Uma vez que contradigo o real com o irreal Nada é mais injusto que a impossibilidade
Gregory Corso
Em abril de 1971, Allen Ginsberg, jurado da recente edição do National Book Award, publicou no The New York Times Book Review uma carta aberta para Richard Howard, também jurado naquele ano, protestando com veemência pelo fato de Elegiac Feelings American – o mais recente volume de poesias de Gregory Corso – não ter ganho o prêmio. Num momento em que os critérios para avaliar poesia são bastante incertos, vejamos os que elenca Ginsberg na defesa que fez da poesia do amigo face à da ganhadora, a obscura Mona Van Duyn:
Então você está propondo que Mona Van Duyn tem um ouvido melhor que o de Gregory Corso, uma maior economia justapositiva, um senso de invenção mais fértil, uma maior compreensão da história, um maior envolvimento pessoal com a poesia, uma maior feitiçaria no fraseado, uma mais alta metafísica, até mesmo uma mão mais prática? Você perdeu a cabeça? Não tem nenhum senso de modéstia ou proporção em sua monstruosa ambição de reduzir todos os julgamentos de poesia à mediocridade domesticada? Não há nada errado com o livro de Van Duyn, exceto que não é um trabalho de gênio, e não há nada certo com o livro de Corso, exceto que é um trabalho de gênio. [1]
A indignação de Ginsberg não era gratuita, junto com ele próprio e Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso (1930-2001) compõe a trindade de poetas centrais da geração Beat (Kerouac e Burroughs foram essencialmente prosadores). Figura de frente do movimento no momento de sua aparição pública e consolidação entre meados dos 50 e anos iniciais dos 60, é provavelmente o mais inovador – e difícil – dos três. Se por um lado a idiossincrasia e elaboração dos seus poemas, sua inventividade vocabular e uso arcaizante da língua, a densa rede de referências e alusões que emprega contribuem para que seus poemas nem sempre sejam acessíveis a uma leitura rápida; a atenção continuada é plenamente recompensada, seja pelas finezas deliciosas de seus ritmos e jogos sonoros, pelo fraseado verbal excitante, pelo seu humor e imaginação desenfreados ou, finalmente, pelo carisma da personalidade que os informa.
Provavelmente por isso seu trabalho tenha sido capaz de despertar paixões, determinar vocações e continua intenso e cativante passados mais de sessenta anos desde sua aparição inicial. Prova disso é a revalorização que vem ganhando desde o início da década de 90 até hoje em seu país de origem, com a produção de documentários, estudos, dissertações e novas edições do poeta, malgrado um ambiente nem sempre favorável à sua recepção.
AFIADAS TESOURAS DA MENTE | Nascido em Greenwich Village, bairro artístico e boêmio de Nova York, Corso não teve uma vida fácil. Filho de imigrantes italianos pobres, sua mãe o abandonou antes de completar um ano de idade. Passou sua infância em orfanatos e lares adotivos. Teve educação básica e formação católica nas instituições e escolas dominicais por onde passou. Logo no princípio da adolescência foi das ruas às casas de detenção para menores, e destas à cadeia. Preso por roubo, cumpriu pena na prisão de Clinton dos 17 aos 20 anos, onde descobriu os livros e com eles a poesia, que viriam a alimentar sua já consolidada tendência de usar a imaginação para lidar com situações difíceis. Não por acaso, voos imaginários serão a tônica em inúmeros de seus poemas. Em Leitura de Poesia em Colúmbia – 1975, por exemplo, é convocado pela Musa ao parnaso para prestar contas sobre seu uso de drogas; ou em Bomba, onde imagina um “inferno para as bombas”, em que estas “sentam em pedaços e cantam canções” das nações que as haviam detonado.
Outro bom exemplo dessa narratividade delirante recuperada pela poesia corseana (bem ao estilo de Maiakóvski, ao qual não estava alheio), é o poema Transformação & Fuga, constituído da narração de uma viagem imaginária. Nele, Corso chega num céu “excessivamente doce”, onde “tudo cheirava a chocolate queimado” e Deus era um “papel-pega-moscas gigante”. Oprimido e nauseado, o poeta luta para fugir do local, e depois de ser capturado numa perseguição, aproveita um descuido de Deus e rasga o próprio corpo para – espírito – fugir pelas brechas que foram abertas:
(…)
Deus estava ocupado balançando as esferas de uma mão para outra. Era hora. Quebrei minhas mandíbulas. Parti minhas pernas. Me atirei de barriga sobre o arado sobre o forcado sobre a foice. Meu espírito escorreu pelas feridas. Um espírito todo encharcado. Ressurgi da carcaça do meu tormento. Parei no limiar do céu. E juro que o Grande Território tremeu quando caí, livre.[2]
Sátira e paródia são recursos usuais da poesia de Corso. Este céu docemente opressivo pode muito bem ser uma metáfora da vida nos subúrbios da classe média americana. Do mesmo modo, em Casamento, com seu tratamento cômico desta ocasião, Corso faz uma crítica acirrada às bizarrices das convenções sociais; Em, A Bagunça Toda… Quem Sabe, denuncia as grandes abstrações que governam nossas vidas – Verdade, Deus, Esperança – atirando-as todas pela janela de seu apartamento, ficando apenas com o Humor. Corso desconfia, seja de forma alegórica ou declarada, de toda verdade definitiva, de toda ideologia e explicação que se queira definitiva da sociedade e do universo. Conforme atestou em Sobre Minha Recusa em Ser o Arauto de Cuba, acreditava que “existem incontáveis posições para assumir / para acreditar, abraçar, morrer por, / algumas de valor, justas, com propósito –”, mas é “melhor desafiar todos os lados com vibrações despertas / remédios alegres, soluções drásticas ou calmas –”.
Uma descrença e vontade demolidora com relações às ideias que comandam as subjetividades perpassam seus poemas, onde se aliam à compreensão de que tudo que constrange o ser e o impede de aceitar o instante de maneira plena é um mal à vida. Sua poesia valoriza a experiência sensível imediata, não mediada por juízos de valor. Está empenhada em se ver livre de toda limitação de pensamento. Corpo e sentido presentes importam mais que os ambientes mentais pré-fabricados. Em vários lugares, Corso refere-se à imaginação como recurso cognitivo para forçar uma abertura nos sistemas de mundo vigentes, com capacidade para – conforme anota Michael Skau em seu substancioso A Clown in a Grave: [3] – “prover o poder de transcender os limites em direção a uma nova consciência”, conforme aspiraram os Beats a certa altura de sua trajetória.
A TERRA NÃO É SEQUER UMA ESTRELA | Com uma assinalada reverência pela vida, a cosmovisão de Corso parece ter sido influenciada pelo transcendentalismo norte-americano da geração de Emerson, Thoreau e Whitman, [4] professando um anarco-individualismo iconoclasta e libertário, de matiz espiritualista, jamais panfletário e arredio a qualquer filiação. Denota o influxo das correntes de vanguarda, absorvendo técnicas tanto do surrealismo e do dadaísmo como o exemplo romântico de valorização da imaginação como elemento transformador da vida cotidiana. Os poetas românticos ingleses – junto com os gregos clássicos – são influências declaradas. Shelley foi especialmente querido por ele, citado e parafraseado em inúmeros poemas, tais como Eu Segurei um Manuscrito de Shelley, ou, de forma mais velada, em Linhas Escritas em 22-23 de Nov. -1963- em Discórdia, ecoando as Estâncias Escritas Perto de Nápoles, em Depressão, [5] de Shelley, para ficar só em dois exemplos. Matt Hart, em seu ensaioAn Accidental Apreciation, [6] afirma que Corso era “um poeta de vanguarda que…. resgatou valores poéticos tradicionais como Beleza, Expressividade e Sublimidade”.
Em sua poesia final, é elaborado o tema do poeta como “espírito-mensageiro”. Para isso, Corso recorre a um panteão de divindades que simbolizam tal compreensão arquetípica do trabalho poético. Mensageiros dos deuses – cada qual em sua cultura relacionado à escrita e à comunicação entre os reinos divino e humano –, o grego Hermes, o egípcio Thoth e o hindu Ganesha desempenharão papéis importantes em seus poemas. Neles, poetas são seres comprometidos em transmitir uma mensagem divina, ao mesmo tempo em que atestam a realidade deste reino, e são apadrinhados pelos deuses que tradicionalmente efetuaram esse trânsito. Hart afirma que “para Corso, poemas são importantes apenas na medida em que participam dos objetivos ideológicos mais amplos da poesia – que são, nominalmente, nos colocar em contato com nós mesmos, com as outras pessoas e com o mundo; e, finalmente, nos tornar mais vivos ao nos trazer para mais perto do Absoluto”.
Corso tinha uma especial predileção por Hermes, deus central no seu panteão. Esperto e especialmente dotado intelectualmente, além de mensageiro dos deuses Hermes era também patrono dos ladrões, pois, segundo a lenda, roubara ainda recém-nascido as vacas de seu irmão Apolo. Apolo terminou trocando-as com Hermes pela lira, invenção deste, assim dando origem à poesia. Também da predileção de Corso eram os adereços de Hermes, seu elmo, cajado e sandálias alados, chamados, respectivamente, Petaso, Caduceo e Talaria. Sobre esse pano de fundo temático, Corso compôs um dos seus mais belos poemas, intitulado Destino:
Eles entregam os decretos de Deus sem demora E são isentos de apreensão e detenção E com seus Dons Divinos Petaso, Caduceo e Talaria rompem como raios de relâmpago desimpedidos entre os tribunais do espaço e do tempo
O Espírito-Mensageiro no corpo humano é assinalado firme confiante, fecundo, perfeita existência poética ao longo de sua duração na vida
Não bate ou toca a campainha ou telefona Quando o Espírito-Mensageiro vem até sua porta mesmo fechada ele vai entrar como uma parteira elétrica e entregar a mensagem
Não há relatos através das eras de que um Espírito-Mensageiro tenha alguma vez tropeçado na escuridão
SAPATOS FRITOS DIAMANTES COZIDOS | Alguns dos temas ditos universais são centrais na obra de Corso, como a morte e o sofrimento, mas Corso normalmente abordará esses temas com humor, irreverência e leveza, muitas vezes explorando-os a partir de memórias e reminiscências. Dessa forma, sua biografia interessa à sua poesia, tanto na medida em que lança luzes em aspectos obscuros, como pelo fato de muitas vezes ser ela mesma o assunto do poema. Escrito na Véspera do Meu 32º Aniversário, Direto ao Poema e Relato de Incêndio – Sem Alarme, por exemplo, são como que ajustes de contas consigo mesmo, ao mesmo tempo em que espécie de fragmentos de um testamento espiritual nunca concluído. Alguns poemas trazem andanças e memórias eleitas, algumas agradáveis, outras nem tanto, mas que vão fundo na relação de contiguidade e determinação mútua entre o artista e sua arte. Em meados da década de 70, Corso sofria de ataques de pânico, e registrou isso num poema intitulado Como Não Morrer, com seu humor habitual:
Quando estou entre pessoas e sinto que vou morrer me desculpo dizendo “Preciso ir!” “Ir aonde?” querem saber Eu não respondo apenas caio fora para longe deles porque de alguma maneira sentem que há algo errado e nunca sabem o que fazer e lhes assusta essa coisa repentina Como é maçante sentar com as pessoas perguntando: “Você está bem?” “Precisa de algo?” “Quer deitar?” Vós deuses! gente! quem quer morrer no meio de gente?! Especialmente quando não podem fazer porra nenhuma Para o cinema – para o cinema é para onde corro quando sinto que vou morrer Até agora funcionou
Corso também pode ser apontado como precursor da arte pop e do que se convencionou chamar de pós-modernismo, ao utilizar em seus poemas, pioneiramente, ainda no início dos anos 50, recursos que se tornariam lugar comum nas décadas seguintes, como o uso recorrente e determinante de referências tanto da cultura erudita como da de massa. Já em seu livro de estreia, Corso mistura indistintamente alusões que vão da música erudita e da cultura e mitologia grega e egípcia àquelas que se referem ao universo das revistas de moda, quadrinhos, filmes, canções e produtos populares. Para Ginsberg, o que caracteriza Corso como um “artista pop precursor” é “a percepção atenta dos artefatos cotidianos”. [7] Sua predileção por zoológicos, mitologia e quadrinhos, por exemplo, o levaram a escrever este A Diferença Entre os Zoológicos, onde o poder da imaginação de criar monstros é tratado de maneira bastante singular:
Fui para o Hotel Broog; e foi lá que me imaginei cantando a Ave Maria para um bando de Duendes grisalhos de pele cor de madeira. Acredito em gnomos, em pigmeus; acredito em converter o bicho-papão, trazer a Medusa para Kenneth; pedir a Zeus um olho novo pra Polifemo; e agradeci cada homem que já viveu, agradeci a vida o mundo pela quimera, a gárgula, a esfinge, o grifo, Rumpelstiltskin – cantei a Ave Maria para o Heap, o Groot, o mugwump, Thoth, o centauro, Pan; Reuni-os todos no meu quarto no Broog, o lobisomem, o vampiro, o Frankenstein todos os monstro imagináveis e cantei e cantei a Ave Maria – O quarto tinha de se tornar insuportável! Fui ao zoológico e oh Deus obrigado o simples elefante.
ANUNCIAÇÃO E FORÇA DISRUPTORA | Corso apreciava especialmente o seu nome, e escreveu sobre isso. Corso significa “curso, via, caminho” e Nunzio, seu nome do meio, “anunciador, arauto”, daí ter escrito, no poema Eu Sou Rico:
Sou Nunzio hoje é meu aniversário o Dia da Anunciação Estou banhado, vestido, e dotado pelos porcos da profecia… Tenho uma mensagem final para entregar
Apesar da profissão de fé de Corso, alguns críticos consideram que seu pleno potencial foi prejudicado pelo seu alcoolismo e autodeclarado vício em heroína (sua “Enfermeira Imunda”), notórios a partir de 1963. Muito embora isso se possa dizer mais em função da figura humana do poeta que de sua produção. De fato, sua poesia da idade madura, embora em menor número e esporádica, está entre a melhor que produziu. No entanto, o uso abusivo de drogas e sua personalidade difícil (“doceamarga”, no dizer de Ferlinghetti) e o comportamento desagregador contribuíram para o seu obscurecimento depois do período de notabilidade – e alta criatividade – de fins dos anos 50 e primeiros anos dos 60. Ginsberg, Kerouac e Burroughs, amplamente reconhecidos, tiveram repercussão bem maior, e Corso é sem dúvida o menos lido e estudado dos quatro escritores maiores do núcleo da Beat Generation, sendo a bibliografia sobre sua obra recente e ainda incipiente.
Embora tenha conhecido Ginsberg e os outros artistas e escritores da Beat apenas em 1950, não participando, portanto, do período de elaboração das ideias iniciais do movimento, em meados dos 40, Corso foi imediatamente reconhecido como um dos mais talentosos do grupo, tanto pelos comentadores do movimento quando do seu surgimento público, como pelos seus próprios companheiros, dos quais seria amigo íntimo pelo restante da vida. No entanto, apesar do escasso reconhecimento acadêmico, Ginsberg anota que “sempre foi e continuará sendo um poeta popular, despertador da juventude, divertimento e prazer de bibliófilos idosos sofisticados”. Skau afirma que seu papel na Beat foi o de uma “força disruptora – autocentrada, imprevisível como uma tempestade de verão, desconcertando os padrões confortáveis de comportamento”, e Patti Smith o chamou de “sua mais provocativa consciência”. À margem entre marginais, fez como disse de Shelley, imaginou a si mesmo e viveu o que imaginou.
Sempre fiel a si mesma, sua poesia renovadora destila uma crítica alegre às abstrações e limites da racionalidade, uma amoralidade humanitária e pacífica, perpassada pela crença nos poderes libertários e restauradores da imaginação. Sua rebelião em favor da individualidade e sua denúncia do envenenamento realizado pelos dogmas ideológicos, aliadas à sua realização estética, nos permitem colocar sua poesia entre a que de melhor foi produzida no âmbito da literatura Beat, seguramente uma das mais vitais, senão a mais importante e expressiva da segunda metade do século XX.
NOTAS
Márcio Simões (Brasil, 1979). Poeta e ensaísta. É um dos editores de Agulha Revista de Cultura. Publicou uma plaqueta, O Pastoreio do Boi (2008) e escreveu Os Dias de Pólen (poemas), inédito. Tem pronto para edição o volume Gregory Corso - Antologia Poética, no prelo das Edições Nephelibata. Contato: mxsimoes@hotmail.com. Página ilustrada com obras de Luciano Bonuccelli (Itália), artista convidado desta edição de ARC.
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