sábado, 19 de setembro de 2015

AGOSTINHO LEITE | Cruzeiro Seixas à porta do mistério


A conversa aconteceu finalmente, à terceira tentativa, na casa onde Artur do Cruzeiro Seixas agora vive, em Cascais, num lar-vivenda, onde tem uma parte-casa. Cruzeiro Seixas mora num espaço de palavras compostas, hifenizadas, vive como escreve e sempre escreveu, como pinta e sempre pintou, num local "em que são iguais as quantidades de realidade e do que a ela se opõe". Na verdade, só podia ser assim, reconhecemos depois do choque inicial. A conversa também não podia ser de outra forma. Aconteceu ao jeito surrealista da pintura automática, da poesia automática. O exercício proposto a Cruzeiro Seixas é simples. Sugerimo-lhe que comentasse palavras, termos que enchem os seus poemas e têm réplicas visuais nos seus desenhos e pintura. Vemos nos seus desenhos "representações de espelhos, falésias, ferrolhos, barcos, mãos, asas, caudas de cavalos, cabelos soltos ao vento… Tudo referências que também ocorrem nos poemas", escreveu Rui-Mário Gonçalves. Esta é uma "entrevista automática" com um dos mais importantes artistas e intelectuais surrealistas portugueses que diz de si mesmo, e antes de deligarmos o gravador, o seguinte: "Ser um intelectual ou ser um artista são coisas que não me interessam nada. O que eu queria é ser gente. Ser um gajo. E livre. E isso realmente é o que me interessa apaixonadamente. Não é ser artista, entre aspas. Até porque acho uma coisa ultrapassada. Hoje, quem é que no mundo quer ser artista?"

SONHO
Liberdade. A liberdade absoluta é o sonho, porque realmente, o sonho é o que abre todas as portas. Não há nada que possa impedir o sonho. Em todas as coisas há contratos sociais, há política, há conceitos estéticos que, realmente, nos travam. No sonho não. Nada nos trava, é a liberdade absoluta o que nós temos. É a única coisa em que a liberdade pode ser absoluta.

LIBERDADE
Liberdade é o sonho, então. É um mito de que o homem se alimenta. É claro que existe muito pouco. Somos animais livres que vivemos em sociedade, dentro das suas regras, queiramos ou não. O próprio surrealismo é uma lei. E o Breton era muito duro, como dono dessa lei que criou e que pôs a funcionar. Mas liberdade é a palavra mais bonita que o homem jamais inventou.

MAÇÃ
Um brincadeira sinistra. Pensamos na maçã e pensa-se logo no Adão, na Eva e no pecado. Claro que percebemos desde logo, quando arrumamos as coisas, que pecado não há nenhum. Porque é que havia de ser pecado um homem e uma mulher fazerem amor? Essa é uma coisa completamente cruel, completamente disparatada. Fazer amor é sempre um ato sublime. É dentro dessa liberdade sublime que o homem se encontra.

CONSCIÊNCIA
Consciência. Ah, isso é uma coisa que agora está tão fora de moda. É uma coisa do meu tempo. É como honestidade, também. São palavras que envelheceram muito nos últimos anos. Não sei se tem alguma saída em relação ao futuro.

SOL
Sal?

AL | Também podia ser sal. Mas antes, SOL.

CS | Ah, Sol! É o símbolo da luz. Apanhar sol é realmente um prazer, de certa forma, também sexual. Depois há todos os mitos que podem rodear o sol. Agora, um poeta estará mais próximo da lua.

LUA
É a grande inspiradora dos grandes poetas. Também na pintura há casos extraordinários em que a lua aparece. É uma surpresa. A lua surpreende-nos mais do que o sol. É sempre uma figura velada. Não sabemos muito bem o que se passa por detrás. O sol está todo à mostra. O sol está nu. A lua não. Guarda em si mistério.

CAVALO
O cavalo figura imenso nos meus desenhos. Todos os homens têm ewm si qualquer coisa de cavalo. Vejo-me sempre com a nobreza e o porte dos cavalos. Há imensos cavalos que eu meti na cama. Em toda a minha vida, em sonhos, claro! Pessoas-cavalos. É um animal muito nobre, muito bonito, perfeito em quase todas as suas formas e que apetece meter na cama.

CRINA
A relação da crina com o cabelo… Quem me dera ter sido um homem primitivo, poder montar um cavalo sem sela e agarrar-me à crina como um homem primitivo montaria um cavalo. O cabelo é uma coisa lindíssima, por a mão no cabelo de outra pessoa é sempre uma coisa lindíssima. Hoje espanta-me imenso, naturalmente por ser tão velho, esta coisa de os jovens porem o cabelo em pé! Não se pode fazer festas naquele cabelo, não se pode tocar naquele cabelo. Parecem para-raios! Nunca percebi como é que se resolve aquele problema. É uma coisa quase agressiva, é o desejo de ser todo espeto. Possivelmente é o desejo semi-consciente de se defenderem da vida.

VENTO
O vento também está muito nas minhas coisas. O vento é masculino, como o nome dele já define. É um senhor que se impõe. Sempre jovem, mas sempre também com um saber, ou uma loucura, de alguém que sabe o que está a fazer. Mesmo quando não percebemos nada do que está a fazer. E quando está a fazer o que consideramos mal, está a fazer o que ele considera razoável e está dentro dos seus princípios.

SEXO
Ohh! Pois, isso… eu tenho a impressão que a vida divide-se em duas coisas, uma delas é a sensibilidade. A sensibilidade para ver as coisas belíssimas que há na vida, a sensibilidade para criar outras coisas belas. Criar, nós próprios. A outra coisa é, realmente, o sexo. O sexo, está claro, não funciona sozinho, acho eu. Funciona sempre agarrado a um corpo, a uma cabeça, a uns pés, a umas mãos, e isto enriquece-o de uma maneira extraordinária. É sempre uma espécie de infinito. O sexo é um dos veículos que nos leva para o infinito.

INFINITO
Pois, o infinito não há, claro!

LINHA DO HORIZONTE
É como a pessoa a quem estamos sempre a fazer perguntas e as respostas não vêm. Nunca sabemos o que está do lado de lá. É o infinito. Caminhamos em direção a ela e já sempre outra e mais outra linha do horizonte até ao infinito possível. É a única experiência de infinito que temos. Tirando, claro, a da imaginação. Acho que é nesse sentido que existe a linha do horizonte nas coisas que eu faço.
Mas se quisermos aproximarmo-nos de uma coisa que existe no mundo real, talvez [a linha do horizonte] seja [a] da Costa da Caparica do meu tempo. Há aquela falésia infinita que vai por ali afora, e era aquela praia imensa também, que eu não sabia onde ia ter.

FALÉSIA
A falésia tem muito a ver com esse infinito. Com a linha do horizonte que vai por ali afora. A falésia, em princípio, é a possibilidade que teremos de ver mais de perto o infinito. Sobe-se a falésia, e do lado de lá o que estará? Outra falésia e outro infinito e por aí afora. A vida é feita de repetição.

ESPELHO
Penso que escrevi num poema que os espelhos são sempre adolescentes. Claro que somos nós que nos vemos sempre adolescentes quando olhamos para o espelho, ou não vemos a pessoa que lá está, porque o espelho está sempre a mentir. O espelho deve ser mesmo a maior mentira que se inventou. Porque aquilo nunca é a realidade. A realidade é outra. O espelho é a ilusão possível.

SIMETRIA
Ahh. A simetria não tenho muito comigo. Acho que é como dois e dois são quatro. Nunca li, mas alguém me disse que o Dostoievsky dizia que para ele dois e dois nunca eram quatro. E para mim também nunca dois e dois foram quatro. Acho que a simetria corresponde muito a isso, ao "dois e dois são quatro".

DEUS
Uma coisa horrível. Acho que é uma das piores invenções do Homem. Porque leva sempre a uma figura em que esbarramos, que toma conta de nós, que nos quer proteger e conduzir. Não tenho simpatia nenhuma por essa palavra. É sempre uma palavra para saltarmos por cima dela para o outro lado, sempre que possível. Tenho passado a vida toda a fazer esse esforço.

DIABO
Diabo, esse é simpático! Diabinhos encontramos nós milhentos nesta nossa Lisboa. Diabinhos de todos os tamanhos e de todas as cores que podemos imaginar. Deve ser um senhor que está lá distraído e dá-nos liberdade demais. Os diabinhos são muito simpáticos, são muito portugueses, muito portugueses. Também há os diabões, toda a nossa vida é regida por esses gajos. Tenho a impressão que deus [governa] pouco. Nunca vi deus gerir as pessoas. Ele não percebe nada do que se passa à volta dele. O diabo sim, sabe tudo! As coisas mais pequeninas, o sítio onde se escondeu o dinheiro e não se encontrou, o lápis que se perdeu, as coisas mais pequeninas. O diabo não tem vergonha das coisas pequenas.

VIAGEM
Nunca viajei muito. Sonhei muito viajar. O Fernando Pessoa também não viajou muito, há imensas pessoas muito importantes que viajaram muito pouco, quase nunca saíram do sítio. Não viajei muito. Não sei fazer dinheiro, fazer essas coisas fáceis. Hoje as pessoas viajam com uma facilidade enorme, naturalmente porque é mais fácil fazer dinheiro - falo deste meio dos artistas e intelectuais. É mais fácil fazer dinheiro e é mais fácil também conseguir viagens por isto e aquilo e convites para isto e aquilo. Claro que isto deve dar tanto trabalho que só de pensar nisso já me sinto cansado.
As viagens grandes que fazemos acontecem no sonho. O sonho erótico, por exemplo, é uma viagem. A viagem que se faz através de um corpo. Mas na invenção do dia a dia também viajamos. Estamos sempre a viajar. Podemos chamar-lhes viagens, como na poesia, as palavras passam a ter outro valor, outro peso.

ASA
Asa, que bom! Perguntei há dias a alguém o que é que gostava mais de ter, além do que já tinha. E a pessoa disse-me "asas". Claro que, se as pessoas pudessem ter asas, estragavam por completo todo o voo. O voo ainda é uma coisa sublime. Aquilo em que o homem toca estraga! Mas eu gostaria de ter asas porque acho muito bonito. Não tanto para voar. Sou muito agarrado à terra.

PREMONIÇÃO
É um poder que não é dado a todos. Mas que algumas pessoas têm. Lembro-me, por exemplo, do Cesariny. Ele, com toda a segurança, dizia coisas que se iam passar e passavam-se mesmo. Até nas pequenas coisas, abria um livro e era na página que queria. Queria encontrar uma coisa qualquer e encontrava logo. Eu passo horas para encontrar a página que queria encontrar.

RECORDAÇÃO
Ah, estou cheio delas. Um velho desta idade [88 anos], como pode não estar cheio de recordações? Boas…

AL | Trabalha sobre as recordações?

CS | Elas tomam conta de mim, mas não me dão trabalho nenhum. Claro que gostaria de tirar um resultado qualquer de todo esse esforço e de todos esses perigos. As recordações são como um labirinto, onde andamos perdidos e não conhecemos a saída. Eu ando muito perdido entre as minhas recordações, para as definir, as que foram boas foram más, as que foram más foram boas. Naturalmente, esse é um dos papéis do homem, andar um bocado a bater com cabeça nas paredes.

AL | Não há dúvidas no seu traço. Pelo contrário, há uma segurança que sugere que acontece uma de duas coisas: uma premonição ou recordação. Dá a ideia que desenha como se adivinhasse ou recordasse as formas. A linha que evolui de uma forma para outra e se completa no regresso, fechando, unindo, rematando todo o volume… Que segurança é essa?

CS | Também não sei lhe dizer. É coisa que nunca pensei. Ou pensei e larguei logo a seguir. Não me interessa muito entrar no mistério. O mistério vai até um certo ponto. Depois ultrapassa-me. É tão grande e tão cerrado e tão misterioso… Eu fiquei sempre à porta do mistério, se calhar. Agora, há a habilidadezinha da mão, evidentemente. Sabe que tudo quanto faço não é pensado. Nunca pensei um quadro ou um desenho. Há muitos artistas que levam meses ou anos a pensar o que vão fazer…

AL | Isso num surrealista seria até contra natura.

CS | Acho que o Surrealismo tem uma grande parte de inconsciente, de não querer pensar. Se isso… Não quero dizer que sou um bom surrealista, porque há bons e maus e isso é uma confusão muito grande. E aquilo que é bom hoje pode não o ser daqui por cinquenta anos, há sempre novos olhos para ver as coisas. Agora, o meu modo de trabalho foi sempre assim, com uma grande liberdade. Por isso nunca precisei de atelier nem nada dessas coisas. Todo o meu trabalho foi sempre num recanto de mesa casual. Não sei o que vou fazer, não pensei, ponho a mão em cima do papel e a mão começa por ali afora a traçar linhas. Não sei nunca o que vai acontecer a seguir. Esse mistério apaixona-me, de certa forma. Sei que estou a fazer um mistério qualquer. Agora, "l'apoorté" do que aquilo tem não sei. Há pessoas que gostam muito, outras que não gostam nada. Há pessoas que têm muitos ciúmes, muitas invejas, há muitas maldadezinhas por aí.
Tudo quanto fiz foi dentro de um princípio, o da experimentação. O que faço não é arte, é um depoimento. Acima de tudo, não é a obra de arte que me interessa. A obra de arte é o que vivemos no dia a dia. O dia a dia é a minha obra de arte. A minha e a vossa. Quanto ao resto não sei se poderia adiantar muito. Há essa habilidadezinha da mão, que não sei se não está a passar, porque com esta idade ela já muito me treme e está pouco firme. E não sei se a tal liberdade da cabeça é capaz de corresponder à mão ou não. Vamos lá ver agora nestes meses que se vão seguir o que vou fazer. Porque começam muito depressas a acentuar-se as verdades de um velho. Vamos lá a ver a seguir. Também já chega, não é?

AL | O curioso é que, independentemente dessa liberdade aparente da mão em relação ao cérebro, desenho atrás de desenho os símbolos repetem-se. O vento, a crina, o sol, o cavalo ou parte do cavalo, os troncos…

CZ | Falta de imaginação minha, claro!

AL | Não há-de ser!

CS | Em parte, acho que sim. Acho que sim. Nesta altura sinto que estou a repetir-me e perante isso estou assustado e a perguntar-me a mim próprio - isto naturalmente é uma coisa que não devia dizer, claro - se vale a pena continuar, porque é que os outros estão tão calados e não dizem, será por generosidade, será por dó, será porque não notaram ainda? Essas perguntas todas estão no ar, mas estão também dentro de mim, um pouco dramaticamente, claro. Não é com satisfação que se fazem perguntas destas. Estou cheio de dúvidas nesta altura. Porque, repito, nestes últimos meses tem-se acentuado muito a velhice, a decadência. E sabe? Nada é inesgotável no mundo. E a imaginação é capaz também de ser tão esgotável como a realidade. A realidade está esgotada! Mas a imaginação naturalmente também. Nós vemos a pintura e o que se faz por aí. Hoje é corrente dizer-se que a arte acabou. De maneira que ninguém sabe o que vai acontecer amanhã. Pegando na linha de outra resposta a uma pergunta que me fez lá para trás: é um mistério absoluto. Como é que se vai criar um mundo sem arte? Como é que se vai criar um mundo sem sonho?

AL | Vamos regressar às palavras? CESARINY.

CS | Cesariny, há uma coisa realmente que… Nós conhecemo-nos para aí com uns dezessete anos, na António Arroio. E, não sei se isto ainda espanta alguém, mas houve entre nós uma espécie de amor, homossexual ou não. Mas, realmente, a grande revelação. Não sei o que seria se não tivesse encontrado o Cesariny. Porque foi ele que deu um caminho à minha vida, de certa maneira. O Cesariny foi a grande figura da minha vida.




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Entrevista originalmente publicada no Jornal de Negócios, Lisboa, 13/02/2009, aqui reproduzida com a devida autorização de Agostinho Leite.







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