A entrevista que se segue foi realizada em
outubro de 2013 em dois momentos distintos: primeiramente, enviei por e-mail as
questões a Cruzeiro Seixas (que à época estava às vésperas de completar 93
anos), às quais ele respondeu pela mesma via de maneira sucinta devido a sua
dificuldade de visão. Num segundo momento, fiz uma visita a sua residência em
Vila Nova de Famalicão, onde gravamos a conversa, de modo que as questões
puderam ser mais desenvolvidas. O resultado que aqui se apresenta é, portanto,
uma mescla das suas respostas escritas com trechos de maior interesse
transcritos a partir desse encontro presencial. Registro aqui a minha gratidão
pela hospitalidade e generosidade com que fui recebida, e a imensa admiração
pelo trabalho criativo e coerência ética deste grande expoente do surrealismo
português. [ACJ]
ACJ | Ao olhar para o surrealismo português, noto com bastante
evidência algumas características nacionais-identitárias. A experiência de
leitura é muito diversa daquela que temos quando lemos qualquer surrealista
francês. Para ser ainda mais central na questão, quando leio seus poemas, o que
mais me chama atenção é a recorrência com que o mar se faz presente... Tendo
isso em vista, o que você diria sobre as maneiras que o surrealismo português
teve de se reapropriar da tradição nacional?
CS | Serei eu um caso especial? Foi lento o meu conhecimento em
profundidade do Surrealismo Francês. Cesariny e os outros amigos não
trabalhavam como eu, que, por isso, dispus de pouco tempo para leituras. Eu não
sou nem um intelectual, nem um artista, essas duas palavras, as recebo como uma
bofetada. Sou um homem entre os homens, nada além. O homem comum deveria ter
paixão pelas coisas, e, no entanto, no máximo, tem paixão pelo dinheiro. Em
1950 embarquei como tripulante de um navio cargueiro e aí andei por cerca de 2
anos. O mar já estava, por certo, dentro de mim pelas navegações históricas (as
referências todas que carrega um português), de modo que a presença do mar nos
meus escritos nunca foi uma atitude pensada, como não o foram outros elementos
da minha poesia, que sempre foi feita do próprio acaso, sem premeditação. As
pessoas são intuitivas ou não são, de modo que há pessoas fantásticas capazes
de absorver determinados elementos do mundo e devolver-nos em forma de criação
ou pulsão surrealista; acredito que a condição social apenas em parte é
responsável pelo que alguém é capaz de fazer em vida. Ainda quanto ao mar, eu
diria que é quotidiano e dele é uma grande parte de nós.
ACJ | Ainda pensando nas peculiaridades do surrealismo em
Portugal, surge essa variação intitulada abjeccionismo, tal como teria proposto
Pedro Oom, que gerou inclusive a publicação de uma antologia organizada pelo
Cesariny. Esse conceito, pelo que pude entender, tem duas frentes de diferenciação
em relação às ideias de Breton: a primeira delas seria de viés epistemológico e
afirma a perpétua renovação das antinomias (enquanto para Breton, persistiria a
crença na possível dissolução destas); e a outra seria uma espécie de adequação
histórica, no sentido de que a abjecção seria a condição de baixeza moral a
qual estaria submetido Portugal sob a ditadura salazarista. Essa segunda frente
é assim expressa por António José Forte: “O que pode fazer um homem desesperado
quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?”. No vídeo “Surrealismo
abrangente”, você manifesta a sua discordância diante desta postura
abjeccionista, justificada com a seguinte citação de Cesariny: “pra frente
puxam os bois, pra cima puxam os homens”. Você poderia desenvolver essa imagem?
CS | Quanto ao abjeccionismo, temo definir-me em relação a ele,
já que me parece por demais ligado ao tempo ditatorial que então se vivia.
ACJ | Em 2007 houve uma exposição da sua obra em Almonte
(Espanha) intitulada “Inventário”, em que você homenageou o Herberto Helder.
Consultei o catálogo, mas não pude perceber a presença de Herberto Helder nas
informações que nele encontrei, de modo que suponho a homenagem como referência
à relação de mútua admiração que vocês mantiveram ao longo dos vários anos da
atuação de ambos. Você poderia falar um pouco sobre essa relação?
CS | O Herberto Helder é senhor de uma representatividade que
não posso ignorar. Dedicou-me poemas que me parecem sinais de encontro no
grande espaço do Surrealismo e, nesse espaço, se notava toda a sua poesia, a
meu ver. Conheci-o em África, já com sua barba, estava ele na tropa, coitado, a
cumprir uma obrigação como muitos outros soldados. Encontrávamo-nos vez ou
outra em cafés, conversávamos sobre a situação política e outras coisas, mas
esse foi todo o meu contato com ele, três ou quatro vezes apenas. Quanto a sua
poesia, é uma torrente cheia de força, de tal modo, que por vezes chega a ser
ilegível; nele a palavra vai como uma inundação que não olha casas ou ruas, é
uma coisa de uma força extraordinária. É uma pena que ele tenha se metido
dentro de sua concha… eu penso que nunca estamos fora demais, estamos sempre
fora de menos, é preciso sair de si.
ACJ | Em 1928, André Breton se manifesta de maneira
escancaradamente homofóbica: “Acuso os pederastas por proporem à tolerância
humana um déficit mental e moral que tende a erigir-se em sistema e a paralisar
todas as atividades que respeito.” O surrealismo em Portugal, diversamente, é
pleno de manifestações homossexuais, como posso notar em alguns de seus versos
e também em alguns versos de Cesariny. Isso me parece um ganho ético (até mesmo
moral...) por parte surrealismo português em relação ao surrealismo francês,
especialmente se levarmos em conta que estes versos circulavam num período de
grande repressão de conduta, tal qual foi o salazarismo... Essa manifestação
por parte de vocês, acaso pode ser considerada uma militância consciente em
favor da causa homossexual? Com essa pergunta eu quero saber se havia essa
preocupação, bem como a consciência de que este era um tema um tanto mal
resolvido entre os surrealistas franceses.
CS | Não há jamais em mim “causa homossexual”. A
homossexualidade foi para mim sempre forma de liberdade contra a sociedade
organizada e por essa via um apuramento da sensibilidade e da consciência. Seja
na sexualidade dita “normal”, seja na homossexualidade, o homem deve sempre
procurar a liberdade, que está por toda a parte. Num determinado contexto
político em que vivíamos, a homossexualidade era vista como uma soma à postura
transgressiva, pois acabava por ser um afrontamento à ordem estabelecida, mas
hoje, acredito que já esteja mais “normalizada”. Para mim, nunca houve dúvidas
de que em qualquer contexto (fosse ele ou não hostil), a homossexualidade seria
a minha grande porta para a liberdade, uma das minhas portas, ao menos. O
Desnos também era conhecido pela homofobia. Há mil formas de ser homossexual,
como há mil formas de não ser. O Cesariny, por exemplo, era completamente
diferente de mim na sua maneira de ser. Aliás, ele era um gênio e eu não.
Deixou-me uma grandíssima saudade… e, claro, o nosso Rimbaud, que morreu aos 24
anos, o António Maria Lisboa. Ele estaria no mesmo plano de grandeza do
Cesariny. Depois houve pessoas interessantíssimas como o Mário Henrique Leiria
e o Fernando Alves dos Santos (sobretudo esses dois), que têm obras muito
dispersas, de modo que se torna difícil persegui-las. Mas voltando ao tema: a arte como um ato de
VIDA (esta palavra que está acima de todas as outras).
ACJ | Noto que o corpo, a presença do corpo e a ideia do corpo
enquanto fundamento da existência são presenças constantes tanto na sua pintura
quanto nos seus versos e, de maneira mais abrangente, aparecem com frequência
na criação dos demais autores surrealistas. Eu gosto de ver nessa materialidade
corpórea uma resposta surrealista ao racionalismo cartesiano... Você diria que
esse foi um empenho de vocês?
CS | A alma e a razão só me interessam se forem realmente
surrealistas [risos]. Eu não acredito muito nas religiões, elas não me tocam
muito. Reconheço a religião como uma característica extraordinária da
humanidade, mas não consigo me agarrar a isso. O corpo é meu templo (essa minha
devoção pelo corpo…). E, realmente, toda a minha
esperança vai para o homem como ele é, com seus defeitos, virtudes e inúmeras
possibilidades. São MUITAS as possibilidades para além da razão. É uma pena
estarmos num momento da civilização, em que não se segue em frente… depois de
haver figuras extraordinárias como Freud, que sem dúvida nos ensinou muitíssimo
sobre a humanidade, e em seguida o surrealismo que nos abriu portas imensas…
Mas as portas todas dão em caminhos tão vastos, que as pessoas ficam tontas e
não sabem muito o que fazer com isso.
ACJ | Enfim, a África, e a
importância que um modo de existência não eurocêntrico/ cartesiano, deve ter
assumido na sua forma de ser surrealista, como fica evidente nessa sua
expressão ao fim do livro Viagem sem regresso: “Devo talvez ainda justificar que todos os
poemas sejam datados de ‘Áfricas’. Isso acontece por identificação moral e
física minha com aquele continente, primeiro quando colonizado, agora sofrendo
outras tiranias. É com África que completamente me identifico”. Eu gostaria que
você falasse sobre essa identificação em relação a um povo vítima de tiranias
diversas, como você diz.
CS | Quanto à África e considerando as minhas dificuldades de
visão, considero como válido o texto que transcreve do livro “Viagem sem
regresso” que me parece guardar ainda a atualidade. Nunca penso num poema como
um propósito. Eles tiveram o seu tempo de vida, no meu caso, coincidente com o
tempo de África. Na verdade, não sou alguém que viajou procurando itinerários,
mas sim alguém que a eles foi obrigado, na maior parte das vezes. Nunca
consegui permanecer em Paris mais do que 15 dias – o que era muito pouco para a minha fome de
contactos.
ACJ | O Floriano Martins, responsável pela apresentação da
publicação brasileira de alguns dos seus poemas, [1] falava, ainda há pouco, a propósito do surrealismo e das
viagens: "(...) Viajar para fora do
mundo e para dentro do homem. O Surrealismo se torna então um movimento
conquistador das distâncias insondáveis, não apenas daquelas imersas na alma
humana, mas também a geografia tangível (...). A fatalidade da viagem é que ela
não se esgota em suas vertentes, não se limita a seus mapas impressos, nem
mesmo nega os limites rascunhados alheios a toda confirmação. As viagens do
Surrealismo são antes de tudo a confirmação de uma inquietude (...) O outro
lugar sempre foi uma meta do Surrealismo, ponto incomum onde as estranhezas se
identificam; terra em que assimilamos as dissonâncias como parte de nossa vida. (...)”. [2] Pensei que essa reflexão viria a calhar para pensar na sua
atuação, já que – você poderá nos dizer – as viagens foram sempre constitutivas
do seu modo de ser surrealista, certo?
CS | É bom lembrar amigos como Floriano Martins e poder declarar
a minha coincidência com o que ele escreveu. Como acabo de dizer, não sou
alguém que viajou procurando os seus itinerários, mas minha condição financeira
o impunha. Minha poesia foi toda feita em África, depois que pus os pés na
Europa não escrevi mais nada. E deu naqueles três livros que a Isabel Meyrelles
publicou. Estão ainda por aí, numas pastas, coisas que davam para dois livros
pelo menos. Na minha atuação criativa posso com certeza afirmar uma grande
liberdade, já que nunca estive a pensar em ganhar dinheiro com ela. Disso advém
consequências, pois estou numa condição péssima, faz-me falta meia dúzia de
coisas (não digo uma dúzia) para viver um bocadinho mais intensamente. Gostaria
de ir ao Brasil, por exemplo. A minha avó materna era brasileira e falava muito
no gerúndio “estou fazendo”, “estou dizendo”…, era uma coisa de que eu achava
muita graça.
ACJ | Sobre os objetos artísticos, fiquei muito sensibilizada em
dois momentos de contato com as suas reflexões: ao entrar em sua casa pela
primeira vez, você me mostrava paredes e estantes plenas de obras de artistas
amigos, de objetos encontrados: a sua coleção afetiva (assim você dizia...).
Você apontava: “são meus amigos, meus companheiros”. Algumas semanas depois,
quando assisti ao documentário “Surrealismo abrangente”, registrei algo muito
parecido: ao tratar de um quadro do Raúl Perez que se encontra ao abrigo da
Fundação Cupertino Miranda, você dizia: “Eu gosto imenso deste. Tenho uma
saudade imensa deste quadro”. Esse seu modo de acompanhar-se da arte é também
um modo de personificá-la, de humanizar o objeto artístico... Será este o
objetivo maior do surrealismo: um humanismo abrangente? Em que o amor é
expandido de modo a suplantar as barreiras mais sólidas que erguemos entre nós
e tudo o que nos rodeia?
CS | Há um problema crucial, de maior importância e é este que
eu gostaria que fosse sobretudo notado em nossa conversa: a pintura deve deixar
de ser tida como uma coisa que se pendura na parede de um museu e ali
permanece. “Ai, que bem que ele pinta o céu”, “Ai, que bem que ele pinta nossa
ALMA”… A partir de Picasso, de Magritte, de Max Ernst, de toda essa gente, a
pintura deixou de ser estética para ser uma ordem social e política, está ali
para que os homens se questionem e consigam reelaborar o futuro.
ACJ | Ainda sobre as barreiras... Penso que uma das barreiras que
mais imperiosamente se coloca é aquela que delimita o espaço do eu, do ‘corpo
próprio’. O surrealismo de modo geral e o surrealismo português em particular
se propuseram romper, de alguma maneira, com essa barreira por meio dos
agrupamentos, da criação conjunta, da formação de um coletivo. A despeito das
diversas desavenças que marcam a história do surrealismo mundial, eu olho para
a sua trajetória e mesmo para a trajetória do Mário Cesariny (e aqui me refiro
mais especificamente à trajetória poética) e percebo que ela está marcada
fortemente pela imagem do indivíduo, do ‘eu’, embora haja sempre um ‘tu’, ainda
que um ‘tu’ distante... Você tem qualquer coisa a dizer a esse respeito?
CS | Tanto quanto sei, em mim, no meu corpo, o outro está obsessivamente
presente. Há, dentro de mim, amigos e inimigos. O Grupo Surrealista de Paris
que foi, de certa maneira, exemplo de todos os outros, deixou histórias de
lutas entre os surrealistas que o compunham. Aqui, com todas as dificuldades do
regime político, alguns intitularam-se surrealistas (pessoas que, a meu ver,
eram por demais próximas de um academismo que nos parecia insuportável, do qual
sobressai António Costa). Assim, em 1949, sob a designação de “OS SURREALISTAS”
fizemos a nossa primeira exposição tendo eu – o mais velho de todos – 29 anos. Como poderia o Surrealismo aqui ter
começado mais cedo?
Correspondo eu às suas
perguntas? De maneira que direi novamente que não, nunca foi a minha razão ser
um intelectual, mas sim um HOMEM ENTRE OS HOMENS. Como poderia ser de outra
forma se não frequentei liceus, faculdades e academias?! Espero que os outros
interpretem o que fiz. Cada traço, cada pincelada ou cada palavra escrita
espera e deseja interpretação. A interpretação ou o “ensaísmo” são para mim a
maior prova de “AMOR LOUCO” que exigia André Breton.
NOTAS
1. SEIXAS,
Cruzeiro. Homenagem à Realidade. São
Paulo: Editora Escrituras, 2005.
2. Revista InComunidade. Porto, 22/10/2013.
***
Entrevista originalmente
publicada na revista Desassossego #
13. São Paulo, 2º semestre de 2015. Ana
Cristina Joaquim (1984). Mestre em filosofia (UNICAMP, 2011). Autora de Polifemo (2014) e Gama cromática (2015), o primeiro deles em parceria com Antonio
Vicente Seraphim Pietroforte.
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