1. HÉLÈNE CIXOUS
Nascida em 1937 na cidade de Oran, Hélène Cixous descobriu a França em 1955, dada a expulsão de seus pais da Argélia, devido à perseguição antissemita. Nesse ano, afirma ter adotado uma nacionalidade imaginária que é, aliás, a de vários outros escritores – a nacionalidade literária. Anglicista e especialista em Joyce, Hélène Cixous foi amiga de Jacques Lacan (1901-1981), assim como de Jacques Derrida (1930-2004). Teve participação decisiva na formação da Universidade de Vincennes, onde criou o Departamento de Estudos Femininos – que foi o primeiro da Europa –, e é considerada uma das mães da teoria feminista pós-estruturalista. Sua obra literária é considerável: poesia, romance, teatro, ensaio. Com o ensaio L’heure de Clarice Lispector (“A hora de Clarice Lispector”), divulgou a obra da escritora brasileira na França e, em 1989, recebeu do Brasil a Ordem do Cruzeiro do Sul por sua contribuição à difusão da nossa literatura. Embora publicada pela editora Gallimard em 1950, Clarice Lispector permaneceu desconhecida na França até 1976. Hoje é muito lida. Foi redescoberta, por um lado, graças à Editions des Femmes, que readquiriu os direitos de publicação da obra, e, por outro, graças ao trabalho apaixonado de análise e divulgação feito por Hélène Cixous, autora do primeiro ensaio de fôlego publicado no exterior sobre a nossa escritora. Para saber um pouco mais sobre Lispector, fui ouvir Hélène Cixous, que me deu uma entrevista no seu apartamento de Paris. [BM, 1982]
BM Foi necessário muito tempo para que a maior escritora brasileira fosse descoberta na França. Na sua opinião, a que isso se deve?
HC Acredito que ela tenha sido vítima de um recalque causado por fatores tradicionais na França, que não é muito receptiva aos textos estrangeiros. Ademais, acho que a obra de Lispector é monumental, de uma profundidade e de uma importância inusitadas, e o estado da literatura francesa é tal que o leitor médio, o da mídia, do jornalismo, é pouco capaz de segui-la. Ela escreve textos que têm uma mensagem cujo teor é quase filosófico e isto não é aceito na França, atualmente. Passamos por uma regressão extraordinária no mundo da literatura. Havia ainda, logo após a guerra, textos dessa qualidade intelectual. Agora, não há mais.
BM Será que você poderia dizer o que torna Clarice Lispector tão difícil? O fato de ser um pensamento metafísico, o estilo, o quê?
HC Tudo, eu acho. A começar pelo fato de ser uma mulher, de ter o handicap, a desvantagem que nós conhecemos. Em seguida, eu diria que é o fato de escrever um texto inteiramente marcado pelo que poderíamos chamar de “feminilidade libidinal”; é uma intensidade que a torna difícil para a maioria dos leitores, que são classicamente misóginos. Penso sobretudo em textos como Água viva, modelo de inscrição de uma feminilidade libidinal no nível formal. É um texto que não começa, que não termina, constituído de inúmeros começos;é uma enorme corrente de água, uma água viva, um texto que não tem limite, moldura, que pede uma leitura diferente. Uma leitura que seja uma aventura, como o próprio texto, em que é necessário mergulhar. Trata-se de um movimento que as pessoas não têm o hábito de fazer. Isso no nível formal. Mas no nível do conteúdo é a mesma coisa, aquilo de que Clarice fala é absolutamente subversivo em relação à mentalidade média, ela sempre se interessa, por exemplo, pelo que há de menor, de mínimo. O maior, para ela, é o menor, o mais extraordinário; o sobrenatural é o natural etc. Enfim, ela inverte permanentemente os valores e explicita o seu projeto no momento em que o realiza. Assim, se opõe completamente ao sistema de valores clássicos. A ordem, a organização à qual todo mundo se refere não existe. Se quisermos ler a história de alguém, não a encontramos. Aliás, ela sempre diz que não escreve histórias, e sim fatos simplesmente.
BM É problemático falar de economia libidinal da feminilidade. Há quem diga que não existe uma escrita feminina. Seria possível explicar o que é a economia libidinal da feminilidade?
HC Não me refiro a uma oposição masculino-feminino, que reenviaria a homem e mulher. Mas, por razões de época, mantenho com aspas adjetivos como “masculino” e “feminino” para caracterizar as economias libidinais que podemos fazer surgir, observar e que são diferentes. Vemos essas economias manifestarem modos de ser, quer na vida cotidiana, quer nas produções discursivas em geral.
BM Como situar a diferença no texto?
HC Nem sempre é claro. Mas, se tomarmos, por exemplo, a questão dos gêneros na literatura, há uma economia libidinal literária que produz o gênero do romance, quer dizer, algo construído, organizado, apropriado, delimitado e que obedece a certas regras, tem um começo, um meio e um fim. Eu diria que são caixinhas e que a economia masculina se compraz em enquadrar, reter, ordenar um espaço. Em contrapartida, encontramos, numa outra economia, textos que não são caixinhas, que estão fora da moldura, não são passíveis de ser enquadrados, estão sempre em aberto, e, contrariamente àquilo que se deixa enquadrar, existem num movimento, numa continuidade. Ocorre que são sobretudo as mulheres que produzem esse tipo de texto, ao mesmo tempo jubilatório e angustiante, como tudo o que recomeça incessantemente.
BM Como a fruição feminina?
HC Exatamente. E é verdade que isso cria um problema, tanto para aqueles que escrevem como para aqueles que leem. A continuidade coloca o problema da sua interrupção. São problemas vitais e inteiramente literários, técnicos, são problemas de que Clarice Lispector trata com uma acuidade inacreditável. Quando há uma continuidade, quando há um fluxo e uma potência vital que o sustenta, como em Água viva, então, não vemos por que parar de repente. O que faz parar é uma perda de fôlego num determinado momento ou uma preocupação com o outro, e daí o texto para. O admirável é que ela para arbitrariamente. Não para porque construiu um modelo arquitetado, que seria geométrico ou matemático, equilibrado como as dissertações que nos ensinaram a fazer. O texto segue o ritmo do corpo. Bem, agora eu paro, diz ela. Diz e faz. Eu paro, eu recupero o fôlego, tomo uma xícara de chá e recomeço. É algo que está o mais perto possível do corpo, que o mima, quando a literatura em princípio recalca o corpo.
BM Onde situaria Joyce nisso tudo? Sei que estamos aqui para falar de Clarice Lispector, mas, como Joyce a interessou tanto, gostaria de saber onde o situaria.
HC Ele me interessou na medida em que ousou tomar certas liberdades com a língua. Porém, o tipo de mensagem que ele faz passar não me agrada. Num certo nível, ele é totalmente reacionário. É um homem clássico, o lugar da mulher na obra dele é bem pouco invejável. Verdade que ele analisou as estruturas familiares de modo admirável, mas, no fundo, só fez isso. Questionou e reproduziu ao infinito o drama familiar de uma maneira engraçada, magnífica mesmo, só que nada descobriu de novo. Foi no nível da língua que ele desenvolveu seu trabalho – aliás, no limite da língua. Joyce ousou aplicar descobertas que já existiam e que diziam respeito ao significante, à sua riqueza, à sua polissemia etc., como, por exemplo, as descobertas de Mallarmé. Não ignorava as tradições europeias de trabalho com o significante, que ademais existiam na Inglaterra renascentista. Shakespeare trabalhava com o significante. Mas antes de Joyce ninguém havia feito desse trabalho a regra geral do texto. Ele generalizou o trabalho de “tormento do significante”. Os efeitos disso são fabulosos, é importante para quem escreve.
BM O tormento de Clarice é de outra ordem...
HC Não tortura o significante, pelo contrário. Posso me enganar, porque o meu conhecimento do português é insuficiente, mas me parece que ela trabalha a frase, o parágrafo, tem uma relação com a pesquisa formal, a sintaxe, a elipse etc. etc. Não é diretamente no nível da palavra que ela opera. O que ela faz, e é isso que é absolutamente admirável, é filosofia poética ou poesia filosófica. Enfim, algo que eu nunca vi em outro lugar. E só há uma pessoa no mundo que produziu textos tão densos, foi Kafka. Só que ele inscreveu tudo no nível da alegoria, ele alegoriza o real para chegar a produzir efeitos de sentido, faz dele uma fábula. Para Lispector, o real é, em si mesmo, portador do sentido mais fino. Só os filósofos fizeram o que Clarice faz, mas sem a liberdade que ela, como poeta, tem. Às vezes eu me dizia que ela parecia Heidegger. Há, por exemplo, um trabalho sobre “a coisa” que tem a força, a potência, a precisão do discurso filosófico heideggeriano. Ela ousa casar, ousa celebrar o casamento da escrita mais leve, quase oral, com o pensamento mais profundo. E é absolutamente excepcional.
BM Escrita oral?
HC Sim, porque tenho a sensação de que ela tem uma maneira direta de escrever que tem a ver com o relato. E ela recupera na escrita, o que é muito raro, muito feminino, a economia oral. No limite, poder-se-ia dizer que, para chegar a escrever como se fala, é preciso levar a escrita ao ápice. Mas eu digo isso porque um dia vi na televisão um filme sobre a Bahia e havia gente do povo que tinha uma fala de uma grande beleza e eu me disse que, no fundo, Clarice Lispector tinha fontes locais extraordinárias. Eram mulheres que, na fala mais simples, tocavam no coração da vida... É épico, é a epopeia popular contemporânea, coisa que nós não temos na Europa. Por tudo isso, é impossível ler Clarice Lispector rapidamente. Ela pede um verdadeiro trabalho de leitura e as pessoas em geral não leem assim, sobretudo quando se trata de literatura. Se se tratar de filosofia ou de textos psicanalíticos, dizem a si mesmos que é preciso prestar atenção, refletir. Porém, quando leem literatura, não se detêm. E com Clarice Lispector é preciso não ter pressa.
BM Como foi que a descobriu?
HC A Editions des Femmes quis fazer o público redescobrir Clarice Lispector. Ela havia sido publicada na França, mas sem eco algum. Chegou mesmo a desaparecer, e a Gallimard, que detinha os direitos, não mostrava nenhuma intenção de continuar a publicação de livros considerados sem interesse para a sua política comercial. Um dia, Antoinette Fouque, da Editions des Femmes, me falou do projeto de comprar os direitos autorais da Gallimard. Depois, Regina de Oliveira Machado, que se tornou tradutora de Clarice Lispector, me mostrou algumas páginas de Lispector em que ela estava trabalhando. Posteriormente, li numa antologia de textos de mulheres brasileiras publicada pela Editions des Femmes um pequeno fragmento de Água viva e fiquei abismada, achei aquilo sublime. Não acreditei no milagre e me disse que não ia acreditar, sem mais nem menos, que existia uma obra com a qualidade daquelas páginas. Depois, saiu A paixão segundo GH, pela Editions des Femmes, e foi decisivo. Admiti que era para mim o maior escritor contemporâneo. Para uma mulher que escreve, Clarice Lispector é uma iniciadora, abriu um território que eu sequer imaginava adentrar um dia. Para trabalhar sobre a feminilidade e a escrita, eu sempre me valia de textos de homens nos quais a feminilidade aparecia.
BM Quais?
HC Textos de todos os tipos e sempre em edições bilíngues. Kleist, os românticos alemães em geral. Trabalhava muito com Rilke, com a poesia, textos ingleses, Shakespeare... Enfim, eu estava sempre retrabalhando textos de homens, o que politicamente não era prático. Era incômodo não encontrar exemplos de economia aventureira em textos de mulheres, e eu andava um pouco triste. Clarice me salvou e me deu um universo.
BM Você acha que o interesse por ela na França é devido a uma leitura reveladora?
HC Acredito que contribuí para isso. Desde 1978, trabalho ininterruptamente com os textos de Clarice, falo deles em todo lugar... Há dezenas de teses que se fazem no Canadá depois que fui fazer conferências sobre Clarice, que simplesmente não existia lá. É a mesma coisa nos Estados Unidos e na França. Não para mais. É incrível! O texto de Clarice responde a uma necessidade e, por outro lado, também era preciso que houvesse um mediador.
BM É frequentemente assim?
HC Talvez. Eu diria que é a questão do amor e da transferência. Se começo a dizer com toda a minha força que amo o que ela faz, isso produz efeitos desse tipo. Penso numa cadeia transferencial – e que é maciçamente feminina. São as mulheres que a leem; os homens, menos. Fiz os homens que eu conhecia lerem Lispector. Eles são bem menos abertos do que a maioria das mulheres. Isso é curioso, porque eu não considero que Clarice se enderece especificamente às mulheres.
BM Você poderia falar dos problemas de tradução que o texto da Clarice traz?
HC Inicialmente, compreendi a língua de Clarice a partir do latim, quando o francês está muito longe do latim. Há um trabalho da subjetividade inteiramente diferente, porque o sujeito pode estar implícito no verbo, o que não acontece no francês. Há mil elementos da língua portuguesa no Brasil que favorecem o projeto filosófico de Clarice Lispector. Na tradução, somos obrigados a acrescentar o sujeito, porque o francês não tolera uma frase em que o sujeito esteja ausente. A força do português do Brasil me fascina. Quando penso que no francês não temos gerúndio! É uma verdadeira loucura. Temos que encompridar as frases por causa disso. Clarice sabia o que o português do Brasil permite, como eu sei o que o francês interdita, porque tenho origem linguística diferente. Na minha infância, falava alemão e depois, inglês. O trabalho que Clarice fez é um trabalho total, uma obra em que não falta nada. Há mesmo elementos romanescos, embora os livros dela não sejam propriamente romances. Há todos os gêneros, mas o gênero não é um fim em si, é antes um resquício de uma forma antiga.
BM Um resquício de uma forma antiga?
HC Sim. Se tomarmos A maçã no escuro, podemos acreditar que se trata de um romance. Aparentemente, é um romance. No limite, poderíamos dizer que é um romance à maneira americana, de Faulkner, por exemplo. E não é isso. Em A maçã no escuro, o elemento romanesco é apenas um dos elementos do texto. Cada página é, em si mesma, uma espécie de meditação filosófica.
2. ÉDOUARD GLISSANT
Originário da Martinica, onde nasceu em 1928, Édouard Glissant estudou na França, formando-se em etnografia no Museu do Homem e em história e filosofia na Sorbonne. Nos anos 1950, o seu papel no renascimento cultural negro-africano foi fundamental. Com o primeiro romance, em 1958, ganhou o Prêmio Renaudot, que lhe valeu a consagração literária. Por ter fundado, em 1959, a Frente Antilhano-Guianense, de inspiração separatista, foi expulso de Guadalupe – ilha do Caribe colonial francês, hoje com status de províncias de ultramar, como a Martinica – e passou a residir na França. Ao voltar para a Martinica, em 1965, fundou um estabelecimento de ensino, o Instituto Martiniquense de Estudos, e uma revista de ciências humanas, Acoma. Desde então, sua obra não parou de crescer, sempre testemunhando as particularidades da cultura das Antilhas. Em 1991, ele recebeu o Grande Prêmio Roger Caillois de poesia e, em 1994, a editora Gallimard publicou Poèmes complets(“Poemas completos”). No Brasil, existe tradução de seu romance O quarto século. Segundo Édouard Glissant, é preciso que o escritor esteja atento ao grito do mundo e a literatura possa se enriquecer com o imaginário dos povos pela repetição dos temas da mestiçagem, do multilinguismo e da crioulização. Para ouvi-lo falar sobre esses temas, entrevistei-o em Lisboa, no contexto da reunião do Parlamento Internacional dos Escritores, de cujo conselho ele é membro. De uma a outra resposta, ele me surpreendeu pela modernidade do seu pensamento, que tanto justifica o prestígio de Glissant na Europa quanto nos Estados Unidos e só pode atrair o intelectual brasileiro. [BM, 1995]
BM O que é a literatura para o senhor?
EG A literatura é a possibilidade de exprimir o que é difícil, ambíguo, impossível. A literatura é sempre, aliás, uma procura de impossíveis. A situação do mundo cria novos campos para o exercício literário. Não se trata de fazer uma literatura aplicada, mas de ser sensível ao que se passa no mundo, detectar, no que chamo de caos-mundo, as variações e as invariantes.
BM Nós, brasileiros, assim como os antilhanos, não somos praticantes da escrita e sim da oralidade; não tendemos a ter leitores, mas ouvintes. O escritor brasileiro, como o escritor antilhano, contraria a tendência natural da cultura do seu país, pratica o seu ofício na contracorrente. A posição dele é particularmente difícil, e ele é, por definição, um combatente. O que justifica esse combate, na sua opinião? Por que insistir na escrita?
EG Se nós nos reportamos às civilizações antigas, nos damos conta de que, no momento em que a escrita aparece, ocorre a passagem de uma para a outra. Os textos do Antigo Testamento, por exemplo, foram primeiro ditos e depois escritos. Durante dois milênios, vivemos com a ideia de que o escrito é transcendente em relação ao oral. A civilização oral foi considerada inferior. Hoje, com a emergência das velhas culturas orais – na África, por exemplo – e com o cinema e a televisão, nós deixamos de considerar que a oralidade é inferior.
BM Mas o que justifica um antilhano ou um brasileiro escrever, contrariar a tendência natural da própria cultura, que é a oralidade?
EG Se não fizermos a experiência da escrita, nós entramos na modernidade com algo a menos. Seria melhor mostrar que a escrita pode se tornar mais interessante com as técnicas da oralidade. O melhor é tender para soluções de síntese, e não de fechamento. Quando escrevo na língua francesa, aplico a ela a economia da oralidade, do contador de histórias crioulo, tento construir algo que ultrapassa tudo o que já foi feito; que ultrapassa os próprios gêneros literários...
BM A sua posição resulta na produção de textos que não aceitam os limites dos gêneros e nem obedecem às regras estabelecidas para os diferentes gêneros literários. O mercado internacional tende a recusar esses textos e o escritor tende a desaparecer. O senhor poderia falar sobre isso?
EG Não tende a desaparecer, e, sim, a levar mais tempo para ser aceito. Foi o que me aconteceu na França, onde consideravam que meu texto era difícil por causa da oralidade. Mas pouco a pouco a coisa foi se impondo. O que eu digo hoje é muito ouvido nos meios intelectuais franceses; vinte anos atrás, não era. É preciso se obstinar, não levar em conta as rejeições, que são sempre passageiras.
BM O senhor diz que o conceito, hoje, deve ser fecundado pela imaginação. Seria possível me explicar isso?
EG No início das culturas ocidentais, o pensamento poético era fundamental. Na época dos pré-socráticos não existia separação entre o homem e o mundo. Foi com Sócrates que houve a separação – e o poético, que não separa o homem do mundo, se tornou secundário. Mas em certas culturas africanas, nas culturas ameríndias, a separação não existe, e também no movimento ecológico. O que diz a ecologia? Que se você estraga a terra, o ar, isso faz o homem morrer. Trata-se de uma volta ao poético, a uma forma de conhecimento que não é separável da palpitação do mundo, a um conceito fecundado pelo imaginário. Acho que a falência do pensamento do sistema, do marxismo, por exemplo, favorece um outro modo de pensar, que é mais frágil, porém menos imperativo e menos tirânico. Ao pensamento do sistema, que ignora o tempo, podemos opor um outro que implica a rememoração: o pensamento do traço, única possibilidade de sobrevida no Novo Mundo para os descendentes dos africanos deportados. Não fosse o traço dos deuses, dos costumes e das línguas, esse povo não teria tido como se perpetuar e, não fosse a reinvenção do traço, não poderia fazer o seu gênio se espraiar pelo planeta, com o jazz, as músicas do Caribe e das Américas.
3. ALAIN DIDIER-WEILL
Alain Didier-Weill nasceu em Lyon. Fez medicina e se formou em psicanálise com Jacques Lacan, de quem foi um dos interlocutores privilegiados. A convite do mestre, fez longas intervenções no seu seminário e por isso se destacou no movimento psicanalítico dos anos 1970. Depois da dissolução por Lacan da Escola Freudiana de Paris, da qual Didier-Weill era membro, ele criou com outros colegas Le Coût Freudien e participou da fundação do Inter-Associatif, que hoje reúne mais de vinte associações europeias. Além de psicanalista, é autor de várias peças de teatro, entre as quais O banco e Pol, que recebeu o prêmio da crítica parisiense em 1975 e foi representada em Dublin, Lyon, Montreal e Nova York. Entre suas obras publicadas no Brasil estão Os três tempos da lei, Inconsciente freudiano e transmissão da psicanálise, Invocações, A hora do chá na casa dos Pendlebury. Talvez por ser também um artista, Alain Didier-Weill lançou um livro de psicanálise, Os três tempos da lei, que surpreende pela absoluta originalidade. Didier-Weill ousou fazer o que as associações psicanalíticas tendem a impedir e a psicanálise preconiza: renovar. A partir da sua obra, já não há como ignorar a importância da surpresa, em torno da qual o autor faz girar a teoria psicanalítica, mostrando, por exemplo, que o homem não pode dispensar o jogo e tampouco a arte porque ele precisa se surpreender. Os três tempos da lei torna claro que a verdadeira referência da psicanálise é a arte e é preciso desconfiar dos que se dizem psicanalistas e são dogmáticos. Alain Didier-Weill talvez tenha chegado para dizer, como Édouard Manet, que o fundamental é não fazer de novo o que já foi feito pelos outros, mas autorizar-se a invenção. Para ouvir este psicanalista supreendente, fui ao Rio de Janeiro, onde ele fazia uma série de conferências a convite da associação O Corpo Freudiano. [BM, 1995]
BM Você diz no seu livro que nós precisamos da arte e do jogo para podermos nos surpreender. Como é que você explica esse gosto pela surpresa?
AD-W Precisamos reencontrar a possibilidade de nos surpreender que tínhamos na infância. A surpresa é a irrupção na vida cotidiana de uma experiência que nos priva do que já sabíamos.
BM Mas por que isso é importante?
AD-W Nós que idolatramos o nosso saber descobrimos com a experiência da surpresa que gostamos de ficar despossuídos do saber. O homem tem a nostalgia da infância, da época em que se surpreendia com todas as coisas e se deparava com a novidade absoluta.
BM O que mais o surpreende no Brasil?
AD-W A bossa nova. Há no ritmo da bossa nova – tão contrário ao do tango, que nada tem de surpreendente – uma relação com o tempo que permite cantar sem gritar, como os roqueiros. A bossa nova dá vontade de dançar. A maneira como as mulheres brasileiras andam também me surpreende, é uma dança que vai se esboçando. Eu me pergunto ainda porque há tantos travestis nesse país. Trata-se de algo que eu não compreendo.
BM Você dedica o seu livro a Jacques Lacan, que você também chama de “a nota azul”...
AD-W Dediquei o livro ao meu mestre e à minha amante, a música. Achei interessante associá-los. A nota azul remete ao blues, claro, mas a ideia de associar a nota de música a uma cor me ocorreu lendo uma carta de Chopin, em que ele fala da nota azul como uma nota especial, porque ela propicia o máximo de surpresa.
BM Será que você poderia falar da relação existente entre o psicanalista e o músico?
AD-W Como psicanalistas, nós vivemos no mundo das palavras e trabalhamos com elas. Mas as palavras têm os seus limites. Não conheço, por exemplo, uma interpretação que possa curar uma melancolia ou um delírio. Um analista deve poder ouvir, além das palavras, a música da voz do analisando. Trata-se de algo que não se pode ensinar. Um dia, um analisando me contava uma história que era muito triste, mas ao mesmo tempo ele me fazia ouvir, através da música da sua voz, uma grande alegria. E eu ri. Com o riso, que obviamente não era de zombaria, a pessoa ficou aliviada. Quando eu ri, restituí ao analisando uma alegria que ele tinha e não sabia.
BM Vocé é psicanalista e dramaturgo. Isso não é habitual. O que significa se dedicar à psicanalise e à arte?
AD-W Não existe uma contradição. Na cura analítica, a gente tenta apreender, para além da prosa, as palavras que são verdadeiramente as do sujeito, as palavras que o constituíram e eu chamo de “o poema de cada um”. E, quando o sujeito encontra esse poema, ele pode dar continuidade ao mesmo. O que nós temos de melhor são as palavras do poema que nos criou e nada têm a ver com o discurso universitário.
BM Depois da dissolução da Escola Freudiana de Paris, você participou da criação do Inter-Associatif. Por que e como nasceu esse movimento?
AD-W Quando Lacan dissolveu a Escola Freudiana de Paris, apareceram 12 associações que, durante muitos anos, ficaram isoladas, à procura da sua identidade. Quando esta foi conquistada, surgiu a necessidade de estabelecer uma relação entre elas, construir uma passarela. O diálogo interassociativo evoluiu e nós resolvemos oficializá-lo, criando o Inter-Associatif, que hoje reúne vinte associações europeias. A ideia é criar uma comunidade de psicanalistas que não estejam ligados por um discurso uníssono. Queremos manter a heterogeneidade de concepções.
BM Qual é o futuro da psicanálise na sua opinião?
AD-W Temo o pior e espero o melhor. A psicanálise que Freud nos transmitiu, a da descoberta do sujeito do inconsciente, é o oxigênio de que hoje precisamos, mas ela é algo perecível. Como, aliás, o discurso da tragédia na Grécia, que só durou um século. Com a aparição do discurso filosófico, o da tragédia sumiu de circulação. Só voltou com Shakespeare, muitos séculos depois. Algo de comparável pode agora se passar com a psicanálise. Por isso, eu me empenho em transmiti-la e sou extremamente grato a Lacan, não porque ele tenha feito o retorno a Freud, mas porque nos mostrou como cada analista pode fazer o retorno, à sua maneira.
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Betty Milan (Brasil, 1944). Romancista, ensaísta e dramaturga. Colaborou nos principais jornais brasileiros e atualmente é colunista da revista Veja. Sua bibliografia inclui títulos como O papagaio e o doutor (1991), Paris não acaba nunca (1996), e Fale com ela (2007). Seus 25 anos de colaboração com o jornal Folha de S. Paulo foram reunidos em dois volumes de entrevistas,A força da palavra (1996) e O século (1999). Do primeiro deles selecionamos as três entrevistas aqui publicadas, com o devido consentimento da Autora. Contato: bettymilan@free.fr. Página ilustrada com obras do artista Carlos Colombino (Paraguai).
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