Dos que lerem este texto [1] alguns vão por certo achar que falo excessivamente de mim; mas
eu julgo que é através de nós, que de fato falamos dos outros.
E quanto à pintura,
afigurasse-me que ela envelheceu muito rapidamente; Bosch, Monsu Desidério,
Matias Grunewald, Turner ou Chirico, parecem-me muito mais atuais do que muita
pintura atual. O mesmo direi da pintura que vi em dolmens da região de Viseu, ou
nas portas das cubatas dos pescadores na ilha de Luanda.
Falar desta insatisfação
tem talvez a ver com a procura de desrazões para esta dissonância que hoje nos
atravessa. Por exemplo, esta prática sistemática das especializações não
esconde e aliena o todo? Só o todo pode ser coerente; esquecemos a grandeza do
todo quando o desmembramos em mil pedaços. É talvez necessário saber menos, mas
adivinhar mais. Ou então admitir que, quanto mais nos aproximamos, mais longe
estamos de chegar. A poesia é talvez a única chave possível, para uma fechadura
que não há.
Desde há alguns anos a
esta parte fui abandonando a pintura, mas não deixo de por a hipótese de que
tenha sido ela a abandonar-me a mim. A verdade é que o nosso relacionamento
nunca foi fácil, durante um convívio começado nos distantes anos 1937/1940.
Lembro que na Escola António Arroio chumbei durante três anos em desenho, e não
sei ao certo se isso aconteceu por eu ser irrequieto, ou por evidente
inabilidade. O que sei é que nunca aprendi nada com professores; quando enfim
comecei a ter notas altas em desenho, foi por que ao meu lado desenhava um
colega de que hoje não se fala, o António Pimentel Domingues (filho do escritor
António Domingues), e era a olhar para o trabalho que lhe saía naturalmente das
mãos que aprendi o que aprendi. Quanto a todo o resto, fiquei autodidata. Por
vezes lastimo não ter aprendido inglês ⎼ mas não mais do que
lastimo não ter aprendido árabe, russo ou quimbundo.
A minha vida sempre
andou por si própria. Eu pouco fiz. E se isso é de certa maneira
desconfortável, pois me pergunto quem afinal viveu a minha vida, por outro lado
sinto a passagem de uma qualquer magia. Sou de fato muito mais escurecido de
metafísicas do que iluminado de humor. Método nunca o tive; quando começava a desenhar
ou pintar, muito raramente tinha uma ideia nítida do que ia fazer. Esquecia
ensinamentos e teorias, não pensava em pintura, era o amor, a morte, o
desespero, as pessoas que conheço e principalmente as que desconheço, o que me
tomava. Uma pedra, um parafuso, um copo ou uma nuvem, parece dizerem-me sempre
mais ou tanto do que me dizem uns e outros. Os desenhos, as pinturas, as
colagens e os objetos que fiz, não estiveram nunca ligados a um qualquer tema;
o que tinha presente no ato de desenhar ou pintar (como quando não desenho ou
não pinto), é a totalidade do mundo que posso imaginar. E por certo os meus
sonhos e falhanços, tudo o que me pode dar a medida do homem, e da sociedade
que criou. No entanto, a minha frágil mensagem está feita… e chego a invejar os
que nela encontram alguma satisfação para as suas fomes. Acho que nesta minha
passagem pelo mundo não foi de fato possível perfazer uma obra. Tratou-se antes
de uma espécie de reconhecimento do terreno. Voltarei talvez para tentar
ultrapassar a dor, o espanto, a confusão, que desta vez me tomaram.
Nada disto são coisas
para serem compreendidas ⎼ e de resto detesto o que compreendo. Mas se há
uma experiência em que nada se aprendeu, essa é a minha experiência. Cada um
dos meus desenhos é para mim, que nada sei de matemática, um problema
matemático, não resolvido, mas apenas equacionado. Só passados uns 15 anos
sobre a criação do ser que é na parte inferior homem e na parte superior
cavalo, me apercebi de que Magritte tinha feito o mesmo em relação a outro ser,
que é na parte inferior mulher, e na parte superior peixe. É evidente que num
caso e no outro isto pode parecer coisa pensada, inversão simples e fria do
fauno ou da sereia, mas no meu caso, repito-o, foram necessários muitos anos
para me aperceber dos parentescos possíveis. E quem me acreditar, de certa
forma está a colaborar na invenção poética destes seres, que podem muito bem
ser nossos distantes antepassados, ou nossos próximos descendentes. Mas sei que
há pessoas tão infelizmente desgraçadas que quando falam de cabelo falam de
cabelo, quando falam de água falam de água, quando falam de si falam apenas de
si.
A pintura que fiz foi
tanto quanto possível indiferente ou mesmo hostil à arte, ao mercado, a
elogios. E nela não afirmo nada, antes duvido, pergunto, deponho, glorifico a
dúvida, e principalmente presto testemunho. O desejo mais algo do meu trabalho
é justamente que ele seja um testemunho. Naquilo que desenho ou pinto, a outros
seres ofereço o amor tão excessivo como intenso, que aqui foi recusado. Procuro
outros encontros, narro locais de desencontro, verifico a insuficiência das
ferramentas que possuo, a fragilidade do vulcão, a vulnerabilidade do tigre.
Quero olhar o dia a dia nos olhos, insatisfeito, como se olham os amantes. Na
verdade todas as coisas têm asas, e sexo…
E há ainda as estórias
da história: o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian tem umas
30 obras da minha autoria, que na sua maioria não me foram adquiridas a mim
diretamente, e que raramente são mostradas. Pode-se dizer que o CAM existe nas
caves!
Como estória das
histórias quero acrescentar ainda que, ao meu profundo otimismo chamam as
pessoas pessimismo, como chamam modéstia exemplar à extrema vaidade minha de
nada esperar dos meus contemporâneos. Daqui a 50 ou 100 anos é que se vai saber
a parte possível de verdade existente no que fiz.
Reconheço que erro
muito.Imagine-se que compreendo mal os que entrar para o atelier às primeiras
horas da manhã e dele saem ao fim da tarde, como qualquer funcionário exemplar.
A minha admiração maior vai para o D'Assumpção que teve propostas de algumas da
melhores galerias da Europa, e continuou a pintar dois ou três quadros por ano.
O meu atelier foi a rua.
Mas ninguém por certo
exige de mim justiça, pois espero que seja evidente que não acredito nela. Tomo
a vida como tomava o óleo de fígado de bacalhau da minha infância.
Depois disto o humor que
persiste é realmente pouco, mas, mesmo assim posso dizer que antevejo a minha
"Chávena com a asa por dentro" ao centro do Terreiro do Paço, mais
tarde ou mais cedo.
Que país este! Lembro-me
do pintor António Soares chamar ALNADA ao Almada! E agora mesmo, vejo todos tão
contentes com o seu fado! Inventaram um parafuso que se aparafusa sozinho, ou
acabaram um poema genial, que lhes dá a ilusão de celebridade das celebridades.
Em cada minuto aperfeiçoam a grande ratoeira. Já não riem com a boca, mas sim
com os cotovelos, com a gravata, com as unhas dos pés. Até a torre de Belém se
mascarou há pouco de intervenção de Christo! Os mais inteligentes dizem mesmo
que não acreditam nas multidões… salvo quando essas multidões os glorificam. A
vida, para esses é um contínuo orgasmo, e a verdade é que eu também fui
apanhado por esta tristíssima celebridade portuguesa. Nos labirintos que inventei,
eu próprio me perdi. A minha loucura endoideceu, e assim passo os meus dias a
tentar conciliar o absurdo com o absurdo. De certa maneira sinto-me prisioneiro
do meu próprio triunfo, por mais insignificante que ele seja. Mas não me
satisfaço com congressos, mesas redondas, colóquios, reuniões etc. etc. que são
estendal de erudição acadêmica, e deixam por fazer o que de fato é urgentíssimo
fazer-se. FAZER-SE, NÃO FALAR-SE.
E volto às histórias da
história. Devido às carências de casa de meus pais, e do meio, alistei-me na
marinha em 1949. O apelo de África já vinha da infância, em que se falava lá em
casa, com lágrimas abundantes, na morte por biliose de um tio que para lá tinha
partido em louca aventura, no tempo em que para África só iam os condenados, e
os loucos. Nos portos em que toquei na primeira viagem, de São Tomé a Goa, e de
lá a Timor e Macau, o espetáculo nos cais era ainda o da escravatura; gente
batida no fundo dos porões. Em Angola, os colonos designavam por graça os trabalhadores da estiva como
"voluntários à corda", pois alguma vezes ainda vinham amarrados uns
aos outros…
Via eu tudo isto com os
olhos de alma bem abertos, de espanto, e de raiva. Não precisei de fazer a
guerra, para aprender onde estava a razão…
Em Angola me fixei, e
percorri-a apaixonadamente. África atraía-me, quando era Paria que atraía
intelectuais e artistas. A verdade é que parece que esses se enganaram, e que é
grave o seu erro. O futuro que então teceram, infelizmente era já passado. Na
verdade o Chiado não me tinha deixado saudades por aí além, sendo para o meu
gosto demasiadamente literário e artístico. Tinha, isso sim, saudades de dois
ou três amigos… que infelizmente, afinal era do Chiado e do seu miniteatro que
gostavam muito…
Em Angola, os mais
variados trabalhos e os mais mal remunerados, foram pretexto para incursões ao
"interior", só com um ajudante geralmente de cor, em carripanas de
ocasião, por inimagináveís caminhos de lama, de areia, cortados por
extensíssimas queimadas, sinuosos leitos de rios com caprichosas jangadas, e
aquilo que se chamava pomposamente hotéis, e onde os lençóis não eram mudados
desde o tempo de Paulo Dias de Novais.
Estas viagens eram para
mim a plenitude das plenitudes; em todos os momentos livres recolhia objetos
etnográficos, tão belos e significativos como as longas negociações que
acompanhavam a sua aquisição. A alma daquela civilização (porque de uma
civilização se trata…) ficou a fazer parte, a mais profunda, de mim, mas
nego-me a posições políticas, tão espetaculosas como transitórias.
Estas viagens (como a
maior parte dos livros que li…) apenas vieram confirmar o que eu já sabia.
Realizei em Luanda duas exposições que levantaram dos maiores movimentos de
opinião (de que de resto Cesariny dá notícia e apresenta alguns documentos, na sua
A intervenção surrealista, editada
pelo Ulisseia em 1966); e porque uma dessas exposições era colocada sob a
evocação do poeta negro Aimé Cesaire, fui chamado à PIDE. Isso se repetiria
quando mais tarde, funcionário do Museu de Angola, lhe procurei dar alguma vida
organizando um salão de pintura, onde pendurei um dos primeiros Malangatanas.
Um "preto" num salão de pintura, era coisa inadmissível então!
É de fato fácil
estabelecer uma cronologia desta minha consciência e paixão. A minha primeira
exposição foi em 1953. É em 1950 que o livro de Luandino Vieira provoca o
escândalo que provocou. Só em 1974 Spínola publica Portugal e o futuro; e até abril do mesmo ano morreu gente que não
sabia porque morria…
Quando me apercebi que
tinha que pegar numa arma contra brancos ou contra pretos, foi com enorme
tristeza que precipitadamente regressei à Europa.
Este texto ainda
interessará alguém? Há tanto para dizer, que desconfio da fartura. E pintar
devia ser, como o assassínio, uma atividade proibida.
Quando veio o 25 de
abril para mim a revolução já estava feita há muito, e não me tinha dado a
satisfação desejada, pois a revolução possível sou eu mesmo, com todos os meus
limites.
Por outro lado, quando
vemos a obra de um Picasso ou de um Brauner, por exemplo, reconhecemos o
encontro com o Neolítico, com Creta, com a Mesopotâmia, com os Coptas, com a
Oceania, com os Astecas, com os Esquimós, com África. Matisse, Picasso ou
Brauner, parece não terem referido a carga mágica dessas artes, mas apenas o
seu lado estético; no entanto, esse encontro, julgo necessário ter a coragem de
o tomar como uma mensagem de retorno. Por mim, o que eu queria era SABER O QUE
SABIAM OS SELVAGENS, no que de resto estou bem acompanhado por Antonin Artaud,
por Lévi-Strauss, e lá muito para trás por Albert Dürer quando, em 1520,
escreveu isto: "J'ai vu les choses qu'on a rapporttés au roi, du nouveau
pays de l'or; toutes sortes d'objets étonnants à divers usages, bien plus beaux
que tout ce qu'on avait déjà vu. De ma vie je n'ai rien vu qui m'ait fait
autant de plaisir. Ce sont des objets d'art étonnants, et j'ai étè frappé du
génie étrange des hommes de ces pays lointains". [2] Ainda hoje algumas pessoas, muito responsáveis, julgam ingênuas,
toscas, sem técnica ou sem beleza as obras a que me venho a referir, sem na
verdade compreenderem que se trata de uma opção civilizacional. A mim cada vez
mais me atrai essa incapacidade de
traçar uma reta ⎼ ou seja, o tentar adivinhar o sentido de incapacidade.
Evidentemente que,
depois de tudo o que ficou dito, fica tudo por dizer. Aquilo a que se chama
amor ou vida sexual, é terreno onde as verdades se odeiam entre si. Sou eu que
sou igual às personagens de Bosch, ou são os outros? Ouvir dizer ao ouvido
AMO-TE é ainda muito mais emocionante (é preciso confessá-lo) que ouvir gritar
lá fora a palavra LIBERDADE…
Nunca fui capaz de saber
se, no "ménage à trois" imaginário e ideal que ocupou grande parte da
minha vida, a terceira pessoa presente era Deus ou o diabo. Talvez algumas
vezes, os três, nos tivéssemos encontrado sobre o mesmo leito. Separar a alma
do corpo é que parece trabalho criminoso. E aflige-me a contraditória atitude
dos homossexuais, e dos "artistas", que querem ser reconhecidos por
uma sociedade que condenam! A propósito, lembrarei Camões, quando diz aquilo
que a maioria das pessoas ainda hoje dirá: "do amor não vi senão breves
enganos…"
Mas, apesar do que digo
e do que espero que adivinhem, doidos por certo não o somos nós: doido é o por
do sol, o raio, a rosa, o capricho silencioso das pedras etc. etc. Doido
varrido é o luar.
Deverei dizer ainda que
conheci gente em que o sexo era muito mais inteligente que o cérebro? Mas nada
do que não tenha mistério me pode interessar; o mistério que persiste em cada
corpo que amamos, e o torna maior que o universo, mais agitado que o mar, mais
azul que o céu. O corpo é a paisagem que a moldura não contém. Aos 70 anos,
parece-me que os meus olhos foram ainda mais ávidos de beleza que o meu corpo,
que o foi tanto.
Incrível a quantidade de
caminhos que há para nos levar a sítio nenhum! E aqui surge a pergunta que me
parece inevitável hoje; como se faz amor com um marciano?
Quero lembrar ainda
André Breton, quando diz: "l'amour physique c'est la moitie du
plaisir". [3]
Os que querem agarrar
com ambas as mãos o IMPOSSÍVEL não se apercebem que o impossível acontece todos
os dias a seu lado.
E por aqui chegamos à
SOLIDÃO, que tanto me tem acompanhado. Ocorre-me perguntar se não amarei eu
afinal loucamente a solidão, que tanto odeio. Confesso que, não poucas vezes, a
minha vida segue quase independente de mim.
Mas a natureza parece-me
agora, por vezes, tão exausta quanto eu o estou; as árvores, o mar, a luz,
estão exaustos, perderam convicção, parece-me apenas cumprirem uma penosa
obrigação. Será esta solidão o preço a pagar pela liberdade possível, de que
usei e abusei? Se gostei, não sei; lembro-me de Fernando Pessoa que diz
"…como eu gostava de gostar…" Mas quando me passeio junto ao mar, não
posso hoje evitar a sensação de que ele me pede a chave de sua prisão. No entanto,
a solidão é muito útil, pois ali se descobrem coisas que não se sabe o que
fazer com elas; é como um puzzle que nunca desse certo. E mesmo inúteis a um
canto, essas coisas informes esperneiam, berram, estrebucham, cantam como a
sereia da fábula, dia e noite.
Quando morrer, sei que
vou ter muitas saudades do sol, das cores das coisas, das luzes das cidades, da
enganadora beleza das pessoas, mas agora, ainda vivo, tenha cada vez mais
saudades do não ser.
O dia a dia de hoje é
uma tal exageração da realidade, que me leva a pensar ser ele a "obra de
arte" que em vão se pede aos "artistas". Pelo menos os
desacertos, temos que o reconhecer, são de uma incrível perfeição. Mas não
posso esquecer que, do outro lado da medalha, estão as "certezas
absolutas", e que, por causa delas, tem corrido tumultuosos niagaras de
sangue. E ainda pela mesma causa os rios correm hoje para o mar completamente
poluídos.
Que dizer se, para mim,
cada palavra, é como um volumoso livro?
Possivelmente entre o
nada e o nada é que está o infinito. Assim, nada do que digo pode ser claro,
definido ou definitivo, mas, pelo contrário, nebulosos, confuso, contraditório
e doloroso. Enganaram-nos a todos; o NADA é afinal um patrimônio imenso.
Há anos sonhei que me
encontrava numa espécie de jardim zoológico, onde estavam Dragões, Tágides,
Gnomos, Minotauros etc. etc. Nesse tempo, ainda as florestas da imaginação não
estavam completamente devastadas. O amanhã não estava tão próximo. Agora
pergunto-me se será possível adaptar-me a esse amanhã, mesmo que o desejasse.
Setenta anos passam
afinal como um longo minuto. Por exemplo, não li metade do que deveria ter
lido. Sou assim um muito mau exemplo. Mas tudo o que escreveu um Dostoievski ou
um Borges, ou a obra de um Miguel Ângelo ou de um Gustave Moreau, não cabem
realmente no percurso de uma vida! Trata-se de miraculados, porque não acredito
exclusivamente nas virtudes do trabalho. Dias e noites a trabalhar, não deixam
tempo para olhar, e menos ainda para imaginar. Tudo o que aconteceu na vida foi
tão rápido, que mal tive tempo para o reter na memória, e discernir; e no
entanto tudo foi excessivo, em relação às minhas forças. Nem tempo tive para
construir o cipreste que tanto queria sobre a minha sepultura, todo em vidro,
para se poder ver os movimentos do seu coração de cipreste…
Seremos nós,
portugueses, excepcionalmente dados a desencontros? Parece que, quando chegamos
à Índia, ela já lá não estava…
Mas os grandes problemas
resolvem-se ou adiam-se por si mesmos. Todo o resto é ilusão, ou vaidade.
Diminuo-me por certo aos
olhos dos "expert de l'art", se digo que não inventei nada, que nada
do que pintei foi apenas imaginação. Parece-me poder dizer que nunca exagerei
ou dramatizei uma situação, que o que refiro é a minha própria experiência de
vida, que é de fato muito maior do que eu.
O "artista"
procura ser na sua obra, mas também na sua vida, um espetáculo. Os artistas e
intelectuais são de fato exibicionistas. Não sou um artista nem um intelectual,
previno-os.
De resto, na natureza
nada é credível, nada tem qualquer lógica, que não seja a do absurdo. Se se
explicar a alguém vindo de um outro mundo como se faz uma criança (e que essa
criança se transforma em homem), ele não pode acreditar. E bastará ver os
documentários de Disney ou do National
Geographic, para se compreender que
nada do que existe pode ser compreendido, e que é por certo outra a chave de
que necessitamos.
O mundo que a natureza
fez, e o mundo que o homem fez… É com muita apreensão que vejo, por exemplo,
civilizações consideráveis, como a chinesa, ou a africana, aderindo,
sujeitando-se, integrando-se, imolando-se, a esta nossa civilização. Será que
uma OUTRA civilização era de fato impossível? Foi ela tentada com a necessária
veemência? Nos inúmeros organismos internacionais que pagamos, imperam os
relógios moles de Dalí…
E diga-se francamente
que é de rebentar a rir este pobre diabo que sou sofrer de tais saudades do
desmedido, odiando ao mesmo tempo a esperança, que tanto nos desfigura. Aos
condenados à morte, teremos que opor o horror dos condenados à vida?
De fato amar e ser
amado, com igual intensidade, é ainda muito mais difícil do que escrever um
belíssimo poema. E se me revolto por me quererem impor isto ou aquilo, como
posso eu impor isto ou aquilo aos outros? Além disso, não faltam
"artistas" que querem condecorações, ruas com o seu nome, o Prêmio
Nobel, como se as forças que os movem fossem egoísmos, orgulhos, vaidades,
certezas absurdas. Contorcem-se até ao mais possível impossível, como se isso
tivesse algo a ver com a verdadeira imaginação, com a verdadeira criatividade,
com a verdadeira liberdade. O "Nu" de Marcel Duchamp sobre agora, ao
invés de descer, uma escada de degraus perigosamente gastos. E espera-se que da
boca lhe saiam coisas indizíveis.
Os que fizeram revoluções
são mais revolucionários do que, por exemplo, o foi a pintura de Goya ou de
Kandinsky? E não esqueçamos, que Salazar foi morto por uma simples cadeira!
Iremos assistir à revolta das cadeiras perante os ditadores do futuro? A
despropósito, cito Saint-Jus: "Ceux qui font les révolutions à moitié, ne
font que creuser leur propre tombeau…" [4]
Há de fato feridas do
tamanho de países! E aqui, onde nascemos, é precisamente o local onde o mar se
afogou. Mas será por acaso que dois dos quadros mais importantes do imaginário
e do mistério estão em Portugal? Refiro-me ao Bosch, e também ao Nuno
Gonçalves. Ainda quero acreditar que tudo tem um sentido, evidentemente oculto.
Para terminar (e tento
fazê-lo desde a terceira página…), repetirei que não fui nem serei UMA VIDA
DEDICADA À PINTURA, por mais que a ame. Por vezes, devo-o dizer ainda, ela toma
para mim as proporções terríveis de uma ratoeira.
Há quem refira o
nacionalismo ou o fascismo de Fernando Pessoa e de Almada Negreiros; tirem
esses dois a Portugal e vejam o buraco imenso e negro que fica!
Tanta coisa nova nos
querem impingir uns e outros, que é demasiado; acabam por esmagar saloiamente o
próprio espanto. O desconhecido está a ficar por demais conhecido, e isso é
intensamente dramático. Afinal o mistério sabe tudo do sábio, mas o sábio muito
pouco sabe do mistério. E quanto aos tontos que se julgam muito modernos, direi
como Oscar Wilde, que "todas as coisas belas pertencem à mesma
época". É-me comovente por vezes ter que recorrer de urgência à presença
de Giotto ou de Fra Angélico…
Diz o Almada, na
"Cena de ódio": "Tu que tens a mania das Invenções e das
Descobertas, […] há muito mais a fazer do que fazer revoluções".
Quero ainda referir os
que por exemplo sabem tudo o que deve ser tornado lei sobre o ensino, e que são
desgostantemente risíveis. Não será inegável que o aluno sabe sempre mais que o
professor? O SABER, tenho-o eu com uma porta fechada, e inultrapassável. Nunca
ninguém passou do limiar!
E há a grande mascarada
do saber, o profissionalismo. Profissionalismo é o que exijo ao sapateiro, ao
mecânico, ou ao padeiro, mas será a última coisa que exijo a um pintor?
Execrável toda a raça em que houver mestres e alunos! O jogo em que entro é o
do não saber. O não saber é uma forma de cultura. O que fiz de uma tela ou de
uma folha de papel, foi sempre o jogo do não saber. DESENCADEAR é tudo o que
sei ⎼ se sei. Mas tudo o que sei e sabemos é
quinquilharia, se nos lembramos dos que descobriram o fogo e a roda. Se eu
tivesse um filho, o que mais me preocuparia era a maneira de lhe ensinar tudo o
que não sei, e é o principal do meu saber.
"Tout vrai langage
est incompréhensible", [5] diz
Artaud. E o Herberto Helder acrescenta: "As palavras são mortalmente
confusas". Cada palavra está grávida de outra palavra, digo eu.
Ouvi alguém dizer que
"o homem onde chega conspurca". Atualmente é essa a verdade, mas
creio que ainda há um século o analfabeto construía a sua casa, e ela estava em
perfeito equilíbrio com a árvore, com a colina, com a luz do sol, com o cão
etc. etc.
Quanto ao surrealismo,
parece-me que afinal ainda não há muito a dizer, depois do que deixou dito
Breton. A linguagem dos da sua geração, cada vez mais parece inultrapassada.
Naturalmente outros como eu têm debaixo da língua a PALAVRA exata ou pelo menos
necessária, mas para esses, como para mim, será um drama de todos os minutos
esta espécie de gravidez, em que a criança se recusa a nascer.
E ainda quanto ao surrealismo,
me parece que ninguém, com alguma sensibilidade, poderá dizer onde começou, e
onde vai acabar…
Apenas por breve espaço
de tempo me deixei embalar por sugestões no sentido de uma pintura mais ou
menos profissionalizada. Todo o resto dos meus dias foi passado em empregos o
mais burocráticos, os mais diversos, e os mais mal remunerados. Como tenho
sobrevivido sem ter a mínima capacidade de sobrevivência tem o seu quê de
milagre. Atravessei muitos desertos, e devo dizer que tomei gosto por essa
espécie de perversão. O meu dia a dia foi tão pleno como o meu noite a noite, e
alguns poderão até dizer que foi pleno de NADA; mas para mim o NADA existe,
repito-o, e merece todo o meu ódio-amor.
A falta de dinheiro foi
a minha universidade, como África foi o meu Paris. Não faço segredo de nada,
não teatralizo o miserabilismo como alguns; hoje gozo de um certo equilíbrio
material, modesto, e dá-me alguma satisfação tê-lo conseguido sem ser à custa
da minha pintura. Tive que sacrificar uma coleção de "objetos etnográficos"
recolhidos em Angola, e uma coleção de pintura (quase tudo obras sobre papel),
que incluía nomes como os de Júlio, Gonçalo Duarte, Calvet, Paula Rego, Mário
Eloy, Raul Pérez, Cesariny, Mário Botas, Areal, Menez, Eurico Gonçalves, João
Rodrigues, D'Assumpção, Pomar, Malangatana, Pascoaes, Mário Henrique Leiria,
Jorge Vieira, Pedro Oom, Escada, Hein Semke, Manuel Amado etc. etc.
Suficiência ou vaidade
não as tenho. Tenho talvez vaidade, isso sim, desta luta constante contra a
vaidade e a suficiência que toma tantos intelectuais, como se aqui fosse Paris,
Londres ou New York, e não uma aldeia chamada Lisboa.
Como Fernando Pessoa
dizia que a sua pátria era a língua portuguesa, julgo eu que a minha pátria é a
pintura. Mais a dos outros, do que a minha.
O que vejo na pintura
surrealista (e isto em duas palavras muito excessivamente apressadas) não é o
insólito ou o fantástico, mas sim a imagem do que não sei e do que espera
sentido, ou do que ao sentido se nega. Teve ele, o surrealismo, o saber ou a
sorte de não cais na moda, como aconteceu com algumas outras filosofias, que
nisso perderam uma parte substancial da sua força.
Como se deve acabar um
texto como este, é evidente que não o sei, e assim me parece que melhor será
não o acabar; assim ficará acabado. Mas acrescentarei ainda uma citação
admiravelmente lúcida e profética de Rui Mário Gonçalves: "Se não
encontrarmos nas artes sinais das modificações que desejamos, não as vamos
certamente encontrar em qualquer outro sítio". E esta outra citação de
Nietzsche: "La nouveauté de notre position philosophique est une
conviction, inconnue de tout les siècles antérieurs: celle de ne pas posséder
la vérité…" [6]
NOTAS
1. Texto datado
de março de 1991, consta do catálogo de uma exposição de CS intitulada
"Homenagem a Mário Henrique Leiria". Porto: Galeria São Mamede, maio
a junho de 1995.
2. Eu vi
as coisas que foram reportadas ao rei, da nova terra do ouro; todos os tipos de
objetos surpreendentes para vários usos, mais bonitos do que qualquer coisa que
já se viu. Na minha vida, não vi nada que me deu tanto prazer. Eles são
incríveis obras de arte e eu fui fortemente tocado pelo gênio estranho dos
homens desses países distantes. [N.O.]
3. O amor
físico é a metade do prazer. [N.O.]
4. Aqueles que
fazem revoluções pela metade apenas cavam o próprio túmulo. [N.O.]
5. Toda a
verdadeira linguagem é incompreensível. [N.O.]
6. A
novidade da nossa posição filosófica é uma convicção, desconhecida por todos os
séculos anteriores: a de não possuir a verdade ... " [N.O.]
Nenhum comentário:
Postar um comentário