Disse
Teresa de Ávila
(talvez
não o tenha dito;
sonhei
pelo menos que o teria dito) —
que
num barril cheio de água
ou
numa inundação
uma
panela vazia flutuará,
porque
é pequena e vazia.
(Como
a arca flutuou naquele tempo,
sobre
oceanos de desamparo.)
Quero
comigo esse pensamento.
Às
vezes, em minhas horas de aflição,
em
que tento colocar em minha vida
um
lastro excessivo de coisas,
em
que tento preencher de algum modo o que sou.
Tenho-o
comigo em minhas horas de desânimo:
o
que for mais leve flutuará,
o
que estiver vazio deslizará na superfície.
FRAGMENTOS
PARA UMA ELEGIA
O
homem que faz os milagres
fugiu
no escuro. (Não veio.)
Aquela
festa da aurora —
aquele
vasto girar.
Nenhum
tesouro se achou
sob
a maré dos escombros:
nenhuma
porta, passagem,
revelação
ou enigma.
O
touro da simpatia,
o
progredir da semente.
Nenhuma
voz se escutou
quando
o silêncio cresceu:
e
a luz se apagou, e o fogo
se
extinguiu na escuridão.
O
mecanismo falhou
(o
porto se distanciou) —
e
nada ficou melhor,
e
nada ficou mais claro.
Não
existia o caminho —
a
ponte havia ruído.
(O
teto desmoronara
sobre
chapéus e cabeças.)
Que
digo? Não veio o vinho
porque
a videira secou
na
geometria do gelo. —
E
o resto foi só o deserto
com
sua pedra e seu sol:
seu
estilhaço de sol
no
centro mínimo do olho.
Falhou
a engrenagem — seu
nulo
ranger na memória:
o
nome que se lhe desse
(a
ênfase que se lhe desse),
toda
a importância que tinha.
O LOUCO
O
louco que me sonho talvez seja,
na
sucessão de imagens em que o sono
se
desenrola, em seu turvo abandono,
aquele
que me espreita e me deseja
e
não tem corpo ou voz entre o que eu veja
no
dia claro, todo maio e outono,
todo
a luz dominante e o seu entono,
mas
que, no escuro, à noite o olvido enseja.
O
louco vem à noite e me repõe,
fora
da pretensão de eu ser somente
o
fantasma desperto que o supõe:
me
inventa inusitado de repente,
de
costas para o engano em que pensei
estar
sujeito ao dia e à sua lei.
PUXADO PARA
FORA
Pegam
meu fantasma
e
o denunciam
ao
antropólogo
Não
deixam pedra sobre pedra.
Estilhaçam
meus vidros.
Pegam
minhas mãos
e
vão mostrá-las
ao
quiromante.
Quando
estou em repouso
me
arrancam de meus lençóis,
me
arrastam
para
fora de minha toca
(arruínam
minha cegueira e meu caos)
e
vão distribuir-me
entre
os leopardos.
Onde
existo
não
admitem que eu fique:
não
admitem que eu pare. —
Aos
pedaços,
retiram-me
de minha tumba
e
com meu ouro esquartejado
vão
alimentar
os
seus pardais eruditos.
Nem
dia, nem noite —
nada,
absolutamente: nenhuma paz.
Pegam
minha silhueta e a subvertem.
E,
com minha fisionomia destroçada,
vão
exibir-me
na
Babilônia.
PESADAMENTE
Dormi,
paquidermicamente, na noite injusta,
mergulhado
num sono invisível
que
eram apenas sonhos invisíveis,
dos
quais mal me recordava ao despertar.
Dormi,
como se quisesse existir ao contrário,
como
se quisesse desaparecer
sob
uma massa de esquecimento branco
que não continha a não ser o
esquecimento ―
que
não continha a não ser a ausência
de
mim mesmo em mim mesmo que o sono proporcionou ao cair
(porque
o sono sempre proporciona
esquecimento
e sempre proporciona
uma
ausência de nós mesmos em nós mesmos quando cai).
Ao
despertar não me lembrava de nada,
não
me lembrava de ter dormido
(porque
dormir não é uma coisa de que nos lembremos ao [despertar,
dormir
apenas nos prepara para a luz,
nos
renova para as horas em que nos esquecemos de ter dormido
e
em que vivemos como se não houvesse dormir,
lançando-nos
para diante
como
se nada disso importasse)
paquidermicamente,
pesadamente,
como
só uma pedra pode dormir
no
fundo de um poço.
Pesadamente,
escuramente,
como
quem despe uma roupa,
como quem deita fora um entulho ―
sendo
eu mesmo esse entulho
que
deitei fora para dormir.
COMO SE
Asa
pássaro.
Asa
que pudesse
prescindir
do pássaro
e
completar sozinha
seu
voo ao redor
do
segredo.
Voo
que
pudesse prescindir da asa
e
lançar-se
repleto
de si mesmo
para
um céu de safira e ouro
onde
a potência e a liberdade
fossem
irmãs do mistério.
Céu
que de si mesmo
se
bastasse
e
prescindisse do voo
para
manifestar ao olho
o
seu esplendor
(a
sua luz de todos os dias) —
a
sua chama.
Sonho
que
devolvesse ao pássaro
a
sua potência de voo,
não
convertida numa asa,
mas
feita de nuvem e altura,
a
pairar por cima
de
todos os ares.
Instantes
que pudessem
prescindir
da coisa, que pudessem
precipitar-se
sozinhos
para
o futuro:
cheios
das cores do futuro
e
dos caminhos que o futuro
prepara
na intimidade
do
caos.
E
não o vácuo
ou
o rochedo atado ao vácuo,
ou
o pensamento do vácuo
que
almeja crescer no desejo,
mas
esbarra na pedra
e
vai dormir vazio na solidão.
(Não
a quimera de uma boca
avistada
ao longe,
na
qual se faz uma aposta
e
sobre a qual
se
deposita uma esperança
que
é como um pequeno fio
unindo
as duas pontas do caos.)
Não
o estares aí,
sozinho,
a olhar a pedra,
a
olhar a praia à distância,
com
a tua boca
que
tenta chegar ao topo,
que
tenta alcançar,
mas
tropeça
e
cai
como
um Ícaro qualquer
em
direção ao silêncio.
DO LADO OPOSTO
Do
lado oposto é só sombra.
Mas
deste lado, visível,
abençoado
pelo brilho
de
uma primavera franca,
é
suave, exato, possível.
Do
lado oposto mergulha
no
mistério dissentâneo
daquilo
que é sem pergunta
e
se alonga treva adentro,
como
um rio subterrâneo;
mas
deste lado, tangível,
sob
a luz que dá contorno
e
recorta cada forma
contra
a diurna duração,
é
simples, nítido, morno.
Do
lado oposto é distância
que
não se contém nas horas
e
se duplica entre insônias
e
apreensões que não se aplacam
sob
o leite das demoras;
mas
deste lado, onde vige
a
azul norma da estação,
é
uma pele, um dorso calmo
que
se pode dar ao olho,
se
pode afagar com a mão.
MENDIGO
Mendigo.
Esqueceu o mundo.
Foi
pedir asa ao tufão.
Foi
pedir ao vento fundo
uma
esmola que era e não.
Foi
buscar à fantasia
do
seu torto desejar
uma
forma que a luz fria
não
podia revelar.
Foi,
batido pelo vento
e
pela chuva, no inverno ―
tocado
só de momento
e
de um baço fogo interno
(como
quem vai, pressuroso,
ao
encontro de um sonhado
rei
benigno e dadivoso,
na
esperança de um mandado) ―
pedir
ao raio e à procela,
ao
granizo e à ventania,
uma
prenda rara e bela
que
o futuro lhe devia
(e
que nunca lhe pagou,
embora,
entre as mil arestas
contra
as quais se machucou,
como
entre arcos e florestas,
certa
consciência insegura
lhe
tenha dado, afinal,
de
que a vida assim se apura
e
disso tira um sinal). ―
Mendigo.
Esqueceu o jogo
em
que o mundo farandola,
e
foi levar-lhe o seu rogo.
Foi
lhe pedir uma esmola.
PRESTES A CAIR
Não
há prêmio que valha a pena,
nem
justiça que satisfaça
ou
me guarde contra os punhais
do
vento, que me descompassa —
prestes
a cair de mim mesmo.
Agarro-me
ao ar e não penso:
já
sem vela, mastro e timão,
num
esforço de manobrar
que
dura só o tempo da ação
(prestes
a cair de si mesmo).
Mas
que sei? — Aprumo-me. E venho
cruzando,
sobre um bambo fio,
o
mar turvado da hora morna,
que
desdenha o meu desvario
(prestes
a cair de si mesmo).
Firmo-me
nisto, sem esteio,
e
tento amarrar uma ponta
do
pensamento — ou fímbria, ou trapo
de
resposta, com que a alma conta,
antes
de cair de si mesma.
Não
há norte que valha a pena
alcançar,
para além do oceano:
e
o céu não atrasa os punhais
da
tempestade, onde me dano —
prestes
a cair de mim mesmo.
A
hora é morna — oceano peco.
E
nela vou, trôpego e lento:
preso
a um nada de compromisso
que
mal cabe num pensamento
(prestes
a cair de si mesmo).
CANÇÃO DOS QUARENTA
E SETE ANOS
Isto
que em nós se alastra
e
não sabemos bem
se
é só uma água de tédio
ou
um incêndio, e vem
crescendo
contra nós
até
o transbordamento,
até
a final mudez,
na
curva do momento;
isto
que nos desnuda
e
nos expõe ao sol
e,
quando chega a sombra,
não
é luz nem farol,
e
se abre em nós, e é chaga
sobre
a nossa impaciência,
ladrando
sono adentro,
por
incapaz de ausência;
isto
que de um extremo
a
outro extremo nos toca,
e
é uma semente incrédula
no
vazio da boca,
e
é um naco de coral
onde
nada nos ama
e
um carinho gorado
no
escuro, onde se inflama;
e
que semelha o gume
de
uma lâmina gasta
rompendo
em nosso sangue
como
um erro que basta —
e
resvala à deriva
sem
ver o litoral
e,
quando atinge o porto,
é
sem cor ou final;
isto
que vem de agosto,
e
se acumula em nós,
formando
grandes pilhas
sobre
os nadas da voz;
pesando
como fardos
sobre
o nervo da espera,
sem
sossego ou sentido
no
oco da primavera;
que
é tudo isto senão
onda
a morrer na areia,
ou
sílaba do acaso
num
canto de sereia;
ou
caminhar às cegas
por
algum litoral,
marchando
lentamente
sobre
dunas de sal?
Isto
que vem de agosto
como
uma água, uma enchente,
crescendo
sobre a tarde
lenta
e incorretamente,
e
que, antes de atingida
a
meta que propôs
o
nosso pensamento
naufragado
em após,
inundou
com o seu peso
e
a sua densidade
nosso
fraco desejo
de
asa e velocidade
(como
se nele aos poucos
fosse
depositando
um
sedimento de erro
sobre
as horas pesando),
e
não abre uma porta
nem
aponta o caminho
(que
se vence aos tropeços,
indo
às cegas, sozinho),
e
não tem no seu fundo
de
preguiça e fadiga,
de
lentidão e trave,
um
aviso de “siga”
(um
aviso de “alcance”,
qualquer
que seja o caso,
qualquer
que seja a vaza
ou
o matiz do acaso),
e
é como um nome próprio,
e
é ver o próprio rosto —
nos
olhando, impossível,
num
espelho de agosto:
mirando-nos,
de vidro
(máscara
de talvez),
no
fundo desse espelho,
entre
cãs e porquês
(e
pronunciando, à noite,
uma
inútil pergunta
à
qual de poeira e cinza
um
punhado se junta) —
que
é tudo isto senão
os
restos do tornado
ou
destroços da chuva
que
o olho enxerga, embargado
por
esquisita névoa
de
esquecimento e pressa
a
que a espera aborrece
e
ir somente interessa?
(Que
sabemos?) Agora,
nesta
curva que não
leva
a parte nenhuma,
que
não é direção,
que
não é ter um mapa
sobre
a palma, qualquer,
ou
bússola de sonho
ou
vazio entender
o
curso das estrelas
sobre
a abóboda azul
que
veste a noite vasta,
desde
o norte até o sul
(que
sabemos?), agora
que
a coragem fracassa
e
a voz tarda e trepida
entre
o vento e a fumaça —
isto
é nada: é ter vindo
sem
aviso ou convite,
para
um falhado encontro
que
só o sonho admite:
e
ter chegado cedo
(sendo
tarde o bastante)
para
um vão compromisso
na
pétala do instante;
e
é chuvoso, e se alastra
sobre
o dia, e nos vem,
como
uma água de tédio,
que
não sabemos bem;
como
um incêndio, um fogo
ardendo
em nós e contra
nossa
boba constância
que
a cada passo encontra
um
obstáculo novo,
um
muro novo, sobre
o
qual, olhando bem,
um
corvo se descobre,
uma
voz repercute
de
brisa e de ninguém
(a
dizer-nos, tardia,
que
nada nos convém,
que
importa persistir
até
a medula do osso,
até
o centro da náusea,
com
o seu duro caroço). —
Isto
vem e desnuda
em
nosso pensamento
uma
evidência seca
de
inútil ardimento —
de
clara decepção
convertida
em memória,
que
é pluma em pleno vácuo,
onde
em vão se balança;
e
é sílaba do acaso,
ou
canto de sereia,
ou
deriva, e umidade,
e
onda a morrer na areia.
*****
RENATO SUTTANA (Barbacena/MG, 1966).
Poeta, ensaísta e tradutor. Autor de Conversa de Espantalhos (2012) Bichos
imaginários (2013), Rapinário (2015), Diário de Buenos Aires
(2016), Quando me abriram portas (2016), Altiplano (2017) e A
máscara (2017). Página ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan
(Jamaica, 1961), artista convidada desta edição.
*****
Agulha Revista de
Cultura
Número 113 | Maio de 2018
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Muito bom!
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