FM | A Europa dos anos 1920 via no Surrealismo uma forma de situação-limite,
o encerramento de algo, o que diferia do âmbito hispano-americano. O que era conclusão
em um lado do Atlântico era expansão na outra vertente. Se pensarmos nos antecedentes
que definem a entrada na modernidade dessa poesia – e aí podemos citar o chileno
Rosamel del Valle, o venezuelano José Antonio Ramos Sucre e o peruano José María
Eguren, teremos que buscar uma leitura distinta entre Desnos e Paz, Breton e Molina,
Eluard e Westphalen. Minha ressalva previne em relação aos lugares-comuns que reduzem
a atividade surrealista a uma condicionante parisiense.
SC | Você dialoga muito com as ideias de Stefan Baciu. Por que?
FM | Há uma bibliografia muito resumida acerca do Surrealismo na América
Latina. Alguns livros são de importância fundamental, mas não circulam além de um
estrito círculo de leitores. Neste sentido, há uma imensa história do Surrealismo
a ser recuperada. Por alguma razão, seguramente ligada a interferências stalinistas,
o romeno Baciu fez circular uma leitura surrealista restritamente escolástica e
pautada por inúmeros equívocos. Se eu recorro a ele com certa insistência é por
que há uma interferência considerável a ser entendida e questionada.
SC | Você diz que no Brasil, uma visão positivista, relacionada a
uma concepção política da história, impede o diálogo da literatura brasileira com
o surrealismo. Por quê?
FM | O “surrealismo à brasileira” do Murilo Mendes era uma maneira
de não ferir a si mesmo e a um ambiente castrador que ele sabia existente no Brasil.
País extremamente católico onde o desregramento de sentido proposto por Rimbaud
era inaceitável, todas as proposições das vanguardas foram lidas apenas no plano literário. Forma de extravasar os limites da realidade,
como seria o caso do barroco, foram como que anuladas no Brasil. Houve certo casticismo
da linguagem poética, firmado e continuado ao longo dos anos. Se pensarmos em Parnasianismo,
Concretismo e essa diluição pós-qualquer coisa que se tem hoje em dia, tudo se encaixa.
Não entendo o assombro da crítica, concordante ou não.
SC | Acha correto dizer que o princípio do surrealismo latino-americano
deu-se na Argentina, Chile e Peru e que o Brasil só responderia a essa tendência
algum tempo depois? Por que esses países ofereciam um cenário mais propício naquele
momento?
FM | O Surrealismo implicava atividade ao mesmo tempo grupal e individual,
como já disse o Octavio Paz, inclusive justificando sua presença, em um determinado momento, tendo por base completa ausência
de atividade grupal no México. Tua indagação requer um largo ensaio a respeito.
Se observarmos bem havia uma continuidade na experiência do Barroco e do Simbolismo
na América Hispânica que no Brasil fora cerceada ao longo da história. Nossa entrada
na modernidade foi caótica e padeceu, sobretudo, de uma consciência estética. Como
seguimos até hoje sem abrir diálogo com qualquer outro ambiente cultural, uma presunção
retórica nos encastela em si mesmo.
SC | Por que você acredita que uma interpretação tradicional que liga
o surrealismo brasileiro apenas à figura de Murilo Mendes contribui para uma visão
excludente sobre a influência que o movimento teve no Brasil?
FM | Essa limitação se baseia irrefletidamente na afirmação de Murilo
em torno de “um surrealismo à brasileira”. Foi usada e abusada pela crítica no sentido
de restringir atuação do Surrealismo no Brasil. Muitas vezes serviu de pano de fundo
para ocultar a própria importância de Murilo em nossa poesia, como no caso da rejeição
injustificável que tem a este poeta um crítico como Wilson Martins.
SC | Você destaca a importância de Mariátegui e sua revista Amauta para a criação de um espaço onde as
vanguardas europeias circularam na época. Mas a principal preocupação de Mariátegui
em seus escritos era política. Acha que é possível relacionar, em algum instante,
o surrealismo latino-americano com a proposição política de pensadores como Mariátegui?
FM | Já se tentou de todas as maneiras a aproximação entre política
e poética. Os políticos sempre se beneficiaram do assunto e os poetas acabaram sendo
estigmatizados por certa inocência. Amauta
propiciava uma abertura de discussão sobre variados temas. Hoje constitui documento
importante o espaço cedido à discussão de assuntos poéticos sem interferência política
da editoria. O assunto morre aí. Um particularismo peruano não vale para o restante
do continente.
SC | Por que decidiu lançar a revista eletrônica Agulha? Em que medida ela auxilia no intercâmbio
da poesia latino-americana?
FM | Agulha Revista de
Cultura
é uma publicação de reflexão crítica sobre a produção artística. Não se limita ao
âmbito latino-americano, mas lhe dá prioridade. Surgiu de uma experiência frustrada
de produzir uma revista impressa de ampla circulação nacional. E tal frustração
permitiu descobrir na Internet um veio extremamente ágil e ainda hoje mal explorado.
Como circulamos em português e espanhol, e superamos a marca de 50 mil endereços
cadastrados, representamos um vínculo entre as duas culturas, em termos idiomáticos,
jamais alcançado. Um último obstáculo seria fazer a mídia impressa entender a existência
de uma virtualidade expressiva.
SC | Além de Agulha e da
Banda Hispânica, você também atua como
colaborador em revistas latino-americanas de literatura. Acredita haver um terreno
fértil para a formação de uma cadeia de intercâmbio entre poetas e escritores no
continente? O que acha que poderia ser feito para que a troca entre esses países
fosse mais intensa?
FM | As revistas literárias têm sido a única forma de relacionamento
entre os diversos países que conformam a América Latina. A grande maioria é dirigida
por poetas. O mesmo se passa com as duas revistas que dirigimos, Claudio Willer,
Soares Feitosa e eu. As formas de intercâmbio possíveis são óbvias, embora não praticadas.
Sistematizar encontros internacionais (simpósios, mesas-redondas, leitura de poemas
etc.) que não sejam pautados por interesses incomuns, definir uma política editorial
que atenda a uma veiculação mútua, buscar gestões que propiciem ampla difusão. O
assunto não pode seguir entregue a iniciativas isoladas de uns poucos abnegados.
É uma falácia o estado brasileiro falar em integração latino-americana e permitir
o que se passou com a revista Poesia Sempre,
da Biblioteca Nacional, na Feira Internacional do Livro em Guadalajara, México,
no final do ano passado, quando todo o lote de exemplares levado para lançamento
ficou retido na alfândega, sem qualquer providência por parte da embaixada brasileira.
Organização a cargo de Márcio
Simões e Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Fragmento desta entrevista foi publicado no caderno
Folha Ilustrada, do jornal Folha de S. Paulo, 2002.
Artista convidado | Floriano
Martins
Imagens © Acervo Resto do
Mundo
Esta edição integra
o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO,
I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA
HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO,
II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL
A Agulha Revista de Cultura
teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio
Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu
seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob
a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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