AFEIÇÕES PROFUNDAS SOBRE PAPEL FOTOGRÁFICO | Há dentro do variado arquipélago de imagens de Luciano Bonuccelli um vaivém de estímulos expressivos que, para além das aparências imediatas, diria que acabam sempre se encontrando no mesmo ponto, como para reforçar não tanto uma visão única, mas a idealidade da marca ao mesmo tempo humanista e estética que a funda.
É este pensamento que fica dentro de mim depois que tudo decantou (e sabe Deus se de fato existem sedimentos a serem filtrados na fotografia para se chegar ao âmago da questão): aqui a tradição cultural e artística herdada do passado é tão importante quanto o que ressurge como impulso estético no presente, e juntos vão atirar-se naquilo que, no fim de tudo e para além do blábláblá crítico, é um abraço nos poetas e materiais poéticos do mundo, que afinal são o verdadeiro sujeito, para além das múltiplas e cativantes policromias que o amigo Luciano persegue como um filho em busca do pai maravilhoso conhecido num passado longínquo.
Atrás de todo o impulso expressivo há o perseguir de algo que nos falta, que nos foi como que roubado: as fotografias (como a poesia, a pintura, o cinema, etc.) mostram o revestimento, alguns dos possíveis revestimentos, que podem inclusive serem confundidos com aquele fino e indefinível sentimento que os gerou. Falando com Bonuccelli de suas fotografias não é por acaso que a conversa, ou melhor, a narração, se amplia sempre para além dos papéis coloridos e prateados dispostos sobre a mesa e acaba por evocar os verdadeiros fantasmas da alma perseguidos e depois encontrados – sei lá – num Dossetti de doçura e utopia tão elevadas e ilimitadas que parece um anjo, ou num Raffaele Carrieri que pegando na mão dele o introduz no sensível, e, no entanto, concretíssimo, reino onde a moeda circulante é a poesia. Sem esta narrativa, da qual as fotografias são o pretexto e o veículo, estas superfícies que se querem sensíveis permaneceriam, em parte, letra morta, órfã das verdadeiras ressonâncias que aqui flutuam por baixo, justamente, da enganadora fixidez dos enquadramentos.
O verdadeiro sujeito: uma tensão comunicativa a 360° que só em parte é suportada pela muda e parcial instrumentação fotográfica. Rapaz dos mil impulsos e das rédeas soltas – encontrei pela primeira vez Luciano no final dos anos 70 em Versilia, quando participou de um estágio meu cujo tema central era “a praia” – ele tem aquele espírito difícil de não se identificar (e espero ser perdoado por este lugar-comum) como “Toscano”, civil no sentido antigo, porque integrado naquela cultura e naquela arte que todos conhecem. Agradável mistura de intelecto e fantasia que dá solidez à alma, sociabilidade e prazer de fabulação aos que disto se alimentam. Neste leito de prazeres a fotografia adaptou-se com seus pressupostos de linguagem universal e ponte comunicativa ideal com o mundo. Instrumento de síntese formal superior no caos das aparências. Todas as aventuras estéticas do nosso versiliense têm esta mistura solar, nunca obscurecida por extremismos excessivamente exasperados, que, por vezes, a bem dizer, de tão saturada reenvia à ausência de uma rigorosa, sempre suportada e bem definida projetividade de fundo, como acontece com os autores totalmente dedicados a este meio, e que o utilizam como instrumento de pesquisa e escavação no profundo. Diferente, me parece, o anseio de Luciano: não a exigência absoluta de indicar uma linha de fuga da realidade, de se opor, mas antes de chegar e sublimar esta realidade, domesticando-a com o impulso da paixão e o metro do raciocínio.
DAQUELA LONGĺNQUA PRAIA | Dizia antes daquele nosso primeiro contato na praia da Versilia, onde num lugar e num espaço aberto, fora dos usos habituais que os banhistas fazem dele no verão, tentava empurrar os meus ocasionais e um tanto vacilantes “alunos” a fazer algo de pessoal que pudesse espelhar a essência simbólica de uma sensação, ou de um pensamento, ou de uma descoberta em seu (nosso) perambular pela areia na beira-mar, ou por entre os artefatos ali deixados à espera de serem novamente utilizados no verão.
Daquele encontro lembro a afabilidade (eu naquela época tão avarento de palavras…) e a amigável proximidade de Luciano quando tentava explicar aos fotógrafos amadores locais, seus companheiros, a diferença que existe entre um passeio no campo por hobby e por abandono estético, e a oportunidade de fazer nascer um diálogo interior com as coisas aparentemente humildes e mudas, para fixar aquela tensão expressiva que para ser liberada seria necessário recorrer a imagens realmente “sentidas” nossas.
Hoje, que os caminhos se cruzam novamente com Luciano – e isto, devo reconhecer, graças principalmente a ele, àquele seu tipo de “perseguição” que leva pacientemente ao outro lado do fio – percebi que todo o seu trabalho fotográfico apoia-se ainda insistentemente naquelas premissas, naquele seu querer sair a qualquer custo do diletantismo domingueiro e de seus vagos antagonismos, buscando assumir as novas direções expressivas e as articulações que estavam se desenvolvendo no final daqueles vibrantes anos 70, e que o arrastaram para dentro do mundo da expressão fotográfica. É daqueles anos uma foto que é uma ilha – no sentido literal e emblemático de isolamento, separada do resto – é o retrato em branco e preto da mãe. Refiro-me naturalmente àquela imagem dos pés envolvidos e como que contorcidos em sua própria carne, na deformação e corrosão daquelas unhas que foram como mordidas pela terra dos campos longamente trabalhados por toda a vida. Origem esta verdadeira e decisiva do episódio humano de Bonuccelli e ao mesmo tempo emblema representativo daquela origem. Uma foto poderosa onde uma parte, um chamado detalhe, chega a evocar e – diria eu – atravessar aquele todo do qual é tirada. Uma imagem cujo impacto emocional imediato harmoniza todos, o poeta Luzi (e desta sua admiração vocês terão uma prova numa outra parte desta publicação) e também o mais distraído dos leitores habituado a contemplar por cima as fotografias. Se há em cada trabalho expressivo um ponto onde a nossa identidade, o que somos e de onde viemos, cruamente sobe ao ápice de uma visão reveladora, para além das nossas ocasionais intenções, neste caso o centro está exatamente aqui. Eis, porém – como salientava antes –, que esta imagem emblemática irrompe de maneira fulminante e é como se explicasse tudo, para depois fechar-se novamente em si, no seu isolamento, única e irreproduzível. Exatamente como acontece como os símbolos. O realismo do sujeito e a violência do claro-escuro o tornam um episódio revelador, mas separado da iconografia que distingue Bonuccelli; apesar do corte da composição se refazer àquele tipo de enquadramento que ele opera normalmente diante das coisas. Neste sentido não tem continuação uma ilha que talvez seja também uma fortaleza, para impedir de se ir além, de entrar demais dentro. Uma visão, uma ferida; um enfoque que arrasta a um tumulto de lembranças na busca de um sinal na visibilidade. Abrange tudo e se impõe a quem vem antes do fotógrafo, isto é, o filho. É o que está na base e domina toda a série intitulada “A minha Terra”, mas que também mexe indiretamente todas as peças apanhadas pelo fotógrafo neste tabuleiro.
Como tento evidenciar na continuação destas linhas – e que creio resulte claro a todos os que se deparam com os tipos de sujeitos e tratamentos formais assumidos por Bonuccelli – não é certamente das garimpagens impiedosas da realidade e sua aspereza, mas antes do cuidado na ordem que a mente dirige aos objetos e às matérias, à sua dimensão arquitetônica e espacial, que deve ser vista a inclinação figurativa e ao mesmo tempo “abstrata” de Bonuccelli (uma conversa a parte merece os “Retratos”, que mesmo em sua diversidade representativa estão ligados ao resto pela marca daquela identidade à qual acenava no início). De qualquer forma, a sua fotografia, a sua expressão, reúne-se ao redor de uma forma estabilizadora que é simultaneamente um jardim e um recinto. Reconcilia as contradições, ou de qualquer forma esforça-se por fazê-lo, e chega a acenar harmonias lá onde outros partiriam armados com a força das dissonâncias.
UM ÚNICO TERRITÓRIO DA MENTE | As séries fotográficas mais consistentes de Bonuccelli – porque sustentadas por um desenvolvimento representativo pessoal maturado pelos anos (tempo provavelmente subtraído com dificuldade das ocupações familiares e profissionais) e porque núcleo das duas modalidades expressivas que considero mais eficazes – são os “Retratos” e “A minha Terra”.
Os “Retratos” não devem ser vistos apenas em sua imediata e evidente descrição referida às fisionomias de artistas ou intelectuais conhecidos e às habitações ou laboratórios nos quais eles operam: poderiam ser eles também. Se quisermos, serem parte da “Terra” do autor, segundo a acepção mais ampla de espelhamento ideal por parte do fotógrafo na expressão poética e figurativa desses artistas ou nas faíscas de seus olhares pensativos. Uma terra que se define mais no humo cultural que no território físico propriamente dito, que está sempre nas proximidades, mesmo quando está a quilômetros de distância daquela Massarosa onde Luciano vive.
Uma idealidade, portanto, que se alimenta e se consubstancia nos corpos e nos rostos de poetas, escritores, pintores, escultores, históricos encontrados no rasto daquela primeira e luminosa amizade com o pigmalião Carrieri, e que hoje podem tranquilamente ser vistos como etapas fundamentais, realmente decisivas, para o crescimento humano e artístico de Luciano. Retratos que são também, como sempre, e talvez mais, autorretratos; ou para dizer mais exatamente, neste caso, autorretratos eletivos. Porque se é verdade que ele os eleva, quer visualmente, quer nos contos que deles faz como apêndice expressivo absolutamente não acessório a estas experiências especiais, o ápice de um percurso existencial definido e condicionado pelo amor pela arte e pelo ofício cotidiano da criatividade, é verdade também que há uma recaída desta fascinação no fotógrafo que dela foi testemunha especial. Uma inclinação ou aspiração mais ou menos inconsciente de transmigrar naqueles rostos e naquelas sensibilidades, de absorver “magicamente” para si, nas sombras da própria alma, um véu daqueles auras – esta seria a forma pela qual poderíamos definir seus “Retratos” dos outros. Mas, antes de mais nada, acredito poder afirmar que Luciano sente-se como filho e humilde aluno destes “medalhões” da arte (é de qualquer forma sintomático, para entender o desenvolvimento de seu trabalho, que não haja vestígios de semelhantes figuras ou personagem provenientes da arte da fotografia) e somente num segundo momento torna-se mediador privilegiado na difusão e na revelação ao mundo destes rostos e da aura que deles emana.
OS MOTORES VISĺVEIS E INVISĺVEIS QUE SACODEM O REAL | Em “A minha Terra” cabe de início fazer uma consideração: aqui parece-me englobado quase que todo o edifício linguístico/representativo de Bonuccelli fotógrafo. Deste ponto de vista – a meu ver – ele absorve em si inclusive aquelas séries de fotografias orientadas para outras matérias e lugares, que têm sem dúvida uma especificidade própria, mas um fôlego mais curto tanto no plano das motivações expressivas quanto da articulação do discurso visual. As “Pedras”, “Lucca”, “Viareggio”, vejo-as apoiarem-se sobre um esquema formal de direção dominante única que se integra e se diferencia, sem no entanto verdadeiramente se ampliar, abarcando outros comprimentos de onda capazes de se abrirem para novas chaves de interpretação por parte do espectador (o que acontece exatamente com os “Retratos” e com “A minha Terra”). Para melhor esclarecer esta observação – que sem dúvida é uma observação crítica que cai do alto e não faz justiça a tudo o que Luciano perseguiu com estas séries – diria que para mim se assemelham a um premente discurso pessoal sobre o gradual amadurecimento de sua visão fotográfico-pictórica. Uma espécie de campo de pesquisa ótico, formal, sobre materiais de imediata e evidente fotogenia, com um indubitável valor e interesse ligados ao “momento” da tomada e a episódios importantes para as próprias vicissitudes autobiográficas.
Muitas das fotografias inseridas nestas séries – se me é permitido um comentário realmente enxuto – revelam mais uma preocupação com o “quadro” do que com o poder de transfiguração existente no trabalho fotográfico em sua relação específica com o real. Posso certamente estar enganado, mais creio que os valores formais e cromáticos das fotografias, mais do que resultarem um fim em si mesmo, deveriam contribuir para a compreensão dos motores visíveis e invisíveis que movem a realidade e ajudar a abrir janelas privilegiadas sobre aquilo que substancialmente é, mais do que sobre como se apresenta.
Ao contrário, os fermentos que agitam os trabalhos que me parecem mais sólidos, ultrapassam aquela dimensão um pouco esteticista que, em outros casos, corre o risco de se cristalizar e impedir um desenvolvimento fotográfico a todo campo, como no exemplo de “A minha Terra”, que abrange não apenas enredos autobiográficos, mas também investigações ambientais que vão além do dado estreitamente local e transitório e se configuram num todo em que descrição e abstração, aparato cognitivo e evocação simbólica, encontram um eficaz equilíbrio.
Voltando aos “Retratos”, parece-me claro que o homem precedeu o fotógrafo no envolvimento, a ponto do módulo representativo, em muitos outros casos mantido estreitamente sob controle, aqui felizmente deixar transparecer frestas, como se a emoção que o fotógrafo está vivenciando no estreito contato com o objeto de sua admiração ditasse suas condições, em alguns casos chegando a subverter as regras da composição planejada. E isto ocorre justamente porque do outro lado da lente não há uma matéria inanimada que se deixa capturar docilmente pelo cerco mental de quem a está fixando. Pelo contrário. O artista que está do outro lado da lente – em suma o observado especial – que em virtude da própria sensibilidade e cultura presumimos estar familiarizado com o mundo das imagens e das aparências, não pode deixar de ter uma sadia desconfiança da máquina fotográfica. E deste enfrentar-se de entidades opostas – ou seja, o autoritarismo decisivo da máquina na escolha da imagem “certa” de um lado, e a sadia desconfiança da outra parte contra esse irreal “pedaço” extraído do fluxo de aparências que se arroga o direito de ser “verdadeira” – que derivam todos esses contínuos arranjos, mudanças de rumo e ajustes de tiro que não permitem que um módulo representativo possa ser aplicado conforme um esquema pré-estabelecido. Lucra com isto a espontaneidade do encontro, a frescura do evento como que apanhado ao vivo. Lucra a sensação de “verdade”.
O formato quadrado, que em outros trabalhos torna-se funcional pela escolha mediata da posição a ser assumida no espaço divisório entre sujeito e objeto – ou seja, do ponto de vista que se define desde deslocações mínimas calibradas na objetiva até o corte da composição final – vê-se aqui obrigado a prestar contas da frequente impossibilidade do fotógrafo encurtar as distâncias a seu gosto, como quando o confronto é com um muro de tijolos ou uma rocha. Trata-se de dois tipos totalmente diferentes de tomadas, diametralmente opostos, como é fácil intuir. Por mais que a agressividade da objetiva seja minimizada por um fotógrafo sensível como Bonuccelli (de cujas intrínsecas características não poderia se eximir), lograr que ela se insinue no canto escuro do refúgio de um poeta, presumivelmente habituado à solidão e ao silêncio, não é exatamente a mesma coisa que apontá-la sobre pedras ou para explorar rebocos nos muros! Sujeitos, portanto, esses artistas – presumivelmente fugazes e delicados, carrancudos e de comportamentos intratáveis – que certamente tentaram manter à devida distância o intrometido olho de Polifemo. Sem falar no fato conhecido que a fotografia de alguma forma evoca a preocupação pela imagem que se “afastou” de nós, e que não sabemos com antecedência quando irá aderir àquela que se deseja dar aos outros (caso tenhamos uma exata na cabeça) – principalmente quando se trata de artistas pertencentes a esta geração, supostamente avessos à notoriedade ou a qualquer forma de divulgação de imagens que os representem. Repito, portanto, “animais” difíceis de serem enquadrados sobre os quais Luciano logrou não assentar nem o peso do julgamento, nem a gaiola da moldura.
OS RETRATOS OU DA IMPOSSIBILIDADE DE EMOLDURAR “FEIXES DE NERVOS…” | Entre os muitos retratos impressionantes pela feliz escolha do momento, da posição e da luz, no meu parecer (que muitos outros apreciadores compartilham comigo) destacam-se os de Carli, de Durbé e de Vigorelli, ou da extraordinária “Zorria” enrolada no balandrau preto que atravessa a objetiva daquele jeito penetrante e enigmático ao qual assistimos. Rostos como relevos montanhosos onde em uma certa altura abrem-se fendas como que implodidas em si mesmas, que chupam nossos olhares. Garboli, referindo-se com grande agudeza a esses retratos, os define como “força muscular bruta, porque para Bonuccelli as pessoas são em primeiro lugar forças, feixes de nervos e de músculos dos quais se desprende uma energia impenetrável”. Essas forças, essas energias, Luciano consegue fazê-las brotar – e este me parece seu grande mérito – de situações fundamentalmente imprevisíveis, enquanto está todo tenso para manter sob controle o irromper instantâneo dos mil acidentes que se sucedem e imediatamente esvanecem no tempo e no espaço da cena assumida.
SOBRE A IMPREVISIBILIDADE OU SOBRE A OBEDIÊNCIA DO SUJEITO | Ele sabe que no fim é ele próprio verdadeiro vigiado especial e tem a sensibilidade e o cuidado de não armar arapucas para imobilizar aqueles espíritos que escolheu exatamente em virtude de sua dimensão criativa, do comportamento livre, informal, por vezes extremamente contrário ao convencional. Assim eles podem ficar em suas planícies com as portas dos recintos bem abertas. Depois o evento ocorre como deve ocorrer, sem forçar nada. Dizia da imprevisibilidade: que diferença em relação aos materiais imóveis e tranquilamente ajustáveis como as “Pedras”! Os “Retratos” nadam na dimensão fenomenológica e psicológica da perda (o instante que já voou) e do desconhecido, do imprevisível (o instante que está chegando, e não se pode apanhar), e se resolvem, portanto, principalmente na intervenção fatídica sobre o tempo (o fundo, o “pano de fundo”, pode ajudar a definir o tipo de personalidade, mas não é determinante). As “Pedras” ou os “Muros” são ao contrário porções de matérias obedientes, observadas no decorrer de prazos temporais alongáveis ou procrastináveis a próprio gosto, com o fotógrafo esperando aquele evento luz que é determinante no consubstanciar de formas e cromatismos, isto é, o dado estético no seu conjunto. Neste último caso o fotógrafo está tranquilo ao abrir ou fechar a moldura a seu limite de margens. Formas e cores já identificadas pelo olhar no ato de desfilar, esperando, enfim, apenas o toque criativo da luz para a definição conclusiva do conjunto.
AS ATRIBUÇÕES DO QUADRADO | Parece-me evidente que a fotografia de Luciano adapta-se muito bem ao formato quadrado, e à instrumentação que o subentende, em razão exatamente da especificidade formal e técnica que o distingue e que poderíamos resumir desta forma:
1. Permite uma observação clara e ativa, uma disposição mediata, pelos elementos da composição numa situação cênica frontal;
2. O enquadramento quadrado permite um maior equilíbrio nas diretrizes verticais/horizontais que atravessam o espaço cênico envolvendo um sujeito apanhado de frente (ideal em situações bidimensionais);
3. A maior ampliação e a melhor definição da imagem no visor – em relação ao menor formato retangular – permite observar melhor as texturas, as tramas de detalhes (e micro detalhes) de que é constituída a realidade material;
4. A instrumentação que subentende este formato é menos intrusiva em relação à realidade que retrata: reduz a embaraçosa presença do fotógrafo e, portanto, tende a exercer uma menor influência no comportamento que as pessoas focadas assumem (receber no “peito” ou na “barriga” a fotografia, assumindo uma postura inclinada, quase respeitosa, evidentemente não é a mesma coisa que estender sobre o sujeito o “olho de vidro” e a parte alta do corpo, causando uma situação que incumbe);
5. Do ponto de vista do efeito visual e de suas derivações na esfera estética e psicológica, o formato quadrado substancialmente projeta sobre os elementos da imagem em que estão contidos aquelas atribuições de perfeição, de equilíbrio, de harmonia, ligáveis ao alto valor psicológico que a nossa tradição cultural atribui à forma geométrica do quadrado.
Dito isto, cabe salientar a dificuldade na aplicação da moldura quadrada ao instantâneo e caótico irromper dos eventos, dos múltiplos acidentes que simultaneamente golpeiam a realidade tridimensional, do jeito como a percebe a nossa visão ocular (que emoldura circularmente o visível). Utilizar de maneira profícua a forma quadrada (ou também a circular) para conter os elementos do visível, que são quase sempre afins ou ligados às formas retangulares, aciona uma especial disciplina do olhar e da composição; certamente não pode ser uma moldura paspartout a ser utilizada sempre, boa para todos os sujeitos. Os componentes ideais do caráter de Luciano e a configuração equilibrada do seu ver fotográfico justificam plenamente a utilização difundida deste modelo de enquadramento para os sujeitos aos quais se dirige.
A MINHA TERRA | É dentro de “A minha Terra”, uma daquelas séries que duram toda uma vida, que entrevejo os elementos portadores do aparato expressivo de Luciano (desde os êxitos fotográficos verdadeiramente diferentes em relação àqueles dos “Retratos”). É um trabalho que permaneceu longo tempo desmembrado porque atravessado por várias e sucessivas abordagens expressivas da temática que enfrenta; assim é para o fio de uma instalação estratificada que tenta recompor os diferentes fragmentos simbólicos. Mas este creio que seja também o charme desse trabalho intratável e difícil de ler, encaminhado naqueles anos 70 que absorviam em si motivações e pesquisas de amplo fôlego.
O tema enfrenta as novas transformações que baralham a identidade e a essência daquele campo onde Luciano nasceu o se criou, e rumo ao qual dirigiu sua objetiva desde o início. Vai desde os episódios autobiográficos envolvidos nas lembranças da infância e da adolescência – aos quais se refere o emblema dos pés da mãe de que falávamos no início – até a tomada de consciência amadurecida em volta do transtorno sem retorno dos valores que expressavam, num tempo passado, o mundo agrícola e natural. Sobre aqueles negros torrões e sobre aqueles horizontes abertos ressaltam agora as estufas, os galpões, as tiras de plástico que parecem envolver escuras massas vegetais, e todos os anexos e conexos (inclusive os inevitáveis postes da eletricidade) que sempre acompanham estas estruturas transitórias e muitas vezes ruinosas.
Havia aqui todos os elementos úteis para que um certo tipo de fotógrafo pudesse realizar um trabalho documentário capaz de levantar essa particular problemática ambiental, talvez até em molde jornalístico. Mas não é isto – como já deve resultar claro da natureza e da cultura do Luciano. Prevalece a caracterização arquitetônica aqui referida em seu máximo grau de desenvolvimento e potencialidade. O substrato de geometrias mentais põe em ordem e ergue essas arquiteturas pobres muito acima do nível de conflito: prova evidente é a repetida fascinação pelas simetrias. Tudo isso aponta para o enquadramento, a decantação, a sublimação, isto é, para aquela corrente dominante que atravessa todo o trabalho de Bonuccelli.
Mas existem outros fenômenos em “A minha Terra” que tentam subtrair-se a essa mente ordenadora e que de dentro manifestam suas tensões. A espessura visual da série fica bastante enriquecida. Refiro-me àquelas forças que vemos irromper particularmente nas fotografias das páginas 17, 60, 64, 66, 67, 69, 79 e 86. O quadro geral denuncia rupturas, o edifício bem-construído deixa escapar energias que não podem ser controladas, onde talvez se reflitam as contradições que Luciano, acredito, tenha vivido na relação com sua terra e seu passado. São sensações que tirei da observação dessas imagens e que tenho dificuldade em transmitir por palavras e ligá-las a um discurso lógico: talvez sejam apenas fruto da minha imaginação! Mas observemos, por exemplo, a imagem da página 78 onde as massas informes daquilo que deveriam ser plantas, envolvidas em plástico, parecem como que reanimadas pelos feixes de luz que caem do alto: pressionam de baixo, empurram para romper os laços. Ou então a imagem da capa. Para além dos vidros de uma imponente estufa cujo telhado lembra a forma das asas de uma borboleta há um flutuar de luzes e de sombras: como se uma espécie de nuvem gasosa pressionasse de dentro para fora. Duas fotografias que poderiam levantar um enigma. Talvez algo de indefinível agita-se e recusa-se a deixar-se conter nas tiras de plástico, coloca questões às estruturas da mente do autor, que são assim reenviadas à do espectador. Ou pelo menos, como gostaria que fosse claro, à minha imaginação.
Roberto Salbitani (Padova, Itália, 1945). Fotógrafo e ensaísta. Publicou os seguintes livros: Immaginesimo (1974), La Città Invasa (1978), Incontri con animali straordinari (1992), Il viaggio (1994) e Minatori dell’argento. Lotte agli alogenuri in camera oscura (1994). Contato com Roberto Salbitani:info@scuolafotografianatura.it. Contato com Luciano Bonuccelli: lucianobonuccelli@gmail.com. Página ilustrada com obras de Luciano Bonuccelli (Itália), artista convidado desta edição de ARC.
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