão, digamos, filosófica em sua criação. Ao mesmo tempo, dá-nos uma
sensação de vazio o que se exibe como produto da arte contemporânea, justamente
por esta ausência de um pensamento. Houve um momento talvez pior, em que essa figura
do pensador era entendida como um libelo ideológico. Revestir a criação artística
de um preceito ideológico ou de um roteiro de entretenimento, acaba por fazer com
que o monstro criado se volte contra seu fabricante e cuspa em nós, como o faz a
arte em nossos dias, as cinzas de sua angústia. O século XXI se encontra em uma
espécie de sinuca de bico, ainda sem aceitar o fato de que os dilemas de sua engrenagem
(não importa se na religião, na ciência, na arte) são frutos não do acaso, mas sim
de desvios de jogo, ou mais claramente: são resultados da prevaricação da religião,
da ciência, da arte, em relação ao mercado.
RSCL | Criação e pensamento se irmanam…
FM | Este é o ponto. Perdemos a ideia de que
o criador é parte do mundo. Estou lendo a correspondência ativa do García Lorca
a diversos amigos, escritores, editores, diretores de teatro, ele sempre a manifestar
preocupações em relação à presença de sua arte em seu tempo. Vivemos em uma época
em que a correspondência - em todos os sentidos, não apenas na troca de cartas -
se converteu em algo dispensável ou então marcado por um carteado de troca de interesses.
O homem então teria criado um alto padrão tecnológico de comunicação para não comunicar-se
mais consigo mesmo e o outro que o definiria em essência? O que chamamos hoje de
comunicação é uma imposição de valores e não uma troca de percepções do mundo. Este
é o tablado em que viemos dar, onde quanto mais perto mais longe. O homem evita
reconhecer-se em si mesmo. Não importa a extensão da tragédia humana.
Organização a cargo de Márcio Simões e Floriano
Martins © 2017 ARC Edições
Renata Sodré Costa Leite é psicóloga e reside
em São Paulo. Esta entrevista foi realizada através do chat do Gmail, nos primeiros
dias de abril de 2015.
Artista convidado | Floriano Martins
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL
A Agulha Revista de Cultura teve em
sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer,
tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu
seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob
a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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