A conversa aconteceu
finalmente, à terceira tentativa, na casa onde Artur do Cruzeiro Seixas agora
vive, em Cascais, num lar-vivenda, onde tem uma parte-casa. Cruzeiro Seixas
mora num espaço de palavras compostas, hifenizadas, vive como escreve e sempre
escreveu, como pinta e sempre pintou, num local "em que são iguais as
quantidades de realidade e do que a ela se opõe". Na verdade, só podia ser
assim, reconhecemos depois do choque inicial. A conversa também não podia ser
de outra forma. Aconteceu ao jeito surrealista da pintura automática, da poesia
automática. O exercício proposto a Cruzeiro Seixas é simples. Sugerimo-lhe que
comentasse palavras, termos que enchem os seus poemas e têm réplicas visuais
nos seus desenhos e pintura. Vemos nos seus desenhos "representações de
espelhos, falésias, ferrolhos, barcos, mãos, asas, caudas de cavalos, cabelos
soltos ao vento… Tudo referências que também ocorrem nos poemas", escreveu
Rui-Mário Gonçalves. Esta é uma "entrevista automática" com um dos
mais importantes artistas e intelectuais surrealistas portugueses que diz de si
mesmo, e antes de deligarmos o gravador, o seguinte: "Ser um intelectual
ou ser um artista são coisas que não me interessam nada. O que eu queria é ser
gente. Ser um gajo. E livre. E isso realmente é o que me interessa
apaixonadamente. Não é ser artista, entre aspas. Até porque acho uma coisa
ultrapassada. Hoje, quem é que no mundo quer ser artista?"
SONHO
Liberdade. A liberdade
absoluta é o sonho, porque realmente, o sonho é o que abre todas as portas. Não
há nada que possa impedir o sonho. Em todas as coisas há contratos sociais, há
política, há conceitos estéticos que, realmente, nos travam. No sonho não. Nada
nos trava, é a liberdade absoluta o que nós temos. É a única coisa em que a
liberdade pode ser absoluta.
LIBERDADE
Liberdade é o sonho,
então. É um mito de que o homem se alimenta. É claro que existe muito pouco.
Somos animais livres que vivemos em sociedade, dentro das suas regras,
queiramos ou não. O próprio surrealismo é uma lei. E o Breton era muito duro,
como dono dessa lei que criou e que pôs a funcionar. Mas liberdade é a palavra
mais bonita que o homem jamais inventou.
MAÇÃ
Um brincadeira sinistra.
Pensamos na maçã e pensa-se logo no Adão, na Eva e no pecado. Claro que
percebemos desde logo, quando arrumamos as coisas, que pecado não há nenhum.
Porque é que havia de ser pecado um homem e uma mulher fazerem amor? Essa é uma
coisa completamente cruel, completamente disparatada. Fazer amor é sempre um
ato sublime. É dentro dessa liberdade sublime que o homem se encontra.
CONSCIÊNCIA
Consciência. Ah, isso é
uma coisa que agora está tão fora de moda. É uma coisa do meu tempo. É como
honestidade, também. São palavras que envelheceram muito nos últimos anos. Não
sei se tem alguma saída em relação ao futuro.
SOL
Sal?
AL |
Também podia ser sal. Mas antes, SOL.
CS |
Ah, Sol! É o símbolo da luz. Apanhar sol é realmente um prazer, de certa forma,
também sexual. Depois há todos os mitos que podem rodear o sol. Agora, um poeta
estará mais próximo da lua.
LUA
É a grande inspiradora
dos grandes poetas. Também na pintura há casos extraordinários em que a lua
aparece. É uma surpresa. A lua surpreende-nos mais do que o sol. É sempre uma
figura velada. Não sabemos muito bem o que se passa por detrás. O sol está todo
à mostra. O sol está nu. A lua não. Guarda em si mistério.
CAVALO
O cavalo figura imenso
nos meus desenhos. Todos os homens têm ewm si qualquer coisa de cavalo. Vejo-me
sempre com a nobreza e o porte dos cavalos. Há imensos cavalos que eu meti na
cama. Em toda a minha vida, em sonhos, claro! Pessoas-cavalos. É um animal
muito nobre, muito bonito, perfeito em quase todas as suas formas e que apetece
meter na cama.
CRINA
A relação da crina com o
cabelo… Quem me dera ter sido um homem primitivo, poder montar um cavalo sem
sela e agarrar-me à crina como um homem primitivo montaria um cavalo. O cabelo
é uma coisa lindíssima, por a mão no cabelo de outra pessoa é sempre uma coisa
lindíssima. Hoje espanta-me imenso, naturalmente por ser tão velho, esta coisa
de os jovens porem o cabelo em pé! Não se pode fazer festas naquele cabelo, não
se pode tocar naquele cabelo. Parecem para-raios! Nunca percebi como é que se
resolve aquele problema. É uma coisa quase agressiva, é o desejo de ser todo
espeto. Possivelmente é o desejo semi-consciente de se defenderem da vida.
VENTO
O vento também está muito
nas minhas coisas. O vento é masculino, como o nome dele já define. É um senhor
que se impõe. Sempre jovem, mas sempre também com um saber, ou uma loucura, de
alguém que sabe o que está a fazer. Mesmo quando não percebemos nada do que
está a fazer. E quando está a fazer o que consideramos mal, está a fazer o que
ele considera razoável e está dentro dos seus princípios.
SEXO
Ohh! Pois, isso… eu tenho
a impressão que a vida divide-se em duas coisas, uma delas é a sensibilidade. A
sensibilidade para ver as coisas belíssimas que há na vida, a sensibilidade
para criar outras coisas belas. Criar, nós próprios. A outra coisa é,
realmente, o sexo. O sexo, está claro, não funciona sozinho, acho eu. Funciona
sempre agarrado a um corpo, a uma cabeça, a uns pés, a umas mãos, e isto
enriquece-o de uma maneira extraordinária. É sempre uma espécie de infinito. O
sexo é um dos veículos que nos leva para o infinito.
INFINITO
Pois, o infinito não há,
claro!
LINHA DO HORIZONTE
É como a pessoa a quem
estamos sempre a fazer perguntas e as respostas não vêm. Nunca sabemos o que
está do lado de lá. É o infinito. Caminhamos em direção a ela e já sempre outra
e mais outra linha do horizonte até ao infinito possível. É a única experiência
de infinito que temos. Tirando, claro, a da imaginação. Acho que é nesse
sentido que existe a linha do horizonte nas coisas que eu faço.
Mas
se quisermos aproximarmo-nos de uma coisa que existe no mundo real, talvez [a
linha do horizonte] seja [a] da Costa da Caparica do meu tempo. Há aquela
falésia infinita que vai por ali afora, e era aquela praia imensa também, que
eu não sabia onde ia ter.
FALÉSIA
A falésia tem muito a ver
com esse infinito. Com a linha do horizonte que vai por ali afora. A falésia,
em princípio, é a possibilidade que teremos de ver mais de perto o infinito.
Sobe-se a falésia, e do lado de lá o que estará? Outra falésia e outro infinito
e por aí afora. A vida é feita de repetição.
ESPELHO
Penso que escrevi num
poema que os espelhos são sempre adolescentes. Claro que somos nós que nos
vemos sempre adolescentes quando olhamos para o espelho, ou não vemos a pessoa
que lá está, porque o espelho está sempre a mentir. O espelho deve ser mesmo a
maior mentira que se inventou. Porque aquilo nunca é a realidade. A realidade é
outra. O espelho é a ilusão possível.
SIMETRIA
Ahh. A simetria não tenho
muito comigo. Acho que é como dois e dois são quatro. Nunca li, mas alguém me
disse que o Dostoievsky dizia que para ele dois e dois nunca eram quatro. E
para mim também nunca dois e dois foram quatro. Acho que a simetria corresponde
muito a isso, ao "dois e dois são quatro".
DEUS
Uma coisa horrível. Acho
que é uma das piores invenções do Homem. Porque leva sempre a uma figura em que
esbarramos, que toma conta de nós, que nos quer proteger e conduzir. Não tenho
simpatia nenhuma por essa palavra. É sempre uma palavra para saltarmos por cima
dela para o outro lado, sempre que possível. Tenho passado a vida toda a fazer
esse esforço.
DIABO
Diabo, esse é simpático!
Diabinhos encontramos nós milhentos nesta nossa Lisboa. Diabinhos de todos os
tamanhos e de todas as cores que podemos imaginar. Deve ser um senhor que está
lá distraído e dá-nos liberdade demais. Os diabinhos são muito simpáticos, são
muito portugueses, muito portugueses. Também há os diabões, toda a nossa vida é
regida por esses gajos. Tenho a impressão que deus [governa] pouco. Nunca vi
deus gerir as pessoas. Ele não percebe nada do que se passa à volta dele. O
diabo sim, sabe tudo! As coisas mais pequeninas, o sítio onde se escondeu o
dinheiro e não se encontrou, o lápis que se perdeu, as coisas mais pequeninas.
O diabo não tem vergonha das coisas pequenas.
VIAGEM
Nunca viajei muito.
Sonhei muito viajar. O Fernando Pessoa também não viajou muito, há imensas
pessoas muito importantes que viajaram muito pouco, quase nunca saíram do
sítio. Não viajei muito. Não sei fazer dinheiro, fazer essas coisas fáceis.
Hoje as pessoas viajam com uma facilidade enorme, naturalmente porque é mais
fácil fazer dinheiro - falo deste meio dos artistas e intelectuais. É mais
fácil fazer dinheiro e é mais fácil também conseguir viagens por isto e aquilo
e convites para isto e aquilo. Claro que isto deve dar tanto trabalho que só de
pensar nisso já me sinto cansado.
As
viagens grandes que fazemos acontecem no sonho. O sonho erótico, por exemplo, é
uma viagem. A viagem que se faz através de um corpo. Mas na invenção do dia a
dia também viajamos. Estamos sempre a viajar. Podemos chamar-lhes viagens, como
na poesia, as palavras passam a ter outro valor, outro peso.
ASA
Asa, que bom! Perguntei
há dias a alguém o que é que gostava mais de ter, além do que já tinha. E a
pessoa disse-me "asas". Claro que, se as pessoas pudessem ter asas,
estragavam por completo todo o voo. O voo ainda é uma coisa sublime. Aquilo em
que o homem toca estraga! Mas eu gostaria de ter asas porque acho muito bonito.
Não tanto para voar. Sou muito agarrado à terra.
PREMONIÇÃO
É um poder que não é dado
a todos. Mas que algumas pessoas têm. Lembro-me, por exemplo, do Cesariny. Ele,
com toda a segurança, dizia coisas que se iam passar e passavam-se mesmo. Até
nas pequenas coisas, abria um livro e era na página que queria. Queria
encontrar uma coisa qualquer e encontrava logo. Eu passo horas para encontrar a
página que queria encontrar.
RECORDAÇÃO
Ah, estou cheio delas. Um
velho desta idade [88 anos], como pode não estar cheio de recordações? Boas…
AL |
Trabalha sobre as recordações?
CS |
Elas tomam conta de mim, mas não me dão trabalho nenhum. Claro que gostaria de
tirar um resultado qualquer de todo esse esforço e de todos esses perigos. As
recordações são como um labirinto, onde andamos perdidos e não conhecemos a
saída. Eu ando muito perdido entre as minhas recordações, para as definir, as
que foram boas foram más, as que foram más foram boas. Naturalmente, esse é um
dos papéis do homem, andar um bocado a bater com cabeça nas paredes.
AL |
Não há dúvidas no seu traço. Pelo contrário, há uma segurança que sugere que
acontece uma de duas coisas: uma premonição ou recordação. Dá a ideia que
desenha como se adivinhasse ou recordasse as formas. A linha que evolui de uma
forma para outra e se completa no regresso, fechando, unindo, rematando todo o
volume… Que segurança é essa?
CS |
Também não sei lhe dizer. É coisa que nunca pensei. Ou pensei e larguei logo a
seguir. Não me interessa muito entrar no mistério. O mistério vai até um certo
ponto. Depois ultrapassa-me. É tão grande e tão cerrado e tão misterioso… Eu
fiquei sempre à porta do mistério, se calhar. Agora, há a habilidadezinha da
mão, evidentemente. Sabe que tudo quanto faço não é pensado. Nunca pensei um
quadro ou um desenho. Há muitos artistas que levam meses ou anos a pensar o que
vão fazer…
AL |
Isso num surrealista seria até contra natura.
CS |
Acho que o Surrealismo tem uma grande parte de inconsciente, de não querer
pensar. Se isso… Não quero dizer que sou um bom surrealista, porque há bons e
maus e isso é uma confusão muito grande. E aquilo que é bom hoje pode não o ser
daqui por cinquenta anos, há sempre novos olhos para ver as coisas. Agora, o
meu modo de trabalho foi sempre assim, com uma grande liberdade. Por isso nunca
precisei de atelier nem nada dessas coisas. Todo o meu trabalho foi sempre num
recanto de mesa casual. Não sei o que vou fazer, não pensei, ponho a mão em
cima do papel e a mão começa por ali afora a traçar linhas. Não sei nunca o que
vai acontecer a seguir. Esse mistério apaixona-me, de certa forma. Sei que
estou a fazer um mistério qualquer. Agora, "l'apoorté" do que aquilo
tem não sei. Há pessoas que gostam muito, outras que não gostam nada. Há
pessoas que têm muitos ciúmes, muitas invejas, há muitas maldadezinhas por aí.
Tudo
quanto fiz foi dentro de um princípio, o da experimentação. O que faço não é
arte, é um depoimento. Acima de tudo, não é a obra de arte que me interessa. A
obra de arte é o que vivemos no dia a dia. O dia a dia é a minha obra de arte.
A minha e a vossa. Quanto ao resto não sei se poderia adiantar muito. Há essa
habilidadezinha da mão, que não sei se não está a passar, porque com esta idade
ela já muito me treme e está pouco firme. E não sei se a tal liberdade da
cabeça é capaz de corresponder à mão ou não. Vamos lá ver agora nestes meses
que se vão seguir o que vou fazer. Porque começam muito depressas a acentuar-se
as verdades de um velho. Vamos lá a ver a seguir. Também já chega, não é?
AL | O
curioso é que, independentemente dessa liberdade aparente da mão em relação ao
cérebro, desenho atrás de desenho os símbolos repetem-se. O vento, a crina, o
sol, o cavalo ou parte do cavalo, os troncos…
CZ |
Falta de imaginação minha, claro!
AL |
Não há-de ser!
CS |
Em parte, acho que sim. Acho que sim. Nesta altura sinto que estou a repetir-me
e perante isso estou assustado e a perguntar-me a mim próprio - isto
naturalmente é uma coisa que não devia dizer, claro - se vale a pena continuar,
porque é que os outros estão tão calados e não dizem, será por generosidade,
será por dó, será porque não notaram ainda? Essas perguntas todas estão no ar,
mas estão também dentro de mim, um pouco dramaticamente, claro. Não é com
satisfação que se fazem perguntas destas. Estou cheio de dúvidas nesta altura.
Porque, repito, nestes últimos meses tem-se acentuado muito a velhice, a
decadência. E sabe? Nada é inesgotável no mundo. E a imaginação é capaz também
de ser tão esgotável como a realidade. A realidade está esgotada! Mas a
imaginação naturalmente também. Nós vemos a pintura e o que se faz por aí. Hoje
é corrente dizer-se que a arte acabou. De maneira que ninguém sabe o que vai
acontecer amanhã. Pegando na linha de outra resposta a uma pergunta que me fez
lá para trás: é um mistério absoluto. Como é que se vai criar um mundo sem
arte? Como é que se vai criar um mundo sem sonho?
AL |
Vamos regressar às palavras? CESARINY.
CS |
Cesariny, há uma coisa realmente que… Nós conhecemo-nos para aí com uns
dezessete anos, na António Arroio. E, não sei se isto ainda espanta alguém, mas
houve entre nós uma espécie de amor, homossexual ou não. Mas, realmente, a
grande revelação. Não sei o que seria se não tivesse encontrado o Cesariny.
Porque foi ele que deu um caminho à minha vida, de certa maneira. O Cesariny
foi a grande figura da minha vida.
***
Entrevista originalmente
publicada no Jornal de Negócios,
Lisboa, 13/02/2009, aqui reproduzida com a devida autorização de Agostinho
Leite.
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