Organizei este pequeno ensaio em três entradas num período em que o meu país saía de uma grave situação que num futuro podia ter caído em algo irreversível. Um período em que sucessivos esqueletos saltam dos armários anteriormente construídos por uma administração pública liderada por aventureiros políticos que visou – percebemo-lo agora claramente – estabelecer um ambiente autoritário/cleptocrático de tipo peculiar, ainda que não original e que George Orwell aflorou, embora com recorrências imaginativas, numa das suas encenações literárias.
Eu poderia dizer, parafraseando ironicamente Georges Arnaud, o famoso autor de “O salário do medo”, que “Esta sociedade, por exemplo, não existe. Eu sei-o, vivi lá!”.
Como na obra de Samuel Beckett “Malone está a morrer” é referido a dada altura, “O que interessa é só prestar atenção aos sobressaltos”. Ou, para citarmos Jules Morot no seu “O espírito do bem”, “A casa/ou da vida ou da morte/ costuma sempre ficar um bocadinho mais ao lado”.
Por outras palavras menos simbólicas, mais chãs e terra a terra: se estamos vivos já nem sequer é por acaso, como assinalava algures Jean Rostand, mas sim porque os senhores do mundo nos consentem, por altamente lhes convir, que existamos em todos os pontos cardeais… E o resto é conversa.
As 3 análises seguintes, ainda que se refiram a livros diferentes uns dos outros de autores de diferentes origens, apontam para algo que lhes é comum e que, a meu ver, explicam um específico universo conceitual e societário em que hoje existimos nesta parte do mundo – a violência camuflada da parte de setores privados, a “suave brutalidade” de cunho estatal e, por último, o que num geral mundial se apresenta inquietantemente às consciências: o relativo desconhecimento da insídia e dos manejos nefandos de seres criadores/dependentes de um mundo pervertido pela desrazão que subscrevem.
Não é por acaso que todos eles têm por cenário ou invólucro a escrita e as suas diversas faces do eventual conhecimento, de potencial acesso à sabedoria (ou a sua negação absoluta) e as armadilhas e perversões que eles podem possibilitar ou esconder.
Dito isto, comecemos.
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A mais bela artimanha do diabo é a de persuadir-nos de que não existe.
Baudelaire
A PROPÓSITO DE O MESTRE DE ESGRIMA: O SOL NEGRO DE ESPANHA | A obra epigrafada, de Arturo Pérez-Reverte, é uma parábola sobre a sabedoria.
Debrucemo-nos sobre este livro iniciático, que, aliás, nos fornece o exemplo de como progride um texto discretamente apresentado como um thriller histórico – e o autor fá-lo com a sutileza que lhe permite ter o necessário impacto, como se verifica a uma releitura. Este procedimento é usual e caracteriza, aliás, outras tragédias da literatura policial como, por exemplo, “Versão original” ou “Um domingo esquecido”, respectivamente de Bill Ballinger e Fred Kassak. A sequência novelesca é dada como uma lição prática de esgrima: “Do assalto”, “Ataque simulado duplo”, etc.
Depois da introdução, o autor refere como de passagem que é uma “tragédia”. Tal como sucede com outros detalhes capitais (o nome de Cazorla, tio de dois dos alunos de Jaime Astarloa, que assim sabe da existência do mestre de esgrima e das relações que este tem com o marquês dos Alumbres, o que permite perpetrar-se a armadilha que o irá aniquilar) isso é dito dissimuladamente, escapando à atenção dos leitores menos atentos.
Aparentemente, portanto, o livro é uma história de mistério ambientada num período histórico determinado.
Naquela Madrid da segunda metade do século dezenove, alheado dos embates que em volta se verificam (conspirações do general Prim que em breve iriam levar à queda de Isabel II, a mui católica rainha duma Espanha herdada de Narvaez, “o Militarão de Loja”, morto antes do começo da ação) vive um mestre de armas clássicas, discípulo do famoso esgrimista francês Lucien de Montespan e imbuído dos princípios de honra e de fidelidade que aprendera a cultivar na Paris de um quarto de século antes. Estranhos sucessos começam a desenrolar-se em sua volta depois de ser visitado por Doña Adela de Otero, fascinante mulher ainda jovem que dispõe duma extraordinária capacidade como esgrimista.
Aceite pelo mestre após hesitações iniciais provindas da tradição, Adela revela-se como uma mulher que tem por trás de si um segredo (revelado posteriormente). A sua vida é pouco vulgar e em certos círculos da capital espanhola isso é comentado mais ou menos discretamente: não trabalha, não é nobre e, todavia vive com evidentes meios materiais.
Em volta do maestro agitam-se personagens ora equívocas ora típicas de um ambiente em que as convulsões sociais eram determinadas pela decadência da monarquia espanhola e o ascendente republicanismo. Mas Astarloa, descentrado dum tempo que lhe não pertence uma vez que é um avatar da era precedente onde pontificavam os seres honoráveis da sua juventude, toma as coisas pelo seu valor facial: apaixona-se por Adela e, dada a profunda solidão em que vive e que enfrenta mediante o apego às recordações, passa a existir entre a angústia e a expectativa de algo que, no entanto intui nunca poder alcançar.
O marquês dos Alumbres, único indivíduo que lhe demonstrava uma verdadeira estima caldeada de apreço pelas tentativas que o maestro vai efetuando para escrever o livro sublime sobre a estocada imparável, morre de forma violenta. Astarloa está agora definitivamente só, uma vez que Adela também deixou as aulas de atiradora esgrimista que eram o refrigério de Jaime, votado agora apenas a ganhar o pão quotidiano.
Depois de diversas peripécias de índole dramática (luta com assassinos a soldo, um companheiro torturado de forma bárbara por rufiões, o assassinato de uma mulher que a polícia toma pela bela manobradora, etc.) há de noite um último encontro entre uma Adela afinal viva e um Jaime que começa a entrever algo que, no entanto não consegue verdadeiramente nortear: não nota que numa das cartas dum ministro consta um nome afinal seu conhecido, assim como não repara que em documentos posteriores esse nome desapareceu. Para cúmulo, a carta que dá sem equívocos a identidade do perpetrador dos crimes caíra, num momento de atrapalhação, para debaixo duma papeleira. Astarloa é, pois um homem que não sabe o concreto, sabendo, contudo e apenas – o que, aliás, lhe serve bem – que há causas pelas quais vale a pena viver e morrer: a fidelidade a um passado de decência, de respeito pelos outros e pelas recordações que lhe acalentam a honra quotidianamente assumida.
Ao dar-se conta das teias em que havia caído, sendo ocasional comparsa de manejos que o ultrapassavam (os negócios escuros do regime, a traição de correligionários, as aparências tapando as realidades mais sórdidas…) o maestro recusa as facilidades que o seu silêncio lhe permitiria. Apesar de amar Adela não pode esquecer os crimes de que esta foi cúmplice e mesmo autora.
Num último duelo entre um homem fiel aos seus princípios e uma mulher que motivada por um drama sentimental se fizera encarnação maléfica da Espanha “moderna”, argentária e plutocrata (o canalha seu benfeitor e chefe é banqueiro e homem de negócios), em condições muito desfavoráveis ele consegue matar Adela atingindo ao mesmo tempo, num lampejo que a sua arte e experiência das armas possibilitou, a estocada perfeita, o seu Graal.
Por outras palavras e dado que se voga num universo simbólico: a descoberta da Pedra Filosofal possibilitada pela confrontação com um amor que morrera.
Ou seja: no ato de ser morta, Adela faz viver ainda que de forma trágica, para sempre, a memória de Astarloa como autor de um manual absoluto. É através desta morte em combate, que Jaime tragicamente recapitula frente ao espelho (imagem virtual da vida real), que tudo fica perfeito e completado.
Corpo morto enquanto demônio, Adela cadáver repousa como uma coisa reconfigurada e devolvida às origens e que nem mesmo é já necessário olhar. É um invólucro apenas, presença para além de todo o bem e todo o mal. Como que vive agora noutra dimensão, naquilo que Jaime atingiu depois de tantos anos de busca inglória.
A despeito de si mesma, afinal forneceu a Astarloa a “ars aurea” dos triunfadores. Se ela não tivesse existido, mesmo que do lado negro e infernal, Jaime teria morrido possivelmente num asilo ou num quarto modesto absolutamente só e desapossado do achamento.
Nesta perspectiva, sendo uma novela iniciática, de busca da sabedoria, é também uma novela de esperança e de amor íntegro que nos diz, como na “Opus Magna”, que as Trevas não prevalecerão sobre os filhos da Luz.
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Obrigam-nos a engraxar sapatos e depois alegam que só servem para engraxadores.
Langston Hughes
SOBRE VERSÃO ORIGINAL: ENTRE OS FUMOS DO AMOR E DA MORTE DE BILL BALLINGER | Chega-se ao fim desta novela discretamente temerosa, uma das mais belas e perturbadoras da literatura de mistério, com uma sensação de perda e de amargura. De relativa surpresa, que, contudo possui uma indicação norteadora.
Nesta tragédia poderosamente encenada e magnificamente urdida na sua progressão enquanto matéria escrita, o acento tônico recai sobre a questão das realidades e dos enganos que estas podem ter em si, uma vez que não é dado ao Homem saber o que está além do que se toma por verdadeiro e afinal contém todo um universo de falsos indícios, de falsas indicações, de desconhecimento dos sentimentos que realmente forjam as relações entre os seres. E que num outro contexto tudo teriam de criativo e de salubre ultrapassando a fábula dos desencontros.
“Se abro o bico sem ser com um tipo fixe, estou liquidado. E, além disso, quem acreditaria em mim?” pergunta-se o protagonista logo na abertura desta ópera de dois tons em que o discurso pessoal é contraponteado no itálico dos capítulos que explicitam o que, para além dele, vai sucedendo no quotidiano que o ultrapassa. “A coisa não faz sentido. Não faz mesmo nenhum sentido. Tenho pensado no assunto vezes sem conta, debatido a coisa comigo mesmo. E no fim só consigo obter vagas imagens” – continua Dan April (Abril, significativo nome de mês) a questionar-se numa tentativa de entender os acontecimentos que o rodearam e que se transformaram num “retrato de fumo” (o título original é esse) iniciado numa noite do Illinois, nessa Chicago enevoada ou ardente de sol, “quente e preguiçosa”, essa cidade também brumosa devastada anos atrás por um incêndio que a História registrou.
Mas a breve trecho o leitor suspeita, e acaba por concluir devido ao seu estatuto, que a coisa de fato faz sentido, ou melhor: que há um sentido singular, ainda que temível, oculto nesta novela que por seu turno, ao contrário da primeira que analisamos, resulta dos próprios limites do conhecimento ou se debruça, digamo-lo desta maneira, sobre o que se pensa saber.
É por assim dizer, simbolicamente, uma representação desse labirinto ou desse fumo sulfuroso que se depara ao “laborator per ignem” numa fase em que este caminha para a Segunda Obra e em cujos meandros tem de enfrentar as figuras enganadoras ou sinistras dos dragões velhos cuspindo lava ou lamas mefíticas.
“Krassy Almauniski abriu os olhos e distendeu-se na cama. Ficou quieta uns momentos antes de se espreguiçar de novo. – Dezessete de Março… Dia de São Patrick – disse para si mesma com satisfação – o dia dos meus anos! – Saltou da cama e caminhou sobre o soalho nu até junto dum pequeno espelho que estava suspenso de um fio passado num gancho pregado à parede. Desabotoou a camisa de seda de homem, passajada, que lhe chegava até quase aos pés e despiu-a.
– A partir de hoje – disse para si mesma – as coisas vão modificar-se”.
Por representação, enquanto Dan é a parte de sonho Krassy é a parte de realidade prática que a novela vai explicitar enquanto progride.
Citemos para melhor compreensão, sem irmos demasiado longe – o que retiraria ao leitor a surpresa da sequência do relato – o texto de apresentação inserido na contracapa: “Ao percorrer os arquivos da Agência de Cobranças que comprara no dia anterior, Danny April encontrou o retrato de uma rapariga.
Mas ele conhecera aquela rapariga… dez anos antes… Que seria feito dela?
A ideia de vê-la novamente tornou-se uma obsessão… Finalmente encontra-lhe a pista. Mas essa pista aonde o conduz? À rapariga de outrora, que ele sonhava meiga e delicada, ou a uma criminosa que, à custa dos mais pérfidos ardis, subira, partindo do nada, até a mais elevada situação financeira e social?
A ação passa-se em Chicago, a cidade dos mil contrastes, e decorre durante e após a 2ª guerra mundial”.
Deste núcleo, à volta dessa busca que o protagonista enceta com esperança e a pouco e pouco se transforma em encontro e, depois, em desespero, o autor pinta-nos um afresco sugestivo de situações, de personagens e de imagens que nos subjugam através da progressão do relato.
Nem sempre o que parece é ou, de forma ainda mais cruel (o que é constitui a verdadeira face do drama, mas noutro espaço e num outro tempo, daí o itálico em que esses capítulos estão vazados) Dan April é a figuração clara do mal-amado, do indivíduo cuja existência nunca poderia, num mundo cuja hostilidade a todo o momento se manifesta a despeito das aparências, ir dar aos lugares de felicidade que se lhe antolhava merecer.
Neste relato, ao contrário do que sucede noutras novelas policiais, não é o autor que funciona como “deus ex machina” mas sim o leitor – que assiste a tudo sem nada no entanto poder fazer. O enigma não se apresenta ante o leitor, mas ante a personagem masculina, limitada pelos sentimentos que a envolvem.
Personagem trágica, tem sem que o suspeite, do outro lado, outra trágica personagem que se desconhece enquanto tal, que não pôde ou não soube guindar-se a um patamar de salutar formulação. Por outras palavras: Danny, ser vencido de antemão, conserva contudo a pureza dos que se lançam na vida com toda a carga de boa-fé, de decência pessoal e de lealdade que confere humanidade à existência, numa mistura de coração e de razão que frequentemente acaba mal. A razão de Krassy é contudo outra e é essa razão, estranhamente – porque não caldeada pelo coração – que irá provavelmente (digamo-lo desta forma) destruir a ambos ainda que por vias dessemelhantes.
Fábula dos desencontros? Mais lhe chamaria fábula sobre a impossibilidade de, num determinado contexto, a matéria se unir ao espírito – usando esta metáfora dos antigos alquimistas. O que é, na verdade, como os nossos tempos mostram à saciedade e esta novela confere com aprumo, arte e evidente desembaraço, muito mais vulgar do que as diversas moralidades procuram estabelecer ou escamotear…
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Porque vos ensinam eles a amá-los, se é para vos tratar assim? Porque não vos deixam eles em paz?
William Irish
O homem é perecível; pode ser. Mas pereçamos resistindo – e se ao fim o que nos reservam é o vazio e o nada, façamos com que isso seja uma injustiça.
Étienne de Senancour
A PROPÓSITO DE EXTERMÍNIO NO 31º ANDAR: A AURORA BOREAL DE PETER WAHLOO | Há livros assustadores. Uns pelo espírito, como por exemplo o “Lázaro” de Andreiev, que nos coloca de chofre e sem complacências em frente do fato de que uma vida de ressuscitado seria, afinal, tão angustiante e repugnante como a degustação de uma refeição apodrecida. Outros pela letra, como o “Drácula” de Bram Stoker sobre o qual já se disse que só um leitor completamente destituído de sensibilidade conseguirá ler numa casa deserta e pelas horas mortas da noite.
Outros, por seu turno – e é o caso desta “utopia negra” vazada nas luzes boreais que conformam as sociedades escandinavas – porque o que nele se encena está a acontecer paulatinamente. E não só naqueles rincões.
O caso sucedido há um par de semanas na politicamente correta Noruega, onde os monstros particulares são produto de uma administração cuja tenaz cegueira é a prova do seu cinismo suave e perito em enterrar a cabeça na neve (e já não, como as avestruzes, na areia do deserto) para sagração de um oportunismo que finge supor que os cidadãos são um resíduo angélico para que se não vejam as partes demoníacas do seu poder governativo, mostra-o sem véus e sem disfarces.
Nesta obra de entrecho quase linear, duma secura de estilo necessária para que a sugestão resulte, Per Wahloo (que com sua mulher Maj Sjowal deu na época a lume um belo punhado de polars bem inseridos no gênero, mas com um timbre de novidade que os distinguiu) segue passo a passo os sete dias duma investigação que um inspetor da polícia efetua para que naquela sociedade pacífica e onde o Estado mais ou menos cordial procura que o cidadão viva sem traumas (e onde o único crime significativo e punido, aliás, sem muita violência expressa é a embriaguês, que, entretanto se multiplica) tudo continue a ser sereno.
Nesta sociedade o controle é exercido pela leitura: leitura de revistas e de jornais com visão positiva, onde o próprio fenômeno desportivo (fautor de paixões e frequentemente de conflitos) não recebe muita atenção a não ser a que possibilita que se possa epigrafar televisivamente o sucesso das vedetas que o integram.
O consórcio que o domina é constituído por gente esclarecida e de “boa formação” partidária e propugnadora de uma igualdade social estabelecida de maneira amena e que até quando despede dos empregos o faz cordatamente: o indivíduo ou indivídua em causa recebe uma reforma razoável e um diploma por bons serviços, assinado por altas individualidades. E o além está muito longe… mesmo quando ao virar da esquina.
Mas há sempre alguém que, com impetuosidade maldosa, “sem olhar à felicidade social a que se conseguiu chegar” (sic), resolve meter um pauzinho na engrenagem. Por puro sadismo (como se diz neste ocidente cristão, civilizado e culto) ou pormaldoso anarquismo (como há dias disse publicamente um comandante da polícia metropolitana inglesa, que ao mesmo tempo solicitou aos cidadãos britânicos que, e cito, denunciassem os vizinhos que soubessem que perfilhavam ideias anarquistas – o que quer que isto seja…)? Ou, ainda, por impiedade, como se diz naqueles países do oriente que têm a dita de existir em teocracias?
Alguém, portanto, usando precisamente uma folha anexa não preenchida dum desses diplomas, (uma vez que o papel é pacificamente controlado), endereçou às autoridades uma carta inquietante, sugerindo que inquietantes acontecimentos iriam dar-se. E embora as forças vivas tenham essa carta por eventual simples brincadeira, tal como uma outra insistência significante, nunca fiando – a própria brincadeira indicaria já um escabroso, quiçá injusto, desvio e Jensen – polícia compenetrado e eficiente sofrendo, no entanto de um doloroso e crônico desarranjo gástrico que nem a comida cientificamente confeccionada e posta à disposição dos cidadãos pelo ministério da saúde que tem a seu cargo as dietas racionais consegue tranquilizar – mergulha num universo de entrevistas e de encontros que pouco a pouco lhe patenteia os meandros do jornalismo, se jornalismo se lhe pode chamar, e da criação escrita quando a criação escrita é apenas um simulacro que ora leva ao suicídio dissimulado (ou assistido) ora à entrega a um ambiente de mundanidade, de sucesso e de notoriedade bastante semelhantes ao que usa utilizar-se nesta Europa das pátrias e, suspeito-o com alguns tremores relativos, nas sociedades alfabetizadas de outros continentes…
Homem sério e bom profissional, ético tanto quanto as circunstâncias peculiares o permitem, nesta viagem iniciática de uma semana nem sequer negra em que a desesperança do protagonista é irmã colaça da desesperança sentida pelo leitor enquanto mergulha na naturalidade do relato, a regra da “detective novel” é subvertida, ou melhor: invertida. Os chefes que o comandam preferiam não saber e a demanda de Jensen dirige-se não à descoberta, mas à ocultação. Nas sociedades racionalmente policiadas, como por exemplo a sociedade lusa, o polícia, (que funciona como Nêmeses justiceiro) age preferencialmente como aquele quecamufla o enigma ou, dizendo ainda mais esclarecedoramente, faz com que o enigma seja uma camuflagem que garante ou sustenta o “equilíbrio” entre as classes, para que a paz e o progresso coabitem salutar e airosamente…
No entanto, nem nestas mansões quase celestiais as coisas são como deviam ser (ou se esperava que fossem).
Dizia Antonio Maria Lisboa, numa frase bem respigada por Cesariny, que “Todo o ato premeditado ou todo o ato leviano tem a sua guilhotina própria”.
A mim sempre me pareceu que ele tinha razão ao cunhar este conceito. E, se o pudesse ter lido, creio que Jensen – e muito mais os seus chefes – teriam dolorosamente entendido a verdade que assistia ao infausto poeta surrealista lusitano.
Às suas próprias custas – mas isso seria já uma outra estória…
Nicolau Saião (Portugal, 1946). Poeta, artista plástico e ensaísta. Autor de livros como Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998) e Os olhares perdidos (2000). Contato: nicolau19@yahoo.com. Página ilustrada com obras de Luciano Bonuccelli (Itália), artista convidado desta edição de ARC.
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