O demônio é o livro, ler é estar possuído.
Daniel Fabre
É preciso estar possesso.
Fausto Marthe (Vzyadoq Moe)
Penso que não há aqui necessidade de definir os múltiplos tipos de leitores possivelmente existentes, já que pretendo apenas falar de um tipo que se define por si mesmo, o tipo de leitor insano. Um tipo raro, mas existente. Dele muitos escritores, e leitores, estão cientes, e eu também, pois sofro dessa patologia. Aliás, mal vista como muitas outras patologias atuais.
Há quase vinte anos o governo brasileiro vinculou na mídia propagandas que mostravam jovens leitores viciados em leitura. Lembro de uma, estampada em revistas semanais, em que mostrava um jovem com o rosto oculto, imagem em preto e branco, e entre aspas “foi a professora quem me viciou”, ou algo semelhante. A relação com as drogas aí era clara, por isso aboliu-se logo das revistas e da televisão tais propagandas de incentivo à leitura.
A presente conjuntura política não aceita insanidades improdutivas, daí ser esse tipo de leitor, que absurdamente o ministério da educação tentou incentivar há vinte anos atrás, raro em território nacional. Ler – refiro-me a livros – num sentido geral, mesmo que falsamente glorificado por todos, é uma atividade quase que clandestina, uma anomalia espiritual. Retirar um livro do bolso, ou de uma bolsa, em lugar público sempre atrai um olhar curioso, não pelo que se vai ler, mas pelo simples fato de se estar com um livro em punho. Isso, exibir um livro em meio à multidão, curiosamente, é uma espécie de bizarria. Os olhares já te julgam um outro, não mais o mesmo de minutos antes. Você se transforma, sofre uma mutação instantânea, no simples ato de exibir um livro em público. E mais bizarro você se torna quanto mais longe esteja de uma cidade universitária. A impressão clássica ainda permanece, aquela de que você deve ser inteligente, mas também é comum a impressão de que você deve ter “tempo” para poder ler, ou seja, ou tem dinheiro ou é vagabundo; desse julgamento não se escapa! Mesmo dentro das cercas universitárias. E aí falam por si os olhares dos professores quando te vêem com um livro que não é de estudo.
Muitos escritores têm colocado a insanidade como tema literário, mas um em especial, me parece, colocou a literatura como uma insanidade em si mesma. Trata-se de Théophile Gautier (1811-1872), num conto intitulado Onuphrius, em que o personagem escritor, “saído do arco do real, lançara-se nas profundezas nebulosas da fantasia e da metafísica; mas não lograra regressar com o ramo da oliva; não encontrara terra seca onde pousar o pé e não soubera reencontrar o caminho por onde viera; quando se apossou dele a vertigem de estar tão alto e tão longe, não pôde voltar a descer como o teria desejado, e reatar com o mundo positivo”. [1] Passando a confundir a realidade com o mundo dos seus escritos, perdeu o controle de ambos. Também o escritor austro-húngaro Arthur Schnitzler (1862-1931), no conto Meu amigo Ypsilon, aborda o mesmo tema. E para não se pensar que isso é mera ficção, é sempre bom lembrar o caso de Honoré de Balzac (1799-1850) que, conta-se, um amigo o encontrou chorando no quarto, e, perguntado sobre o motivo das lágrimas, o escritor respondeu que um de seus personagens havia falecido.
Se a literatura, por um lado, não apenas coloca a insanidade como tema, mas, em certa medida, o próprio artista criador como um insano, por outro, a idéia de leitores e da leitura é apresentada em diversas formas, nos mais diversos autores. Vejamos alguns: O “Selvagem”, personagem de Admirável mundo novo de Aldous Huxley (1894-1963), aprendeu a ler com os livros de Shakespeare e todas as suas idéias são expressas através das falas das peças do dramaturgo. As leituras que “des Esseintes” (personagem de Às avessas de J.-K. Huysmans, 1848-1907) faz, no seu quarto abaixo do nível do chão, onde se isola por mais de um ano, são dos autores amigos do escritor e que ainda hoje podem ser lidos como crítica literária. Quase a totalidade da novela A casa sobre o abismo de William H. Hodgson (1877-1918) é uma leitura que dois amigos fazem, durante uma noite, de um manuscrito encontrado num local onde vão acampar. Um manuscrito completo é o conto de Edgar Alan Poe (1809-1849)Manuscrito encontrado numa garrafa. E ainda um manuscrito é o romance de Yan Potocki (1761-1815) intitulado Manuscrito encontrado em Saragoça. E de manuscritos passamos às cartas e aos diários e à imensa quantidade de romances epistolares, como por exemplo, Werther de Goethe (1749-1832) ou O homem da areia de Ernst Hoffmann (1776-1822), e aos escritos em forma de diários, aos que são supostos manuscritos encontrados em algum lugar, e àqueles em que há referências explícitas a leituras, escrituras e mesmo auto-referências literárias. Podendo ainda acrescentar livros como Dois irmãos de Milton Hatoum, cujo personagem narrador, que se mostra aos poucos o escrevente da narrativa, é um grande leitor, ou ainda os escritos que “falam” com o leitor, como nos Contos de Belkin, de Alexandre Pushkin (1799-1837). E chegamos a conclusão de que a idéia da leitura é interna à literatura. Não apenas o óbvio: escrito é para ser lido, mas algo mais do que isso.
Os artifícios são inúmeros para que um leitor, como eu, possa deleitar-se pelas páginas brancas ou fungosas e amareladas pelo tempo, e insanamente alheio ao tempo. Pois ler, creio, é a forma mais perfeita de matar o tempo.
Quebra | Depois de anos como freqüentador assíduo de bibliotecas, especificamente do setor bellatrix, encontrei-me com uma monumental obra, Panorama do movimento simbolista brasileiro. Foi uma parte importante de minha formação autodidata, pois eu encontrava um mestre: Andrade Muricy. Com ele conheci Bernardino Lopes, Emiliano Pernetta, Pedro Kilkerry, Rocha Pombo, Francisco Mangabeira, César de Castro, Adelino Magalhães e outros mais. E com ele também aprendi a olhar com outros olhos a literatura nacional. Olhos de paixão, não de estudioso. Meu olhar de estudioso sobre a literatura começou recentemente. E deste olhar resultou já uma dúzia de páginas acerca da literatura brasileira excluída das histórias literárias em um texto intitulado A literatura do lado de fora – elementos para uma outra história da literatura brasileira, [2] escrito de um modo perfeitamente acadêmico, e justamente por ter escrito aquele de modo acadêmico, dedico-me agora, em forma menos acadêmica, a esta espécie de auto-análise literária, a esta arqueologia interior, escavando isso que poderíamos chamar de as origens e desenvolvimento do gosto pela leitura, de minha relação com a literatura, ou enfim, de minha insanidade enquanto leitor.
O gosto acima de tudo
| A obra de arte
literária, enquanto objeto-livro, só é apreciada enquanto tal (ou seja,
enquanto obra de arte) fora das muralhas institucionais. Nenhum professor,
aluno ou crítico lê literatura enquanto obra de arte. Para esses, a literatura
é objeto de estudo, de trabalho, enfim, de ganha-pão. Que possa as duas coisas,
arte e ganha-pão, mesclarem-se, é possível, mas no mais das vezes estão a
milhas de distância. Arriscaria mesmo a dizer que a literatura que
transita pelos corredores institucionais, acadêmicos sobretudo, é algo já
selecionado, empacotado e etiquetado com ismos, espécie de produto
de consumo de professores e estudantes, críticos e editores, destinados a teses
e dissertações e objetos de uso e lucro.
A senhora aposentada que vai ao sebo comprar um livro velho para saciar sua sede de leitura, e assassinar seu tédio, ou o jovem punk que, no mesmo sebo, fica abstraído lendo poemas de Augusto dos Anjos, poeta até então desconhecido para ele, não estão movidos por interesses de estudiosos, não possuem eles arcabouços teórico-críticos com os quais farão suas leituras. A literatura aí, enquanto obra de arte, é válida pelo seu conteúdo imediato; se algum verso desagrada, se o estilo não empolga à leitura, o livro não é levado para casa. O que não faz um estudioso, que normalmente compra livros “recomendados pela crítica”, ou pela “área de estudo” ou pelo “ismo” que lhe agrada, lamentando quando o estilo é enfadonho, já que sua leitura é quase sempre obrigatória ou de proselitismo, raramente por um gosto estético ou ânsia de leitura que, via de regra, move o comum mortal amante da leitura literária.
Entre esses últimos sinto que me enquadro: comum mortal amante da leitura literária. E é sob essa perspectiva que me coloco como observador privilegiado da literatura, já que além de comum leitor, sou estudioso institucionalizado. E, no entanto, não foi através da universidade, menos ainda das aulas em colégios, que me deparei com a literatura.
Os sebos, lojas de livros usados, têm um papel importante nesse meu encontro com esta arte suprema. O fato de ali se encontrar obras há tempos não reeditadas, algumas em grafia antiga, edições estrangeiras não encontradas em livrarias (de novos), e normalmente a preços muito inferiores aos dos livros novos, fazem dessas lojas algo acessível e bem mais atraente, visto disporem a raridade do volume único.
Foi num sebo, numa desagradável tarde nublada, no primeiro andar de uma galeria isolada no centro de Desterro, que encontrei um livro de título sonoro: Mocidade morta, em página do qual li no início de um capítulo: “Agrário caíra numa lúgubre invernia de espírito, atormentado pela concubinagem do cambista”. Foi meu primeiro encontro com a arte exótica de Gonzaga Duque (1863-1911). Foi num sebo também que encontrei um livrinho cor de vinho, com uma capa horrível, mas que aberto a esmo mostrou-me os versos: “Amo as tardes idílicas do Norte! ∕ As palavras que nascem sem viver... ∕ Mais um dia que passa e a minha Morte!”. Eu me encontrava aí com o poeta Ernani Rosas (1886-1955). E foi ainda em sebo que me encontrei com a obra da escritora francesa Violette Leduc, com a prosa profana do americano William Burroughs, com a poesia moderna do argentino Leopoldo Lugones, com a intimista poeta russa Anna Akhmátova, com a Angústia de Graciliano Ramos, com a Confissão de Lúcio de Mário de Sá-Carneiro, com a Peste de Albert Camus, com a poesia de Fagundes Varella, com Gide, Maupassant, Garcia Márquez, Gorki, Xavier Marques, Sade, Tchekhov, Nerval, Saramago, William Blake, Boris Vian, etc., etc..
Ao jovem amante da leitura literária que eu fora, e sigo sendo, e sem recursos para freqüentar livrarias de novos, coisa a qual passei a freqüentar somente mais tarde, e tendo chegado à universidade aos vinte e quatro anos, me foi de grande proveito comprar em sebos obras as mais diversas da literatura universal, sem outro critério que o do gosto pessoal, pois que foram elas que me “formaram”, em amplo aspecto, emLiteratura.
Também a assídua freqüência com que estive em bibliotecas públicas ajudou-me muito nessa formação, que outrora era mui comum: a formaçãoautodidata. Pois é esta que tenho em Literatura. Na universidade, quase aos trinta anos, formei-me em Filosofia. Obviamente tenho também amplo desconhecimento “teórico” e “científico” da literatura, pois li muito pouca teoria e crítica literária. O que não deixa de ser importante, pois para mim a literatura permanece imaculada de interpretações. Por isso aqui posso falar como leitor, um leitor pouco comum, mas ainda assim um leitor.
Reminiscências | Na minha infância nunca recebi incentivos para leituras. Aprendi a ler aos nove anos de idade, na escola. Na minha casa havia um único livro: a bíblia cristã. Meu pai era analfabeto; minha mãe sabe assinar o nome e lê precariamente. Quando entrei na escola meus irmãos dela já haviam fugido. Guardo, no entanto, uma lembrança remota que me parece ser uma primeira ânsia pela leitura.
Minha mãe limpava o escritório de uma companhia de seguros. Lembro-me que um dia, era um sábado de manhã, um dos funcionários emprestou-me um gibi para que eu ficasse quieto, imagino, pois lembro também da recomendação dele e de minha mãe, de que não era para “rasgar”. Sentei-me no chão, junto à parede, ao lado de um grande armário de madeira, e comecei a folhear o livrinho. Vendo as imagens coloridas e os balões com palavras que nada me diziam, mas que eu sabia algo dizer, pois minha irmã já me havia lido gibis antes, o desejo de aprender a ler apossara-se de mim. Eu tinha então cinco ou seis anos de idade, e tive que esperar mais três...
Nasci no mês de junho, por isso podia entrar na escola aos seis anos, mas meu pai achou que eu era muito pequeno. No ano seguinte, ele perdeu a data de matrícula. Quando então eu tinha já oito anos, ainda sem saber escrever uma única palavra, entrei na escola, completando então, em junho, nove anos. Não me senti atrasado: ao fim daquele ano fui premiado como o melhor aluno dentre todos das cinco primeiras séries da escola: ganhei uma bola de futebol e a certeza de que as outras crianças do meu bairro eram muito burras.
Na minha cartilha o a era de árvore, o b de bola e o c de casa. Não lembro de ter tido nas mãos algum livrinho infantil além da cartilha. Lembro, no entanto, de uma historinha, contida na cartilha, que se chamava Memórias de um cabo de vassoura e que eu detestava, primeiramente por ser uma baita mentira, sabia eu aos nove anos de idade, que vassoura não podia ter memória, e depois, por que era um cabo de vassoura muito estúpido, pois gostava de ser útil. Digo isso porque me parece ser a primeira expressão de meu gosto literário. Ainda hoje, na proximidade dos quarenta, não gosto de histórias demasiadamente fantasiosas. Gosto, no entanto de histórias fantásticas. Penso que há uma diferença entre ambas.
Outra quebra, de reminiscências | Creio haver alguma importância em gostar ou não gostar de um texto. Pois isso define suas preferências, seus gostos pessoais, chegando mesmo a expressar uma atitude diante do mundo. Minha insanidade como leitor tem suas peculiaridades.
Certa vez fiquei dois dias sem comer porque gastei minhas últimas notas num livro. Isso me aconteceu por duas vezes. Na primeira, numa sexta-feira de inverno, ao passar por um sebo, encontrei um livro sobre o qual já havia lido muito, mas que nunca havia visto, não o encontrara em nenhuma biblioteca. Era Os cantos de Maldoror, do maldito uruguaio Conde de Lautréamont. Comprei-o, pedindo apenas um desconto no valor da passagem do ônibus para que eu pudesse voltar para casa. Na época eu dividia um moquifo com outro estudante que ia para a casa dos pais no fim de semana. Como eu não tinha dinheiro, nem para onde ir, ficava em casa sozinho, lendo alucinadamente. Dessa vez, no entanto, li de barriga vazia até o domingo à noite, quando meu colega retornou com a mochila cheia dos restos do familiar almoço de domingo. Na segunda vez que isso me aconteceu foi por causa da autobiografia de Luis Buñuel, Meu último suspiro. Foram-se nesse livro também meus últimos trocados, e mais dois dias sem comida. É que por essa época, 1995 creio, eu ganhava uma mísera bolsa de trabalho na universidade, que sempre acabava antes do fim do mês, e se eu gastasse com algo que não fosse comida ficava, como se diz, “a ver navios”; principalmente nos fins de semana, quando meus colegas iam para a casa dos pais e eu não tinha a quem pedir o que quer que fosse.
Por essa época, só para acrescentar mais uma reminiscência de minha insanidade como leitor, o estudante que dividia o moquifo comigo era um sujeito com séria dificuldade para se concentrar na leitura de um livro, o que o impossibilitava de concluir a leitura de qualquer livro. Para incomodá-lo, eu fazia uma lista dos livros que iria ler e colava na parede do quarto, à medida que ia lendo, ia fazendo um sinal. E os sinais sobre os livros lidos aumentavam semanalmente. Durante dois meses de férias, janeiro e fevereiro de 1995, eu li o Ulisses de James Joyce, fazendo intervalos em que li uma lista estabelecida antecipadamente com oito livros, entre os quais dois romances de Aldous Huxley, Kafka, Cortazar e outros que já não lembro. Foi o ápice de minhas afrontas ao pobre coitado que não conseguia chegar ao fim de nenhuma leitura.
Detalhe que me parece pertinente acrescentar: esse estudante posteriormente se tornou professor.
É preciso estar possesso | Eu disse que odiava as Memórias de um cabo de vassoura porque era visivelmente falsa. Talvez eu já fosse velhinho demais aos nove anos para ter que ler tais histórias, mas penso que o motivo é outro, pois que o tenho ainda dentro de mim: o gosto pelo que me leva para longe, e que não seja mera fantasia. A grandiosidade da literatura para mim está no fato de me convencer de uma veracidade, de algum acontecimento, de um correr de um tempo outro que não é o meu. Por isso sinto certo desprezo pela literatura realista. Vassouras são algo demasiadamente familiar. Ler o que se passa do outro lado da rua, de tipos que são como meus vizinhos, como pessoas que me são próximas, é demasiadamente enfadonho, e de enfadonho já me basta a realidade da vida, ou da existência, se se preferir um sentido metafísico a este fado.
Muitos dos livros que li me foram profundamente transformadores, primeiramente por serem perturbadores, e depois, por serem dominantes, no sentido em que me dominaram o espírito. Deles fiquei possuído. Considero, no início de minha formação como leitor, um conjunto de livros que me transformaram e, em algum sentido, me instruíram bastante. Dois romances de Aldous Huxley,Geração Devassa e As despedidas estéreis, um romance de Jean-Paul Sartre, A náusea, uma novela de Albert Camus, O estrangeiro, e, em segundo plano, três anti-utopias: A laranja mecânica de Antoni Burgues, 1984 de George Orwell e Admirável mundo novo do já referido Aldous Huxley. Depois da leitura dessas obras, lidas quase que na seqüência, deixei de ler místicos com Paulo Coelho e Carlos Castañeda, romances políticos, como os de Fernando Gabeira, e romances policiais, abandonando até mesmo as leituras da dama do crime: Agatha Christie, da qual li 16 livros. Entre as obras individuais que me deixaram, literalmente, contaminado em épocas diferentes de minha vida e que me marcaram desde então, que foram lidas com a máxima insanidade, posso listar: Os cantos de Maldoror, já mencionado; o romance Mocidade morta de Gonzaga Duque, livro que me arrastou os olhos para os “nacionais”; a singular peça de Samuel Beckett, Esperando Godot; A filosofia na alcova do divino Marquês de Sade; O almoço nu e, mais recentemente, Cidades da noite escarlate, ambos de William Burroughs; o longo poema de Allen Ginsberg, Uivo; O casamento do céu e do inferno de Willian Blake; a poesia decadente de Augusto dos Anjos; e os contos alucinantes de Adelino Magalhães.
Mas como ao longo do tempo, e das leituras foras do tempo, modificamos-nos e nos tornamos mais exigentes e seletivos, penso agora também em algumas das obras lidas nos dois últimos anos, sob o domínio das quais estive por horas e dias a fio: Akhenaton: a história do homem contada por um gato,do historiador Gerard Vincent; A erva vermelha de Boris Vian; Vaca de nariz sutil de Campos de Carvalho; Contos reunidos de Gastão Cruls; e A Eva futura de Villiers de L`Isle-Adam.
É claro que essas listagens não são completas e nem muito certas, visto os efeitos do tempo sobre a memória. Mas o simples fato de ainda agora eu lembrar de personagens, de situações, mesmo de emoções que senti na época em que os li, fazem sua importância sobre meu espírito. Pensando que li doze livros de Gabriel Garcia Márquez, uns quatro ou cinco de Julio Cortazar, todos os romances de Graciliano Ramos, inumeráveis contos de Guy de Maupassant, de Tchekhov e de Gorki, além de Edgar Poe, Pushkin, Rodenbach, Jack London, Jean Lorrain, H. G. Wells, Chamisso, Mérimée, Bioy Casares, Kleist, etc., etc., não sei dizer o quê disso tudo me permaneceu na memória, mas sei que sempre me lembro de alguma história em conversas com amigos ou em situações do dia-a-dia. E de autores muito pouco conhecidos tenho registros memoriais que me parecem eternos. Como a lembrança que tenho do absurdo e maravilhoso conto de Marcel Aymé, O cupom do tempo, do livro O passa-paredes.
Com tantos nomes, tantas histórias, a literatura parece ser um vasto mundo paralelo ao nosso fútil mundinho mercantil. Os livros são passagens para a vastidão do desconhecido, portas que abrimos para mundos muito diferentes do nosso. E quando o livro nos encarna é possível que agimos como aquele patético personagem de Italo Calvino, em Aventura de um leitor, que enquanto a mulher conquistada na praia tira a roupa, ele ainda aproveita uns segundos para poder ler mais algumas linhas...
? | Penso naquele triste poeta apaixonado por uma prostituta que conheci numa tarde em Paris, em A canção dos loureiros de Eduard Dujardin; penso no menino que ficou amarrado pela cintura no fundo de uma mina de carvão em Lota, Chile, em La compuerta número 12 de Baldomero Lillo; penso no sangue frio do inesquecível Lafcádio, de Os subterrâneos do Vaticano de André Gide; penso no excitante vestido vermelho de mãe Dolores, emSobras de Deus de Floriano Martins; penso na senhora que cuida de uma boneca que lhe deram em substituição à filha morta, em La señora de Del Pino de José Pedro Bellan; penso na angústia de Gerard de Nerval trancafiado numa casa de saúde, em Aurélia; penso em Tonio Kröger vendo juntos a mulher que ele amava com o homem que ele amava – dupla impossibilidade –, de Thomas Mann; penso no infeliz destino do enfermeiro Silvino, em G.C.P.A. de Gastão Cruls; penso na indignação de André Breton contra os psiquiatras, em Nadja; penso no boêmio poeta apaixonado por Niní, emO pássaro azul de Ruben Darío; penso no adorável burrinho de Juan Ramón Riménez, em Platero e eu; penso no homem que desafia a ciência moderna duvidando da existência dos átomos, em A vida dos átomos de Pío Baroja; penso nas inúmeras noites sozinho ou na companhia de um amigo, com vinho e maconha, lendo e relendo poesias de Georg Trakl, Junqueira Freire, Paul Verlaine, César Vallejo, Maiakovski, Cruz e Souza, Benjamín Péret, Joaquin Pasos, Florbela Espanca, Arthur Rimbaud, Olga Orozco, Garcia Lorca, Bocage, Alphonsus de Guimaraens, Lucian Blaga, Castro Alves, Charles Baudelaire, Marcello Gama, Novalis, Konstantinos Kaváfis, Emiliano Pernetta, George Bacovia ou outro bardo iluminado, e concluo que a insanidade é inerente à literatura. Sem insanidade não haveria literatura, talvez apenas parnasianismo, formalismo e concretismo, um mundo árido e leitores universitários.
fim
NOTAS
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