2003 | 25
de outubro
Caro poeta Floriano Martins
A comunicação com o Surrealismo
do Brasil infelizmente só me foi possível quando, em 1967, Sérgio Lima organizou
a exposição "A Phala". Mais tarde visitou-me Sara Ávila. Há muitos anos
dirigia eu a Galeria S. Mamede e dirigi-me à Embaixada do Brasil no intuito de conseguir
uma exposição de Maria Martins, a quem tão calorosamente se referiu Breton. Recebi
duas cartas entusiastas da Senhora Embaixatriz, a que se seguiu o mais absoluto
silêncio. Para além destes contatos apenas posso referir a minha costela brasileira,
pois minha avó materna era natural do Pará. Assim agradeço o teu contato, e a citação
de minha autoria no pórtico do teu livro. Tudo muito tocante, como é de esperar
de coisas que têm como raiz profunda a Poesia. Junto te envio o segundo volume da
minha poesia que acaba de sair. Para meu espanto, dizem-me a Isabel Meyrelles e
o editor que ainda há material para mais três volumes!
Quanto ao questionário, respondo
por certo de forma excessiva, mas não sei fazer de outra forma, e não é agora com
a D. Morte sentada à minha porta que me vou modificar.
Dizem-me que há gente nova muito interessada no Surrealismo.
Não podia deixar de ser, mas se não me procuram eu também não posso fazer mais do
que os pressentir apaixonadamente. Nunca fui muito convivente, e nunca me sobejou
TEMPO para o convívio de cafés, bares etc. etc. Tenho a certeza de que haverá surrealismo
amanhã. Relato-te uma espécie de anedota acontecida há algumas semanas numa das
livrarias de Lisboa. O proprietário informava-me de que há muita gente nova procurando livros sobre o Surrealismo.
Respondo-lhe que a mim raramente me procuram, e ele contrapõe que, na verdade, não
procuram referências ao Cesariny ou a mim, mas sim ao Surrealismo…
Os melhores votos e o abraço
surrealista do
[Artur]
2003 |
Dezembro
Caro Floriano
Respondo tão rapidamente
quanto possível à tua carta, pois na minha idade já nada deve ser adiado.
Agradeço que tenhas reduzido
as tuas propostas a uma antologia da minha poesia com o prefácio de tua autoria.
Sobre a minha poesia é pouco ou é quase nada o que se tem escrito. Há por exemplo
referências em cartas do Herberto Hélder, mas ainda nenhum escritor ou ensaísta
referiu os dois volumes já editados pelo Valter Hugo Mãe. Parece que para que nos
refiram aqui e agora é necessário entrar em circuitos de elogio mútuo, para o que
não me sinto vocacionado. E além disto há os disparates sem pés nem cabeça, como
a estranha colagem do Rui Mário Gonçalves ao Fernando Azevedo ao José-Augusto França
ao António Pedro. Que falta faz um Almada Negreiros, que diga que esses são os Dantas
de Hoje! Pode-se classificar como ortodoxia o que se passa com o Cesariny que sem
critério aparente aparece e desaparece à boca de cena? Sobre mim escreveu ele em
1963: "Pede-me Cruzeiro Seixas um texto que circule na exposição, a terceira
que vai fazer em África. Que dizer-lhe ou dizer se não que ele é o Poeta, aquele
que entre nós melhor do que nós se conduziu ao combate, ao único combate verdadeiro,
o que luta sem fim pela inteligência do homem; e de todos nós ele é quem mais encontrou
o segredo de partir sempre, arriscar tudo sempre, exigir sempre a forma mais pura,
a libertação mais dura da própria imaginação." Ortodoxo não sou eu ou não o
quereria ser, mas muito me assusta que se volte ao surrealismo como se fosse coisa
morta, ou apenas coisa histórica. E mais ainda assustador, se possível, que nele
se procurem chorudos lucros financeiros! Disso sempre fugi com a minha pintura.
Fiquei fixado num tempo em que tudo era diferente. Mas o Brasil é uma grande tentação,
e a ela confessadamente me entrego.
Lembro a existência de um
Di Cavalcanti na expo de Famalicão; foi-me dado pela Sara Afonso, que foi mulher
do Almada. O desenho tinha-lhe sido oferecido pelo próprio Di Cavalcanti. Infelizmente
é a única representação do Brasil; ninguém me sabe dar notícia da Maria Martins,
a quem Breton se refere calorosamente.
Quanto a esta minha coleção
(ex-coleção), ela será dificilmente compreendida para além desta sufocante fronteira,
mas a verdade é que aqui é ÚNICA, tendo sido feita por paixão, não por dinheiro,
que foi coisa que nunca tive. Em Portugal muito raramente fazem coleções, e quando
isso acontece, quando do falecimento do colecionador a família apressa-se a dispersar
tudo. Desde há alguns anos as pessoas chamam coleção a 20 ou 50 obras que decoram
as suas casas, e de que esperam um feliz empate de capital…
Sugeri à Fundação de Famalicão
que a expo seja tornada itinerante, pois não me parece suficiente um ou dois visitantes
por dia; dizem-me que sim, mas só acreditarei quando, segundo prometem, a expo aparecer
aqui em janeiro, na Sociedade Nacional de Belas Artes.
Aqui tens mais uma carta,
certamente excessiva.
Os melhores votos e o abraço
do
[Cruzeiro Seixas]
2004 | 18
de maio
Caro Floriano
Junto o catálogo da exposição
da minha coleção, que te dará uma ideia do trabalho que representou a seleção das
obras, e tudo o mais necessário a esta realização. Por isto só hoje responde a tua
carta de 17 de março, do que me desculpo. Além de tudo o mais não é fácil estar
a viver agora numa casa com as paredes nuas. Mas esta exposição tinha que se fazer,
pelo menos para provar que não é necessário ser milionário para fazer uma coleção.
Foi apenas por paixão que fiz tudo o que fiz, tudo o que fiz na vida ⎼ em
paixão fui de fato milionário!
Creio que a Rosa Alice Branco
fez o favor de estar presente nesta exposição, mas no meio de tanta gente e de uma
certa desorganização portuguesa era muito grande o meu cansaço e confusão.
Desculpa-me se o teu excesso
de projetos me assusta. Sempre preferi engatar
a ser engatado. E julgo que devo o nome
que tenho principalmente à minha solidão; nunca fiz parte de tertúlias, a não ser
na ingenuidade dos vinte anos. Aprendi muito ⎼ aprendi o que não queria
aprender, e já não há nada a fazer deste frágil bloco de cimento armado que sou.
Contra mim mesmo, a minha denúncia e protesto.
Daqui a alguns meses, ou
daqui a um ano ou dois (na pior das hipóteses) já cá não estarei, e então TUDO será
possível. Desculpa-me se te peço para reduzir para metade a tua generosa oferta.
Creio que no meu caso já está suficientemente provado que não se trata de ortodoxia.
A palavra que me corresponde possivelmente
não está no dicionário; desenhei e pintei e escrevi, sem me considerar pintor ou escritor. Principalmente se trata de algo
como uma necessidade fisiológica, à falta de algo mais expressivo contra o dia a
dia que temos, e refiro-me a coisas velhas como a guerra da Etiópia, a guerra da
Espanha, a esperança na derrota do nazismo/fascismo, a permanente crise, sempre
com milhões de vítimas… Vivo mergulhado no absurdo, e parece-me agora tão absurda
a atenção que me dão, como a que não me dão.
Será isto uma carta? As minhas
desculpas e o forte abraço do
[Artur]
***
Minha correspondência
com Cruzeiro Seixas vem de 2003 até os dias atuais. Seguimos comentando alguns
aspectos pertinentes sobre vida e obra, de modo que um livro se prepara em boa
cumplicidade. Abraxas
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