sábado, 28 de abril de 2018

PAULO SPOSATI ORTIZ Bate Outra Vez: Uma Bomba Precisa (Márcio Simões/“Sol Negro”)



O mundo devastado fundou uma poética singular no século XX, de encantar Adorno com sua duvidosa concepção se haveria o rascunho de um poema sequer depois de Auschwitz. Da poética do emudecimento de Paul Celan à do silêncio de João Cabral, talvez sintetizaria Modesto Carone. Poesia boa é poesia morta. E assim, calada no seu canto, a sombra que restou dela é muitas vezes rebuscada em mãos mui universitárias, com a desculpa da “forma difícil”, conceito caro aos formalistastambém futuristas russos. Seria essa a via única da poesia hoje, repleta de versos e palavras partidos ao meio, imagens cifradas à procura de hermeneutas de primeira, lugares e vocábulos exóticos na direção de um profundo estranhamento, mensagens extraviadas antes mesmo da última estrofe, fala desarticulada em defesa de uma discussão metalinguística antes de tudo?
Não só, talvez diria o coletivo do Rio Grande do Norte aqui apresentado. Os poetas Barbosa da Silva, Márcio Magnus, Márcio Simões e Sopa D'Osso, integrantes do “Sol Negro”, contestariam tal limitação, sem se distanciar da questão lançada há mais de um século pela literatura, arrastando consigo a percepção linguística do Simbolismo e a viva provocação das Vanguardas. Esses autores de Natal invertem a equação que cada vez mais se torna consenso entre os poucos leitores de poesia – cada vez mais exibidos na ruína que os envolve, como se fossem as últimas testemunhas e as primeiras detentoras da mais alta cultura, o que os faz pisarem com a mesma bota dos opressores as cabeças da pouca humanidade que se dispersa, errante, num mundo eternamente entre guerras. Vejamos de perto como o Sol Negro retira o coração das trevas, e de que maneira eles não se furtam desse apocalipse now.
Sua proposta é a de instalar a percepção do horror no horizonte de cada linha, sempre perdida ao descermos os olhos para a próxima, como pode ser conferido na pequena amostra da antologia deles no link acima. Reféns dessa entrelinha, adentraremos o coletivo pela mão de Márcio Simões, escolhido para uma análise mais detalhada. Embora seus companheiros nos socorram aqui e ali – merecem, no entanto, um ensaio à parte desde já, frente à profundidade e singularidade que cada qual apresenta. Ele segue à risca o desejo implacável de trazer o sopro do fim dos tempos ao branco do papel, às vezes tão inocente nos dedos mais perspicazes, inconscientes de que seus jogos literários são apenas war pra principiantes. Esse sopro nos ronda agora mesmo – prova cabal de que o poema, rascunho ou não, ainda é possível hoje, e um de seus caminhos é o da destruição, seja a ferro e fogo ou algo pressentida, destruição esta reencenada no seio negro da linguagem solar e na liquidez da imaginação, deusa desprezada que ultimamente, vagarosamente, volta aos palcos do levante que logo, logo virá à tona. Os hieróglifos do Novo Egito que se revelam nesses dias não nos deixam mentir.
Observem o exemplar auto-explosivo abaixo:

X (de “O Balé Letal”)

quando anjos aleijados decapitarem a boca aberta das trombetas
quando clarins incendiarem a nudez numa vegetação
quando a campânula estrebuchar num arco de chuva
as caravelas se abrirão num largo
e as amantes se enforcarão em claras flores de lótus

estampidos e paradas se baterão pela planície
o orvalho virá fecundando a tormenta ou a terra
a ruína do mar e o arrebentar-se das pedras
louvarão essas vacilações do espírito
minhas anarquias, meus demônios

Uma primeira impressão acompanha essas duas estrofes, da imagem que passa pela retina ser apocalíptica, num encadeamento de apontamentos surrealistas mesclados com descrições bucólicas. O livro das revelações é aberto por figuras tipicamente bíblicas, como “anjos”, “trombetas” e “clarins” no desfile selvagem inicial. Até o terceiro verso, há um paralelismo de orações subordinadas adverbiais temporais, deleite terminológico para os gramatólogos de plantão, no qual o tríptico de “quandos” forma três cenas de deixar qualquer um atônito.

quando anjos aleijados decapitarem a boca aberta das trombetas
quando clarins incendiarem a nudez numa vegetação

Variação do “anjo torto” de Drummond, quem sabe mesclado com o “gauche” da mesma estrofe do “Poema das sete faces”, os mensageiros cristãos surgem mutilados e para mutilar as “trombetas”, instrumento de aviso, seja de ameaça, convocação à guerra ou simples festa. Mas a shofar bíblico deste poema não é profética, pois foi ceifada de sua função, “boca aberta” que não propagará mais o seu canto. Curiosa a segunda hipótese temporal vir com outro instrumento de sopro, também para uso marcial ou comemorativo como a anterior, porém, o que era mutilação naquela, num diálogo com o corpo impossível que Eliane Robert Moraes analisa na modernidade, torna-se luminosidade ambígua nessa, entre o mal que se alastra pela fauna e flora de um lugar indeterminado e a beleza que se acende em meio à natureza, ambiguidade que contamina o silêncio da trombeta a partir da amplitude semântica de “incendiarem” com seu crepitar de significantes, desde os chiados – “aleijados”, “anjos” – e explosões – “decapitarem”, “boca”, “aberta”, “trombetas” – aos silvos (clarins, incendiarem, nudez), além da “nudez” que nos remete aos decepamentos da imagem do início.

quando a campânula estrebuchar num arco de chuva

O terceiro verso arremata a sequência de hipóteses futuras com uma expansão surpreendente, já que “campânula” pode ser um sino, uma planta e a parte de um instrumento de sopro, cada qual estendendo os vasos comunicantes dos objetos já sugeridos. O mundo musical e o mundo vegetal se entrelaçam no momento em que esse vocábulo polissêmico sai de seu estado natural frente à “chuva” que se dobra contra o céu, semelhante a um arco-íris, dessa vez líquido, dessa vez transparente. Com tais condições, o eu-lírico indica o que ocorrerá numa dimensão divina como a ira bíblica demonstrada no último livro do Novo Testamento.

as caravelas se abrirão num largo
e as amantes se enforcarão em claras flores de lótus

Estaria séculos atrás, na descoberta do Novo Mundo? Uma embarcação ao longe se aproxima, enquanto as mulheres, presas do amor não oficial, dão cabo da própria vida com uma amostra singular do mundo vegetal, “em claras flores de lótus”. Para os entendidos, entre os quais não me incluía até o presente momento, a flor de lótus branca possui uma simbologia particular, representando a pureza em diversas culturas, talvez porque seja auto-limpante (absorve toda a sujeira que estiver nela) e surja imaculada da lama. Uma perspectiva indiana abre um novo horizonte aqui, pois a flor de lótus também pode ser considerada como a criação do mundo, entrelaçando esse verso com o anterior na sutil conexão entre o local em que os portugueses aportaram de verdade, a terra do pau-brasil, e o lugar ao qual planejavam chegar, em direção às Índias. Não por acaso denominaram os nativos que encontraram nesse região de índios, faísca analógica que o poema gera entre o mundo oriental de onde tal planta vem e a rota imaginada pelos desbravadores da era das Grandes Navegações.
Um parêntese deve ser aberto, trazendo à baila um companheiro seu de “Sol Negro”, Barbosa da Silva, a fim de que a faísca analógica se avolume num brainstorm. No poema “O menino e o pai”, o menino do título vê “Tathagata no mato” e, “Onde quer que olhasse/ Estava vendo Tathagata”, apesar do ceticismo do pai, pois “Deus é Deus e tá lá no céu...”. E o que seria Tathagata? É o nome que Buda usa para denominar a si mesmo, tendo significados paradoxais, aquele que se foi e aquele que vem, numa tradução tosca do que encontrei no wikipedia inglês. Nesse brevíssimo comentário do poema de Barbosa da Silva, vê-se uma relação com o de Márcio Simões agora analisado, pois ambos são visionários e compartilham um misticismo sincrético, elementos a princípio fundamentais para penetrar as portas do “Sol Negro”.
A Índia é aqui, e assim uma fenda religiosa nasce entre culturas diversas, como se os anjos e seus clarins e trombetas do Cristianismo dos primeiros versos, herança europeia de nossa colonização, desembocassem na dança ritual que convoca o “arco de chuva”. Seria “a nudez numa vegetação” um indício dessa dança, com os singulares índios agora indianos? Viagem minha, mas sintetizada na insistência que se estende da “vegetação” à “campânula”, até reaparecer “em claras flores de lótus”. É como se o autor sussurrasse por trás de seus versos, e esse sopro nos ronda agora mesmo, que uma relação secreta rege o nosso mundo desencantado, enquanto Barbosa da Silva acrescentaria o adjetivo mística a tal relação. Mas isso não dura mais que um breve instante, é loucura demais manter uma opinião dessas diante das estrofes que temos frente aos nossos olhos, bem mais amplas que uma conexão cerrada como a que se fez linhas atrás. A poesia de Márcio Simões permanece imantada de uma simbologia transcendente, atitude que nos faz experimentar mais uma vez o horror, levemente tontos de sermos arrancados de qualquer mensagem final até o final. O próprio acrescenta na “Entrevista Poenocine”, na resposta à pergunta 5, algo sobre sua “participar na totalidade das coisas diante da própria insignificância”, como pode ser visto no link abaixo:

estampidos e paradas se baterão pela planície
o orvalho virá fecundando a tormenta ou a terra

A segunda estrofe começa num ritmo semelhante ao da primeira, com uma explosão simultânea de imagens. Surge a dúvida de realmente termos passado para outra estrofe, embora o contrário seja tão possível quanto, ao nos questionarmos se algum dos versos de ambas faz parte do mesmo poema, num curioso equilíbrio entre a dispersão natural e uma súbita interação entre as cenas desveladas linha após linha. O sexto verso, por exemplo, pinta um desfile militar novamente a partir da sonoridade utilizada – “estampidos”, “paradas”, “baterão”, “pela”, “planície” –, e ele também está num lugar não civilizado, logo dando espaço mais uma vez para a natureza – “orvalho”, “tormenta” –, variação que vai da metonímia bélica da humanidade aos furiosos rastros da mãe terra.
Novo parêntese será aberto aqui, e quem apresenta um pouco mais do “Sol Negro” é o seu homônimo, Márcio Magnus. No poema “V”, há uma singela descrição de “um pássaro através do céu” ao cortar uma espessa nuvem de chuva. Porém, o singelo desdobra-se no seguinte requinte: esse amontoado cinzento foi nomeado de “Sob o nimbo”, nuvem que também envolve os deuses ou designa a auréola dos santos, quando não for uma forma de expressar desgraça; num segundo momento, o requinte aumenta quando diz que o pássaro está “suavemente/ demolindo”, oxímoro compreensível para o objeto descrito, um simples nuvem no céu rompida pelo voo de um pássaro, mas a metáfora usada, e esse é seu toque final, intensifica a ação, pois aquelas nuvens são agora “muralhas”. O Magnus encontra o Simões nesse ponto, debruçados na contemplação de como a natureza se torna selvagem, logo transmutada em rebelião religiosa frente à calmaria bucólica para olhares amenos. A contemplação antes sugerida possui uma perspectiva de intervenção, no momento em que a parcela de humanidade do eu-lírico se identifica com o brilho animalesco do mundo não racional. Márcio Magnus aprofunda tal discussão com um exemplar de aparência angelical rompendo qualquer santidade impenetrável, não por acaso que se encontra “através do céu”, menos por acaso ainda fazendo rimar “Sob o nimbo” e “demolindo”. E quem se interessar mais sobre essa “derrocada definitiva do paradigma cartesiano e racionalista”, entre no link a seguir, no qual está o manifesto na íntegra do “Sol Negro”, “A flor do arco o esqueleto da bruma e as ramagens floridas”, logo após a breve antologia do grupo:

a ruína do mar e o arrebentar-se das pedras
louvarão essas vacilações do espírito
minhas anarquias, meus demônios

Notem que a “ruína do mar” conversa tanto com “o arco da chuva” quanto com “as caravelas (...) num largo”, sem mencionar que as “claras flores de lótus”, “o orvalho” e “a tormenta” são extensões semânticas da figura da água. O dilúvio bíblico, manifestação de dimensões apocalípticas, parece transbordar do poema, e ele toca “essas vacilações do espírito”, mostrando uma ligação entre a ira de Deus e as mudanças por que passa sua subjetividade. Antes de aprofundar essa nervura essencial para uma possível compreensão geral deste poema, voltemos ao dilúvio desenhado pela “tormenta” e “a ruína do mar e o arrebentar-se das pedras”.
O livro do Gênesis relata como Noé teve que fabricar uma embarcação para abrigar sua família e um par de cada espécie animal, pois iria repovoar a terra que foi banida de toda a população humana. Um quebra-cabeça se encaixa aos poucos: as caravelas são a outra face da arca, vocábulo este de proximidade com “o arco da chuva”, um com o étimo de guardar algo, enquanto o outro aponta para a forma
arredondada, ambos compartilhando a ideia de conter. A cenários assim, sem qualquer população, enquanto a humanidade foi eliminada nesse capítulo do Gênesis, poderíamos juntar a dança ritual da chuva e o florescimento da lótus por entre águas lodosas do poema de Márcio Simões. Se fôssemos um pouquinho além, nos espantaríamos com a passagem bíblica em que Noé fica nu dentro de sua tenda: seria uma versão da “nudez na vegetação”? Depois, boquiabertos ao sabermos que o filho de Noé, Cã, por não tê-lo vestido ao encontrá-lo nu, teve seu filho, Canaã, amaldiçoado pelo próprio pai, e esse neto de Noé daria nome a terra prometida e ao respectivo êxodo dos hebreus. Numa feliz coincidência, aquele Brasil da época das descobertas oscilaria entre essa Canaã, na visão do paraíso por parte dos europeus, e o inferno verde que se abria debaixo dos pés estrangeiros.
Último parêntese aberto no ensaio, para arrematar com o integrante ainda não mencionado até agora, o Sopa d'Osso. No poema “Eras Cósmicas”, o eu-lírico o divide em duas estrofes: a primeira composta por glossolalias de mentirinha, numa mistura de línguas latinas e indígenas com forte apelo para o significante, como se quisesse despertar o leitor para a sonoridade mágica da fala; a segunda estrofe inicia parodiando um trecho da Bíblia, com o seu “Num princípio o verbo se viu no kaos”, associa o Big Bang com uma ejaculação, “O grande estouro da galada universal” e “a vida dos mundos/ Em desdobramentos muitos” e mete no mesmo balaio partículas elementares de interação forte – “hádrons” – e fraca – “léptons” – e sua “radiação”, fala da velocidade com que tudo aconteceu, “Foi a um segundo”, quando anuncia no sétimo verso dessa estrofe que “até o fim desta noite ainda vamos”, tornando presente a própria gênese, hoje mesmo, e esse sopro nos ronda agora mesmo, e revelando o significado por trás de representar, encenar nesse mesmo instante mais uma vez. E o poema se encaminha para o final em conexões subterrâneas com seus companheiros de”Sol Negro”, “A navegar contentes e cruzados no ungido” de Sopa d'Osso e “a ruína do mar” de Márcio Simões, o sagrado de “Tathagatano mato” de Barbosa da Silva como também o pássaro “Sob o nimbo” de Márcio Magnus. No último verso, “Humildes em simplicidade”, ele se aproveita da etimologia, que remete tanto a húmus e à humanidade, sintetizada na Bíblia como filhos da terra.
Nesse clima, Márcio Simões dá o desfecho do seu poema, escolhendo com extrema perspicácia algumas palavras dos últimos versos, como o verbo “louvarão”, com seu tom religioso, mas regido pelos sujeitos “a ruína do mar e o arrebentar-se das pedras”, nada santos, mas frutos da ira divina, e então vislumbramos que a experiência do horror é, sobretudo, mística. O autor faz questão de usar uma designação mais ampla pra subjetividade, “espírito”, que também possui raiz religiosa, embora “essas vacilações” confunda o senso comum de elevação que a alma teria por natureza, mas o que o autor indica aqui é a origem de sopro divino, instável na sua manifestação pura. Termina o poema com um par, semelhante aos que Noé levou à sua embarcação, um feminino – “minhas anarquias” – e o outro masculino – “meus demônios” –, duplo como as duas estrofes simetricamente com cinco versos cada, sinalizando, semelhante aos sinais do apocalipse, quem foram, são e serão os pais de sua poética, do lado esquerdo, e sempre plural, a anarquia, princípio político de auto-gestão – todo leitor enfretará sozinho a fabricação da mensagem, numa arca de significados pessoas –, e do lado direito, também múltiplo, por ser legião, o demônio, dispositivo místico do que nos assombra, além de sua simbologia de transição entre os dois mundos, seja a Canaã anunciada por anjos aleijados ou o inferno verde fecundado pela tormenta.
Tentando fazer um panorama do “Sol Negro”, mesmo que a partir de apenas um poema de Márcio Simões, tendo o auxílio de seus três companheiros, Barbosa da Silva, Márcio Magnus e Sopa d'Osso, desde já descrente de uma coletividade coesa, mas se sabendo em frente a singularidades que se acrescentam a partir de uma troca real, feita de conflitos e diálogos secretos para aqueles que estão de fora, eu diria que tal grupo do Rio Grande do Norte toca num assunto um tanto esquecido na sociedade moderna, cética em sua fundação: a espiritualidade. Não aquela construída com obediência, mas permeada pela marginália, por todos os que foram desprezados pelo público e pelo que foi publicado. Marginália sublime, pois alia-se ao conceito romântico, forjado em Kant, do sublime terrível, quando o horror nos aproxima da experiência divina por ter proporções grandes demais para nós, pobres mortais. Com pensamento semelhante, faço minhas preces para que o “Sol Negro” adentre a poesia brasileira atual com sua leveza de redemoinho.


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Agulha Revista de Cultura
Número 111 | Abril de 2018
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