A paisagem
joga com nossa memória. Transborda seus labirintos, a escola de asas do abismo,
o estojo secreto de enigmas com que nos desafia a percorrer túneis e bosques,
despenhadeiros e atalhos, minas e aguaceiros. Os truques que simulam infinidade
de caminhos. A memória aturdida no centro desse ardil. De quantas maneiras,
afinal, o mundo se repete em cada curva, em cada sombra surgida entre uma e
outra árvore? O que lemos ontem quando passamos por ali? Ou acaso jamais aqui
estivemos?
Ler parecia uma tarefa simples. Apenas reunir os
sinais andarilhos da paisagem, as fontes distraídas da memória. Ao abrir-se a
mão vislumbrar ali o mapa da mais sedutora de todas as quimeras. Ler o teu
corpo inteiro a partir desse mínimo gesto. Ler como quem nutre o tempo de novas
passagens de um estreito a outro do infinito. Sem deixar que os demais sentidos
se confundam ou percam a centelha de sua entrega. Ler o imaginário requer
refazer-se com ele a cada linha percorrida, a cada letra antevista em seu movimento
furtivo.
A música ouve a si mesma enquanto trafega de um
instrumento a outro. Manto insuspeito de peles. Pequenas estradas que se
multiplicam melodia adentro. Santos que bordam ritmos, notações oníricas,
fantasias do fogo. A memória masca sua delirante partitura. O que ouvimos não
se repete. O insondável, no entanto, nos visita com uma intimidade de rios
intensamente navegados. Fábulas do sangue dentro da noite. Os filhos que se
espalham pela terra.
Há um ponto em que se irmanam as forças secretas que
movem o mundo. A paisagem confunde-se com a memória em um jogo amoroso. Toda a
poesia anunciada como uma hemorragia de imagens à espreita do gozo dos
sentidos. Os lugares nós os identificamos, anotamos seus nomes em um mapa de
vertigens: países, tradições líricas, truques renovados. Um novo continente
desenha corpo e sombra do que jamais foi possível deixar de ser. Talvez o
chamemos de América Hispânica apenas para melhor compreendermos seus capítulos,
a artimanha de seus enredos. Porém seu nome será sempre outro. Ainda que o
sangue que lhe irriga a existência seja a língua espanhola, serão distintas as
virtudes colhidas, distintas as visões alcançadas a cada estação.
A terra se inflama ao descrever as contas de seus
mundos percorridos, avistados, vividos, ansiados. Nada se furta a um novo
domínio de sensações. Mesmo que eu passe por aqui infinitas vezes será sempre
outro o lugar. Não importa que chamemos essa estalagem de Internet. O nome
facilita uso e abuso das formas, inclusive o desgaste da origem. Uma fagulha de
imprecisão, um desafio ao imprevisto. Que seja este o nome: Internet. Por aqui
passaremos como reflexos irrepetíveis. Aqui deitaremos a semente ígnea daquele
outro ponto que identificamos por América Hispânica.
Deixemos que se reconheçam nas vísceras uma da
outra: paisagem e memória, que se entredevorem e se refaçam sem perder o gosto
pelo abismo. Voltemos aqui uma e outra vez. Não contemos as pedras do retorno.
Apenas cuidemos de não deixar de vir aqui. Também nós seremos sempre outros a
cada visita. Este mundo – nosso mundo – não se esgota.
Abraxas.
[Agulha
Hispânica # 1]
As
formas se buscam no escuro, se atraem, jogam com suas essências em um bordado
de ramos e veias. Confabulam suas vertigens aprendidas a pleno abismo. Cantam
sempre a última canção. As formas, se não sabem ao menos intuem, intuem as
preciosas, que não possuem outro corpo senão o traje único com que frequentam
nossas vidas. As formas assim se sentem bem, e se empenham em ser mais
nitidamente o que são. As formas falam e não nos deixam sem saber o que
desejam.
É preciso localizá-las, as formas, em suas variadas
maneiras de ser. Quando se risca um fósforo, toca uma pele, amordaça alguém –
saem formas de toda parte. As que julgamos não nos dizerem respeito, as que
esmolamos por sua atenção, as que usamos contra as demais. As cidades emergem
de nosso íntimo como uma revelação. Muitas formas não necessitam plano. Os
ciclos naturais com que a vida se extingue, no entanto, passam a desconfiar de
sua naturalidade. O milagre também tem seus pudores, suas formas secretas.
Planejar formas tornou-se uma atividade criminal. O
mito desconhece seus princípios. É de se supor que muitos não façam a menor ideia
do papel que representam. Por sua vez, o homem só esquece que Deus é uma
invenção sua quando necessita transferir a alguém a responsabilidade de seus
atos. A ideia é exatamente esta: jogar com diversos papéis, mesclando
representações, desgastando as formas.
Aos poucos as formas vão perdendo ancestralidade.
Acatam ou rejeitam uma filiação de destroços. O homem converte o desastre em
criação. Esta é sua obra, não importam os escombros. As formas aprendem
rapidamente e sabem que o teatro da representação não dispõe de tantos lugares
ou mesmo contrato para sessões infinitas. O mundo se esgota em si mesmo –
máxima que se repete até apagar-se por completo.
As formas deixadas para trás o são a cada segundo.
Quase todas se reagrupam, porém algumas cobram atenção pela função não cumprida.
Como livrar-se delas é curiosamente uma preocupação de quem as criou. Talvez
estabelecer novas regras para a representação. Talvez simplesmente esquecer
tudo isto. Talvez já ninguém dê importância ao que se passa. O problema assim
estaria contornado. Novas formas seriam bem vindas.
As cidades são destruídas de muitas maneiras. Por
um terremoto ou uma explosão demográfica. E como muitas cidades são destruídas
a cada instante, criamos uma escala de valores. O jogo é tão bem disposto que a
dor de uma destruição requer para si mais atenção que a outra. Uma dor anula
outra. As dores não são formas aliadas. O homem aceita a múltipla falência de
órgãos, porém rejeita conciliar céu e inferno em sua barbárie irrevogável.
Os desastres possuem características próprias. O
sofrimento humano é quem as define. A insistência na permanência de um governo
autoritário. A sagacidade de um governo democrático em perpetuar-se em
substituição de um mandatário. A distração que nos leva a crer na irrisória
importância de tal crédito. As formas sem saber ao certo as regras do jogo.
As formas somos nós. O homem somos nós. Nada a Deus
pertence.
Abraxas.
[Agulha
Hispânica # 2]
É possível
que muitos nomes tenham se perdido porque não havia como atender quando foram
evocados. Muitos até agora talvez desconheçam onde se encontram. A maneira com
que suas vozes se contorcem dói no íntimo da noite. Ali buscamos um outro nome
para cada coisa perdida. A dor realimenta suas preces, porém nada evita que
sejam tratados com intolerável distância. Sempre esquecemos que é justamente
onde os fatos se repetem que preservamos nossa essência. Como as vozes dentro
de cada nome perdido, o sofrimento que elas levam consigo e se repete como uma
linguagem que desaba incansavelmente.
Tudo aquilo que soletramos com todo o espírito,
enquanto o presente por vezes apenas se desgasta em nossas mãos, tudo isto a
que chamamos criação, não contraria essa ideia. Como se estivéssemos sempre
reeducando velhas imagens, para que não deixem nunca de ser o que são. Corpos
desnudos sobre a pedra quente. Formas pintadas que vão perdendo seus ângulos.
Quantas vezes a aparência joga conosco para que creiamos no princípio aleatório
que nos legitima! Tudo o que vemos se deforma, em nome do desejo ou da memória.
Ouçam os nossos nomes. As pedras com que vamos
clareando a noite. As expressões que caminham para o tumulto de seus
propósitos. O verbo se desmembrando em novas obsessões. Por onde passamos
muitas coisas mais e mais se parecem com nossas sombras. Contudo, não há
absurdo maior do que a semelhança. Há que descrever o abismo antes que se
desfaça de suas partes mais fecundas. Pintar-lhe o retrato incansavelmente para
que não se sinta sozinho. Evitar ao instinto a sensação de abandono.
Repetir os elementos para que se movam e não
apodreçam. Para que não esqueçam os nomes perdidos ou suas pernas ou suas
línguas. Para que os rostos apagados não sejam motivos de recuo. Não há outra
maneira de entrar em casa e ali existir. Assim é que saímos por toda a parte a
preparar a refeição de outros duplos e sombras que se reúnem em volta da mesma
pedra. Assim revisamos intimamente os capítulos que devem ser reescritos, as
vinhetas inúmeras que não devem cessar seu testemunho.
Assim o livro não se esgota nem o abismo chega ao
fim.
Abraxas
[Agulha
Hispânica # 3]
Quando
se abre a janela e é mar tudo o que vemos não há senão como deixá-lo entrar.
Repleto de relíquias que foram cavadas no espírito das tempestades. O mar e sua
tinta corrosiva com a qual escreve o relato de fantasmas os mais insondáveis.
Por uma dessas frestas nos surpreendem as melhores histórias. Quando os ventos
não se preocupam com o nome dos santos e sim unicamente com a natureza do
milagre. Pequena pedra que encontramos no bolso do acaso. Sua pele oculta um mistério
que talvez contado de outro modo jamais seria percebido. O mistério é uma
encruzilhada.
Quando cruzamos o mar que acabara de entrar pela
janela e o que vemos se parece com uma fogueira não há senão como deixá-la
entrar. Escadaria perene de vislumbres que foram pescados no espírito dos
maremotos. O fogo e suas bailarinas graciosas cujas pernas escrevem no dorso do
tempo os desejos mais entranháveis. Quando o ferro não se preocupa em ferir a
quem seja. Braseiro confabulado no íntimo da voz que nos sugere outra maneira
de visitar o mistério. O fogo reconhece a si mesmo em tudo quanto toca.
Quando animamos o carvão em seu curso e um banco de
areia inunda o que vemos não há senão como deixá-la entrar. Tropel de pérolas
cerzidas em mosteiros que foram naufragados no espírito dos vendavais. A terra
e sua colmeia de abismos cujos grãos somam a descrição de tudo quanto a memória
rascunhou a bordo do vazio. Quando as galinhas soletram uma dentição invisível.
O mistério engatinha e já o antevemos luzindo suas asas. Onde está o homem
soluça uma vertente de poços com tabuletas ilegíveis à entrada. O vento
desconhece o próprio nome.
Quando a terra se desconhece por completo e sopra
no olhar umas formas irreconhecíveis que julgamos ser tudo menos o vento não há
senão como deixá-lo entrar. Santuário de peças cuja origem foi refeita no
espírito do esquecimento. Respiramos alheios ao mecanismo das vertigens. Toda
forma deve considerar a possibilidade de mudar de forma. A essência é um rio
com seu percurso mágico de alturas. Não há vôo mais alto que não seja uma
queda. O pulmão é inominável.
Quando? Agora? Não importa. Abrimos uma janela e
adentra o sol, o mar, a nuvem, a poeira. O que deve ser percebido é a entrada
em si. A fresta. A maneira com que vislumbramos o mundo. Como o recebemos. Sem
o abecedário. Quando pensamos na tríade arte | religião | ciência, logo vemos
que para existir deve ser processada em um ambiente quádruplo: terra | ar |
fogo | água. Tudo isto para que a assimilação seja feita em um terreno quíntuplo:
os sentidos humanos. Recordemos? Imagem, cheiro, carne, tempero, som. Por um
entranhável grau de insatisfação fomos dar no quinto elemento e no sexto
sentido. A tríade inaugural permaneceu. Nada vai além dela. E as pobres meninas
começaram a confabular entre si. Tão pobrezinhas não sabiam o que fazer para ir
um pouquinho mais além e inventar a quinta pata da mesa. Não queriam mais
trocar ideias entre si.
Eis aí um mistério. Não sabemos nada depois dele.
Não o questionamos. Não há mais nenhuma janela. Repetimos máximas. Símios de
uma filosofia perdida no tempo cuja aplicação nunca resultou em algo que a
superasse. Somos a única humanidade que temos. Há muito tempo. Demasiado tempo.
Abraxas
[Agulha
Hispânica # 6]
O que necessitamos está bem diante dos olhos, porém
foi perdendo forma, cor, substância, noção de suas particularidades, e logo
fomos nós a ir perdendo o mesmo em partes iguais, o cenário se desfazendo de
tal maneira que hoje é um espaço vazio sem a consciência de si. Com a desculpa
de que o mundo se converteu em um lugar de sobrevivência, fomos tragando tudo à
nossa volta, acumulando componentes descartáveis, reservas de mercado falido,
prateleiras de biodegradáveis, amores vencidos. Desprezamos o ouro do instante,
propagamos nossa miséria de espírito como uma nova joia, a doutrina do nada
mais me importa. Graças a ela podemos desamparar, esquecer, desprezar, sonegar,
matar, ocultar pistas, considerar a inocência um truque.
Na verdade, o espaço vazio é a nossa melhor técnica
de sobrevivência, a ilusão de um mundo que a todo instante muda de forma,
regra, conceito, sabor, tablado de metamorfoses perenes cujo princípio é
converter paraíso em inferno e vice-versa, desorientar a mínima ideia do que é
certo ou errado, estontear as vítimas, garantir esse manto de neblina sobre
todos os crimes. Burlar-se, enganar, subornar, fingir, despistar, sempre o cinismo
como ortodoxia ou fundamentalismo. Já não importa que a mão por trás seja da
religião, da arte, da política, da ciência, da lei.
E a dor, a dor sinistra por detrás de tudo, a dor
maiúscula que foi perdendo suas dimensões, culpa, vergonha, consciência,
respeito próprio, a dor incapaz de uma reação, a pior de todas as desculpas, a
dor das coisas se perdendo, o medo da dor aumentar, o crime em nome do medo, a
traição em nome do medo, o assalto em nome do medo, a corrupção pelo medo, a
quebra de sigilo, a falência múltipla de sentidos, metástase do espírito. A dor
como único vilão levado a júri, inocentado apesar do perjúrio, livre para
voltar ao palco.
Este curioso personagem ainda se chama homem. Não
se sabe mais o que representa. É um script sem deuses, mitos,
princípios, moral de espécie alguma, apenas o espaço vazio. Nem mesmo uma
cadeira. Não há como levar a mão à cabeça e chorar. Uma gota de silencia e já é
possível notar o sorriso cínico nascendo na linha de seus lábios. Voltará a
chamar a tudo isto de instinto de sobrevivência. Não conhece outro argumento.
Tratará de mobiliar o espaço vazio com novos pontos de ilusão, os velhos ardis
da eternidade. Multiplicará vítimas por todo o cenário. É só o que sabe fazer.
Está ciente de que não veio ao mundo para outra coisa.
O que necessitamos permanece diante dos olhos.
Abraxas
[Agulha
Hispânica # 10]
***
El paisaje juega con nuestra
memoria. Trasborda sus laberintos, la escuela de alas del abismo, el cofre
secreto de enigmas con que se nos desafía a recorrer túneles y bosques,
despeñaderos y atajos, minas y aguaceros. Los rieles que simulan infinidad de
caminos. La memoria aturdida en el centro de esa trampa. ¿De cuántas maneras,
finalmente, el mundo se repite en cada curva, en cada sombra surgida entre los
árboles? ¿Qué leímos ayer cuando pasamos por allí? ¿O acaso jamás estuvimos?
Leer parecía una tarea simple.
Apenas reunir los signos vagabundos del paisaje, las fuentes distraídas de la
memoria. Al abrirse la mano vislumbrar allí el mapa de la más seductora de
todas las quimeras. Leer tu cuerpo entero a partir de ese mínimo gesto. Leer
como quien nutre el tiempo de nuevos pasajes de un estrecho a otro del
infinito. Sin dejar que los demás sentidos se confundan o pierdan el brillo de
su entrega. Leer el imaginario requiere rehacerse con él a cada línea
recorrida, a cada letra visualizada con anterioridad en su movimiento furtivo.
La música se oye así misma
mientras transita de un instrumento a otro. Manto insospechado de pieles.
Pequeñas calles que se multiplican melodía adentro. Santos que bordan ritmos,
ecuaciones oníricas, fantasías de fuego. La memoria masca su delirante
partitura. Lo que oímos no se repite. Lo insondable, mientras tanto, nos visita
con una intimidad de ríos intensamente navegados. Fábulas de sangre dentro de
la noche. Los hijos que se esparcen por la tierra.
Hay un punto en que se
hermanan las fuerzas secretas que mueven el mundo. El paisaje se confunde con
la memoria en un juego amoroso. Toda la poesía anunciada como una hemorragia de
imágenes a la espera del goce de los sentidos. Los lugares nosotros los
identificamos, anotamos sus nombres en un mapa de vértigos: países, tradiciones
líricas, carriles renovados. Un nuevo continente dibuja cuerpo y sombra de lo
que jamás fue posible dejar de ser. Tal vez lo llamemos América Hispánica
apenas comprender mejor sus capítulos, la artimaña de sus enredos. Sin embargo
su nombre será siempre otro. Aunque la sangre que la alimente sea la lengua
española, serán distintas las virtudes cosechadas, distintas las visiones en
cada estación.
La tierra se inflama al
describir las cuentas de sus mundos recorridos, avistados, vividos, ansiados.
Nada se le quita a un nuevo dominio de sensaciones. Aunque pase por aquí
infinitas veces será siempre otro lugar. No importa que llamemos ese hospedaje
Internet. El nombre facilita uso y abuso de las formas, inclusive el desgaste
del origen. Una chispa de imprecisión, un desafío al imprevisto. Que sea este
el nombre: Internet. Por aquí pasaremos como reflejos irrepetibles. Aquí
dejaremos la semilla ígnea de aquel otro punto que identificamos por América
Hispánica.
Dejemos que se reconozcan en
las vísceras la una de la otra: paisaje y memoria, que se devoren y se rehagan
sin perder el gusto por el abismo. Volvamos aquí una y otra vez. No contemos
las piedras del retorno. Apenas cuidemos de no dejar de venir aquí. También
nosotros seremos siempre otros en cada visita. Este mundo –nuestro mundo–
no se agota.
Abraxas.
[Agulha Hispânica # 1]
Las formas se buscan en lo
oscuro, se atraen, juegan con sus esencias en un bordado de ramificaciones y
venas. Confabulan sus vértigos aprendidos en pleno abismo. Cantan siempre la
última canción. Las formas, si no saben al menos intuyen, intuyen las que son preciosas,
que no poseen otro cuerpo sino el traje único con que frecuentan nuestras
vidas. Las formas así se sienten bien, y se empeñan en ser más nítidamente lo
que son. Las formas hablan y no nos dejan sin saber lo que desean.
Es preciso localizar las
formas, en sus variadas maneras de ser. Cuando se enciende un fósforo, toca una
piel, amordaza a alguien –salen formas de todas partes. Las que juzgamos no
expresaron respeto, las que le pedimos su atención, las que usamos contra las
demás. Las ciudades emergen de nuestro interior como una revelación. Muchas
formas no necesitan plan. Los ciclos naturales con que la vida se extingue,
mientras tanto, pasan a desconfiar de su naturalidad. El milagro también tiene
sus pudores, sus formas secretas.
Planear formas se tornó una
actividad criminal. El mito desconoce sus principios. Es de suponerse que
muchos no tengan idea del papel que representan. A su vez el hombre sólo
recuerda que Dios es una invención suya
cuando necesita transferir a alguien la responsabilidad de sus actos. La
idea es exactamente esta: jugar con diversos papeles, mezclando
representaciones, desgastando las formas.
Poco a poco las formas van
perdiendo ancestralidad. Acatan o rechazan una filiación de destrozos. El
hombre convierte el desastre en creación. Esta es su obra, no importan los
escombros. Las formas aprenden rápidamente y saben que el teatro de la
representación no dispone de tantos lugares o también contrato para sesiones
infinitas. El mundo se agota en sí mismo – máxima que se repite hasta borrarse
por completo.
Las formas dejadas atrás lo
son cada segundo. Casi todas se reagrupan, sin embargo algunas cobran atención
por la función no cumplida. Cómo librarse de ellas es curiosamente una
preocupación de quien las creó. Tal vez establecer nuevas reglas para la
representación. Tal vez simplemente olvidarse de todo esto. Tal vez ya nadie de
importancia a lo que pasa. El problema estaría esquivado. Nuevas formas serían
bienvenidas.
Las ciudades son destruidas de
muchas maneras. Por un terremoto o una explosión demográfica. Y como muchas
ciudades son destruidas a cada instante, creamos una escala de valores. El
juego es tan bueno que el dolor de una destrucción requiere para sí más atención
que la otra. Un dolor anula a otro. Los dolores no son formas aliadas. El
hombre acepta la múltiple falencia de órganos, sin embargo rechaza conciliar
cielo e infierno en su barbarie irrevocable.
Los desastres poseen
características propias. El sufrimiento humano es quien las define. La
insistencia en la permanencia de un gobierno autoritario. La sagacidad de un
gobierno democrático en perpetuarse en substitución de un mandatario. La
distracción que nos lleva a creer en la irrisoria importancia de tal crédito.
Las formas sin saber realmente las reglas del juego.
Las formas somos nosotros. El
hombre somos nosotros. Nada pertenece a Dios.
Abraxas.
[Agulha
Hispânica # 2]
Es posible que muchos nombres
se hayan perdido porque no había como atenderlos cuando fueron evocados. Muchos
hasta ahora tal vez desconozcan donde se encuentran. La manera con que sus
voces se contorsionan duele en lo íntimo de la noche. Allí buscamos otro nombre
para cada cosa perdida. El dolor realimenta sus súplicas, sin embargo nada
evita que sean tratados con intolerable distancia. Siempre olvidamos que es
justamente donde los hechos se repiten que preservamos nuestra esencia. Como
las voces dentro de cada nombre perdido, el sufrimiento que ellas llevan
consigo y se repite como un lenguaje que se desmorona incansablemente.
Todo aquello que deletreamos
con todo el espíritu, mientras lo presente a veces apenas se desgasta en
nuestras manos, todo esto que llamamos creación, no contradice esa idea. Como
si estuviésemos siempre reeducando viejas imágenes, para que no dejen nunca de
ser lo que son. Cuerpos desnudos sobre la piedra caliente. Formas pintadas que
van perdiendo sus ángulos. Cuántas veces la apariencia juega con nosotros para
que creamos en el principio aleatorio que nos legitima! Todo lo que vemos se
deforma, en nombre del deseo o de la memoria.
Oigan nuestros nombres. Las
piedras con que vamos clareando la noche. Las expresiones que caminan hacia el
tumulto de sus propósitos. El verbo desmembrándose en nuevas obsesiones. Por
donde pasamos muchas cosas más y más son parecidas a nuestras sombras. Con
todo, no hay absurdo mayor que la semejanza. Hay que describir el abismo antes
que se deshaga de sus partes más fecundas. Pintarle el retrato incansablemente
para que no se sienta solo. Evitar al instinto la sensación de abandono.
Repetir los elementos para que
se muevan y no se pudran. Para que no olviden los nombres perdidos o sus
piernas o sus lenguas. Para que los rostros apagados no sean motivo de
retroceso. No hay otra manera de entrar en casa y allí existir. Así es que salimos
por todas partes a preparar el alimento de otros dobles y sombras que se reúnen
en torno de la misma piedra. Así revisamos íntimamente los capítulos que deben
ser reescritos, las innumerables viñetas que no deben cesar su testimonio.
Así el libro no se agota ni el
abismo llega al fin.
Abraxas
[Agulha
Hispânica # 3]
Cuando se abre la ventana y
es mar todo lo que vemos no hay si no que dejarlo entrar. Repleto de reliquias
que fueron cavadas en el espíritu de las tempestades. El mar y su tinta
corrosiva con la que escribe el relato de fantasmas los más insondables. Por
una de esas rendijas nos sorprenden las mejores historias. Cuando los vientos
no se preocupan con el nombre de los santos y sí únicamente de la naturaleza
del milagro. Pequeña piedra que encontramos en el bolsillo del azar. Su piel
oculta un misterio que tal vez contado de otro modo jamás sería percibido. El
misterio es una encrucijada.
Cuando cruzamos el mar que
había acabado de entrar por la ventana y lo que vemos se parece a una hoguera
no hay si no que dejarla entrar. Escalinata perenne de vislumbres que fueron
pescados en el espíritu de los maremotos. El fuego y sus bailarinas graciosas
cuyas piernas escriben en el dorso del tiempo los deseos más entrañables.
Cuando el hierro no le importa herir a quien sea. Brasero confabulado en lo
íntimo de la voz que nos sugiere otra manera de visitar el misterio. El fuego
se reconoce a sí mismo en todo cuanto toca.
Cuando animamos el carbón
en su curso y un banco de arena inunda lo que vemos no hay si no que dejarlo
entrar. Tropel de perlas zurcidas en monasterios que fueron naufragados en el
espíritu de los vendavales. La tierra y su colmena de abismos cuyos granos
suman la descripción de todo cuanto la memoria esbozó a bordo del vacío. Cuando
las gallinas deletrean una dentición invisible. El misterio gatea y ya lo
antevemos luciendo sus alas. Donde está el hombre solloza una vertiente de
pozos con tablillas ilegibles a la entrada. El viento desconoce el propio
nombre.
Cuando la tierra se
desconoce por completo y sopla en la mirada unas formas irreconocibles que
juzgamos ser todo menos el viento no hay si no que dejarlo entrar. Santuario de
piezas cuyo origen fue rehecha en el espíritu del olvido. Respiramos ajenos al mecanismo
de los vértigos. Toda forma debe considerar la posibilidad de cambiar de forma.
La esencia es un río con su curso mágico de alturas. No hay vuelo más alto que
no sea una caída. El pulmón es innombrable.
¿Cuándo? ¿Ahora? No
importa. Abrimos una ventana y entra el sol, el mar, la nube, el polvo. Lo que
debe ser percibido es la entrada en sí. La rendija. La manera con que
vislumbramos el mundo. Como lo recibimos. Sin el abecedario. Cuando pensamos en
la tríade arte - religión - ciencia, pronto vemos que para existir debe ser
procesada en un ambiente cuádruple: tierra - aire - fuego - agua. Todo esto
para que la asimilación sea hecha en un terreno quíntuple: los sentidos
humanos. Recordemos? Imagen, olor, carne, condimento, sonido. Por un entrañable
grado de insatisfacción fuimos a dar en el quinto elemento y en el sexto
sentido. La tríade inaugural permaneció. Nada va más allá de ella. Y las pobres
niñas comenzaron a confabular entre sí. Tan pobrecitas no sabían qué hacer para
ir un poquito más allá e inventar la quinta pata de la mesa. No querían
más intercambiar ideas entre sí.
He ahí un misterio. No
sabemos nada después de él. No lo cuestionamos. No hay más ventana. Repetimos
máximas. Simios de una filosofía perdida en el tiempo cuya aplicación nunca resultó
en algo que la superase. Somos la única humanidad que tenemos. Hay mucho
tiempo. Demasiado tiempo.
Abraxas
[Agulha Hispânica # 6]
Lo que necesitamos se encuentra delante de los ojos,
pero ha perdido la forma, el color, el contenido, el sentido de sus
particularidades, y pronto nosotros perdimos lo mismo en partes iguales; el
escenario se deshizo de tal forma que ahora es un espacio vacío, sin conciencia
de sí mismo. Con la excusa de que el mundo se convirtió en un lugar de
supervivencia, devoramos todo lo que nos rodea, acumulamos componentes
desechables, reservas de mercado en bancarrota, estantes de biodegradables,
amores rotos. Despreciamos el oro del instante, propagamos la pobreza de
nuestro espíritu como una nueva joya, la doctrina del nada más me
importa. Gracias a ella podemos abandonar, olvidar, ignorar, engañar,
matar, ocultar pistas, considerar a la inocencia como un truco.
De hecho, el espacio vacío es
nuestra mejor técnica de supervivencia, la ilusión de un mundo que cambia todo
el tiempo de forma, regla, concepto, gusto, tablado de perennes metamorfosis,
cuyo principio es convertir el paraíso en infierno y viceversa, desorientar
cualquier idea de lo que está bien o mal, aturdir a las víctimas, asegurar esa
manta de niebla sobre todos los delitos. Eludir, engañar, sobornar, falsear,
siempre el cinismo como ortodoxia o fundamentalismo. Ya no importa que la mano
por detrás sea la religión, el arte, la política, la ciencia, la ley.
Y el dolor, el dolor siniestro
detrás de todo, el dolor mayúsculo que ha perdido las dimensiones, la culpa, la
verguenza, la conciencia, el respeto de sí mismo; el dolor incapaz de una
reacción, la peor de todas las excusas, el dolor de perder las cosas, el miedo
de que ese dolor crezca; en nombre del miedo el crimen, la traición, el asalto,
la corrupción, la violación de la confidencialidad, la insuficiencia múltiple
de sentidos, la metástasis del espíritu. El dolor es el principal villano
llevado a juicio, absuelto sin importar el perjurio, libre para regresar al
escenario.
Este personaje curioso todavía
se llama Hombre. Ya no se sabe qué representa. Se trata de un guión sin dioses,
mitos, principios, una moral cualquiera, sólo espacio vacío. Ni siquiera una
silla. No hay manera de llevarse la mano a la cabeza y llorar. Una gota de
silencio y ya percibimos la sonrisa cínica naciendo en la comisura de sus
labios. Volverá a llamar a todo esto instinto de supervivencia. No tiene otro
argumento. Debe amueblar el espacio vacío con nuevos puntos de ilusión, los
viejos trucos de la eternidad. Se multiplican las víctimas en todo el escenario.
Es simplemente lo que hace. Sabe que no ha venido al mundo para otra cosa.
Lo que necesitamos sigue
delante de los ojos.
Abraxas
[Agulha Hispânica # 10]
[Traducciones
de Gladys Mendía]
El período de enero de 2010 hasta diciembre de 2011 Agulha Revista de Cultura cambia su nombre para Agulha Hispânica, bajo la coordinación editorial general de Floriano Martins, para atender la necesidad de circulación periódica de ideas, reflexiones, propuestas, acompañamiento crítico de aspectos relevantes en lo que se refiere al tema de la cultura en América Hispánica. La revista, de circulación bimestral, ha tratado de temas generales ligados al arte y a la cultura, constituyendo un fórum amplio de discusión de asuntos diversos, estableciendo puntos de contacto entre los países hispano-americanos que posibiliten mayor articulación entre sus referentes. Acompañamiento general de traducción y revisión a cargo de Gladys Mendía y Floriano Martins.
El período de enero de 2010 hasta diciembre de 2011 Agulha Revista de Cultura cambia su nombre para Agulha Hispânica, bajo la coordinación editorial general de Floriano Martins, para atender la necesidad de circulación periódica de ideas, reflexiones, propuestas, acompañamiento crítico de aspectos relevantes en lo que se refiere al tema de la cultura en América Hispánica. La revista, de circulación bimestral, ha tratado de temas generales ligados al arte y a la cultura, constituyendo un fórum amplio de discusión de asuntos diversos, estableciendo puntos de contacto entre los países hispano-americanos que posibiliten mayor articulación entre sus referentes. Acompañamiento general de traducción y revisión a cargo de Gladys Mendía y Floriano Martins.
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