Em 1998 publiquei
uma edição fora de mercado de Escritura Conquistada (Diálogos com poetas
latino-americanos), onde consta esta minha primeira entrevista ao poeta e
artista Ludwig Zeller (Chile, 1927). Desde então, em nossas conversas, demos
pela falta de algumas observações complementares àquele texto, sobretudo no que
diz respeito ao Surrealismo no Chile e à Antología de la Poesía Surrealista
Latinoamericana (1981), organizada por Stefan Baciu. Posteriormente, quando
da publicação de O Começo da Busca – O Surrealismo na Poesia da América
Latina (2001), e a partir de comentários meus à imprensa, voltamos a
considerar a necessidade de esclarecer alguns pontos, desta vez contando também
com o valioso depoimento de Susana Wald (Hungria, 1937). O casal Ludwig e
Susana há décadas desenvolve atividade cultural em defesa do Surrealismo,
especialmente através da casa editorial Oasis Publications e da revista Vaso Comunicante. Uma segunda entrevista
foi então originalmente publicada em Agulha
Revista de Cultura # 29. Fortaleza/São Paulo, outubro de 2002.
1.
PRIMEIRO ENCONTRO – 1992
FM | Alvaro Mutis nos fala acertadamente de
tua “paciente exploração do abismo”, situando a tua poesia “sob o signo da
aceitação”. A que se destina a poesia?
LZ | Eu tenho vivido segundo o acaso de meu
destino; a “paciente exploração do abismo” é tão somente constatar que está
ali, quando ao despertar de um sonho vemos que, no fio de cada instante
vertiginoso, surge dentro de nós o interrogante chagado de espinhos. Eu, como
poeta, sou um médium, um transmissor
para o ouvido que talvez não exista.
FM | Que relação há entre a infância vivida no
deserto de Atacama e tua poesia?
LZ | Em declaração feita há 20 anos, em meu
livro Cuando el animal de fondo sube la
cabeza estalla, há uma nota explicando que minha poesia e meus collages seriam outros caso houvessem
sido originados em um âmbito distinto. Nasci e passei meus primeiros anos no
deserto de Atacama, que é a parte mais seca do globo. Ali vi, dia após dia,
produzir-se miragens, imagens que pareciam estar ao alcance da mão e que em
seguida desapareciam como varridas pelo vento. Que depois se trate de mudar a
realidade, de adaptá-la aos próprios desejos, de ser um surrealista “apesar de
tudo”, não é senão consequência dessa infância vivida, se por um lado no mais
áspero, também na essência do mágico. Para mim a poesia não é literatura, a
poesia é um conjuro.
FM | No ato de tua criação poética, como se
relacionam canto e conteúdo? Defende, acaso, que em poesia
o que se transmite são linguagens e não ideias?
LZ | Forma e conteúdo são uma só coisa, quando
o poema chega a essa “altura do grito”, segundo expressão de Benjamin Péret. Se
alguns querem ver ideias, mensagens sociais em minha poesia, creio que estão em
um erro. As imagens possuem uma dinâmica própria, são uma visão paralela da
realidade, uma forma do invisível.
FM | Segundo Marcusse, a cabeça da Medusa
seria “o símbolo eterno e mais adequado da arte: o terror como beleza; o terror
recolhido na forma gratificante do objeto magnífico”. Aceitas essa noção de que
o terror fundamenta a beleza?
LZ | Eu creio que Marcusse tem razão em parte,
só em parte; sua verdade não pode ser última para os seres humanos. Tive ocasião
de ver arte asteca pré-colombiana em figuras como a Cuatlicue: produz horror,
perturba-nos e talvez fosse isto o que queria transmitir o artista. Hoje há
iguais motivações para sentir esse horror, porém os artistas alertas não podem
cair na mesma armadilha. A arte e a poesia estão formadas de contrastes, como
os próprios homens. Creio que artistas, críticos e museus têm insistido em
promover uma fealdade oca e fácil. Não são os mercadores os chamados a apontar
rotas na arte. Há que cuidar para que esta sociedade tecnológica não nos
afogue, ver além de sua parafernália técnica, o que é uma verdade eterna para o
homem. O que viveu há 4.000 anos ou o contemporâneo.
FM | Diz Octavio Paz: “A atividade poética
nasce da desesperação ante a impotência da palavra e culmina no reconhecimento
da onipotência do silêncio”. Estarias de acordo com o poeta mexicano quando
afirma que “toda leitura de um poema tende a provocar o silêncio”?
LZ | O pensamento de Octavio Paz aproxima-se,
neste aspecto, do sentir religioso oriental que tanto há influído, nas últimas
décadas, em sua visão do mundo. E ainda que muitos de meus poemas apontem para
essa direção, creio que se algum sentido tem a palavra poética, a imagem
criadora, é esta do Verbo, do Ser, da Vida e não o mutismo do silêncio.
FM | Encerrar um poema parece algo como
interromper uma cadeia infinita de diálogos com o desconhecido? Quando um poema
tem fim?
LZ | O poema se me propõe em muitas
oportunidades como uma visão onírica, ou um tema a desenvolver, no qual me
sinto envolvido por completo. Através de suas imagens, de suas cadências, tenho
visto passar muitos fantasmas, já que muito se sonha e se vive com o próprio
desconhecido que habita em nós. Quando está terminado o poema? Quando sinto,
pese a todas as precariedades da vida, que expressei o que queria, sem que
perdesse sua qualidade de alta voltagem a emoção. Isto é o importante. Depois,
ao ver traduções dos mesmos textos, vejo até que ponto outros podem continuar o
trabalho de afundar neste fio, de ampliar a ressonância de um dado texto.
Creio, com Novalis, que um poema tem que nos dar, em distintas épocas e a
distintas pessoas, uma resposta; sem esse eco, o poema não existe.
FM | Compartilhas a opinião daqueles que
defendem que a perda da dimensão épica tenha ocasionado uma redução no mundo do
poeta moderno?
LZ | Nossa época está em um balanço de meios
expressivos, que incluem possibilidades que até então não existiam. Kazantzakis
ou Neruda, por exemplo, foram tentados a expressar em verso momentos históricos
ou narrações mitológicas. Igualmente muitos experimentam com imagens de vídeo
que são simultâneas à palavra ou a substituem por som. Nosso mundo é cada vez
mais global, e as diferenças entre culturas e línguas muito distintas
condicionam o fato de quais serão as ferramentas mais apropriadas, tanto para o
criador como para sua possível audiência.
FM | Jean Wahl, em seu estudo “A poesia como
união de contrários”, refere-se à “exaltação consciente da consciência” de
poetas como Valéry e Eliot, e à “perda quase total da consciência nos
surrealistas”, como dois movimentos destinados um dia a coincidir, baseado em que
a poesia é coincidentia oppositorum.
Quais as ligações possíveis entre ambas as correntes?
LZ | Creio que Jean Wahl, em sua análise, põe
muito em branco e preto esta oposição de exemplos como Valéry e Eliot, por um
lado, e, por outro, os surrealistas. Eu estimo que os poetas temos um fundo
comum em que a maior parte das vezes coincidimos: nem é tão consciente Valéry,
nem são tão instintivos os surrealistas. Há um meio termo que permite valorizar
melhor ambas as tendências. Além do mais, é sempre mais válido o resultado do
afazer poético que qualquer teoria que posteriormente se torne rígida.
FM | A originalidade de um poeta consiste, em
parte, em sua transgressão contínua a toda ortodoxia. O que significa para você
exatamente o Surrealismo?
LZ | Não creio ser original nisto, porém me
desgosta toda ortodoxia. Eu creio que o Surrealismo abriu portas, possibilitou
o emprego de ferramentas que contemporaneamente têm grande importância para a
arte e a poesia: a escritura automática, a exploração dos sonhos, o emprego da
psicanálise, o re-traçar da realidade, constituem uma possibilidade de
libertação do indivíduo. No momento em que qualquer dessas formas de expressão
converte-se em dogma, cristaliza-se e morre. Eu creio, por exemplo, que o
Surrealismo é mais latente hoje em dia nas novas gerações de artistas e poetas
latino-americanos do que nos jovens franceses, para quem o estudo do
Surrealismo é um tema obrigatório, um estilo literário ou artístico.
FM | Ao referir-se às relações entre o
Surrealismo e tua poesia, Albert Moritz a situa como “um desenvolvimento e uma
conclusão da autotranscendência do Surrealismo que Breton mesmo declarou era
sua verdadeira natureza”. O mesmo crítico também aponta em tua obra certas
características ligadas ao barroco. Em que estas definições esclarecem os
objetivos de tua poesia?
LZ | A. F. Moritz é um poeta e um amigo que
conhece bem minha poesia em conjunto. A posição do Surrealismo, em um enfoque
mais amplo, sem capuzes, sempre terá que incorporar outras formas e disciplinas
à sua bagagem. Seria distinto se dele houvessem participado os poetas do Le grand jeu ou se tivesse sido possível
debater livremente com Carrouges alguns problemas. André Breton tinha uma
amplitude de espírito, a maior parte das vezes, sem negar nele as debilidades
de todo ser humano. Em todo caso é muito mais amplo que seus comentaristas ou
os acadêmicos da literatura. Que o barroco seja uma característica de minha
poética está muito além de mim, é parte da educação e de meu caráter. Não
creio, por outro lado, em soluções prontas, em receitas coletivas. As
contribuições do Surrealismo têm que dar a possibilidade de um maior horizonte
intelectual que permita transcender, ou simplesmente não existirá mais.
FM | Como se deu a tua aproximação ao grupo
Mandrágora? Segundo Gonzalo Rojas tal grupo não passou de um blefe, um
pseudo-mito; enquanto que Stefan Baciu o situa como um dos pontos fundamentais
do Surrealismo em toda a América Latina.
LZ | Enquanto foi um grupo eu o critiquei em
mais de uma ocasião, porém Santiago de Chile é uma pequena cidade e, ao passar
do tempo, vi que muitos de seus postulados coincidiam com os meus; o importante
era batalhar contra a mediocridade e a politicagem. Ilustrei e publiquei livros
de Braulio Arenas, Jorge Cáceres e Enrique Gómez-Correa. Além do mais, deste
último sou amigo e sinto grande respeito tanto por sua obra como por sua
condição humana. Quando se cumpriam 30 anos da morte de Jorge Cáceres, quem
podia reparar em mesquinharias? Foi então que eu fiz a edição de seus poemas
inéditos. Quanto à opinião de Gonzalo Rojas, creio que está muito tingida de
ódios pessoais e é, em certo sentido, política.
FM | Não tens sido incluído em algumas
antologias da poesia hispano-americana, tais como as de Aldo Pellegrini, Juan
Gustavo Cobo Borda e Julio Ortega. Acaso este fato estaria relacionado a certo
desvio da crítica, considerando-o mais ligado às artes plásticas do que à
poesia?
LZ | Aldo Pellegrini me pediu, em sua
oportunidade, material para sua antologia; não estava de acordo com a seleção
dos textos e dos participantes, sendo esta a razão pela qual não estou
incluído. Cobo Borda tinha material meu disponível. Julio Ortega eu não
conheço. Não pertenço a clube algum, a política literária me dá asco; como
então poderiam me haver incluído? Haver mantido uma posição de absoluta
independência me isolou e às vezes me pôs à margem. Durante os passados 30 anos
ou se era um poeta católico ou um simpatizante incondicional do comunismo. Não
havia meio termo. As exposições e os livros de poesia são de datas simultâneas,
ambas as técnicas são paralelas e, no melhor dos sentidos, correspondem a uma
mesma personalidade.
FM | O que representa em tua vida Oasis
Publications? Que diferenças há entre ela e a anterior, Casa de la Luna?
LZ | Oasis
leva seu nome pelo ápice de nostalgia que traz em si todo exílio; nasci em um
deserto, vivo em uma sociedade culturalmente diferente e a vida me fez preferir
o oásis, essa companhia dos poucos, nas estepes geladas e indiferentes. Casa de la Luna foi feita há 25 anos,
quando ainda acreditava que se podia ter um diálogo aberto com os amigos de
distintas tendências. Porém o café e as atividades que nele se desenvolviam, e
que tanto atraíam as gerações jovens, resultaram incômodas para os grupos de
esquerda e demasiado progressista para os de direita. O lugar foi invadido
cinco vezes em nossa ausência, para ver os fichários, as pessoas que se
relacionavam conosco, as presumíveis atividades clandestinas.
FM | Após esta longa residência no Canadá, o
que te parece hoje o Chile?
LZ | Emigrei ao Canadá antes do governo de
Allende, porque me era claro que chegariam logo em seguida os militares. Todos
sabemos o desastre que isto significa, porém os causadores de um ou outro lado
costumam lavar as mãos. Atualmente o Chile vive períodos de mudanças, o
literário pode estar latente, porém existe um vazio de muitos, muitos anos,
difícil de preencher. Como na Espanha depois de Franco, demora até que surjam
as novas vozes líricas. Passou muito tempo e muitos seres e lugares se afastam
de nosso foco de visão. Talvez tão somente nos acompanhem aquelas imagens que
forjaram a infância, o que Rilke pensava que era o único verdadeiro país para
os poetas.
2. SEGUNDO
ENCONTRO – 2002
FM | Em algumas oportunidades eu tenho
observado certo prejuízo à leitura do Surrealismo na América Latina
estabelecido por Stefan Baciu. Na Antología
de la poesía surrealista latinoamericana se verifica uma contradição no
entendimento de quais poetas possuem ou não vínculos diretos com este
movimento. Exemplo disto é a inclusão de Antonio Porchia ao mesmo tempo em que
deixa de fora Juan Sánchez Peláez ou Ludwig Zeller. Igualmente equívoco é que
remeta a Huidobro como um precursor, no caso chileno, ao mesmo tempo em que
rejeita a presença do Surrealismo na obra de Rosamel del Valle, argumentando
sua condição extraordinária dentro do ambiente surrealista (“nunca fez parte de
um grupo, de uma corrente, de uma geração”). De que maneira vocês acompanharam
o processo de preparação da antologia?
LZ | Antes de tudo, fomos nós que publicamos
pela primeira vez em espanhol, na revista Casa
de la Luna, de Santiago, em 1970, um artigo de Baciu sobre Surrealismo na
América Latina, traduzido por Susana Wald.
O problema de Baciu é que era temperamental e lhe incomodava muito que
alguém não lhe respondesse as cartas enquanto ele podia escrever uma ou duas
por dia. Creio que é a única razão pela qual não me inclui na primeira
antologia, porque ele conhecia perfeitamente as coisas que estávamos fazendo em
Casa de la Luna, e conhecia a relação que tínhamos com os integrantes do grupo
Mandrágora, e sabia que nós fizemos a grande exposição “Surrealismo no Chile”,
em 1970. Eu mesmo lhe dei dados em várias fitas cassetes, enviadas ao Havaí, já
que ele jamais esteve no Chile.
Creio além do mais que a própria gente da Mandrágora (v. o n° 7 feito
por Enrique Gómez-Correa) dizia que o único que merecia estar incluído no
Surrealismo dentro do Chile era Rosamel del Valle, de quem reproduz um curto
fragmento poético.
Eu creio, no entanto, que Rosamel del Valle fez uma grande obra criativa
muito próxima das propostas do Surrealismo. Além do mais, Rosamel del Valle e
Braulio Arenas se recordavam de quando visitavam periodicamente material da
Livraria Francesa, tratando de localizar textos dos surrealistas.
Quando vemos em conjunto a obra poética de Rosamel del Valle, que é
enorme, apesar dos revezes da vida que lhe tocaram, é que podemos ter uma visão
mais ampla. Sua obra tem a importância comparável à de Huidobro, ou outros
poetas importantes, e está livre de toda bagagem de propaganda política ou
fanatismo.
Somente há dois anos finalmente foi possível publicar, em dois volumes,
seus poemas completos. Falta ainda fazer uma edição de sua narrativa, artigos e
ensaios.
SW | Eu entrei no Surrealismo pela porta que
Ludwig Zeller me abre para o movimento e suas ideias. Não conhecia o
Surrealismo senão muito superficialmente em minha experiência anterior. Tinha
visto imagens, em Buenos Aires tinha visto exposições que se relacionavam com o
Surrealismo, porém não tinha conhecimento dos postulados do movimento. Ou seja,
não conhecia a fonte, mas sim apenas seus efeitos. Entre os anos 1965 e 1970,
entre os livros da magnífica biblioteca de Ludwig Zeller que se trasladou para
minha própria casa, pude ler e gozar muita informação e muita literatura, a
quase totalidade dela de impulso surrealista. Em minha própria obra eu diria
que sou uma surrealista “natural”, porque nasce em mim, não da própria
ideologia, mas sim de um fluxo livre e pessoal. A liberdade, o amor e a poesia,
coube a mim vivê-los. Quando traduzi o texto de Baciu para nossa revista, seus
postulados me pareciam corretos e óbvios. Considero também que Baciu tinha um
interesse bem mais acadêmico no Surrealismo; nunca me pareceu que fosse
surrealista ele mesmo, nunca me pareceu que ele se comprometesse com este tipo
de causa. Isto sim, Baciu foi anticomunista, sem ser reacionário, e para ele o
Surrealismo pode ter sido uma alternativa valiosa para contrapesar a pedra de
moinho que representava no mundo intelectual o compromisso com o Partido.
Da mesma forma que Ludwig, eu penso que Baciu omitiu sua poesia da
primeira versão da antologia por irritação, e porque não lhe chegavam as cartas
ou as respostas que esperava. Baciu vivia em cômodas condições no Havaí; bem ao
contrário de nós, no Chile. Em nosso caso a correspondência em muitas vezes era
prorrogada porque havia outras urgências a serem satisfeitas, como buscar o que
comer ou buscar teto, ou a própria e iniludível urgência de criar.
FM | O termo para-Surrealismo, empregado por
Baciu, além de equivocado em sua raiz, me parece que serviu para que muitos
simpatizantes se sentissem parte de algo que não tinham coragem de abraçar na
totalidade. A partir daí, proliferaram para-surrealistas por vários pontos da
América Hispânica. O que pensam a este respeito?
LZ | O termo para-Surrealismo me parece absurdo, já que se participa do
Surrealismo ou não. O Surrealismo está vivo na América Latina, tanto na
plástica quanto na literatura, tão vivo como há cinquenta anos.
SW | Isto de para-Surrealismo é parte de um
afã cartesiano de classificação para poder examinar as coisas, que é próprio
dos acadêmicos. Há que encontrar os compartimentos apropriados para situar as
coisas, caso contrário não conseguem entendê-las. Isto é também muito próprio
de um pensamento do século XIX que pouco a pouco, afortunadamente, está caindo
em desuso. Com as teorias do caos, eu creio que será possível entender melhor o
Surrealismo.
E é também provável e perfeitamente legítimo que Baciu tenha querido
ampliar o espectro do que se pode chamar Surrealismo e que tenha querido sair
dos parâmetros dogmáticos, ao mesmo tempo em que encontrou um termo infeliz
para tanto.
FM | As relações entre Chile e Venezuela, no
que diz respeito ao Surrealismo, possuem algumas curiosas particularidades.
Embora participante de inúmeras reuniões em torno do Grupo Mandrágora, Juan
Sánchez Peláez, que residiu em Santiago, e mesmo tendo em conta que seu retorno
a Caracas o envolveu, juntamente com Vicente Gerbasi, em ações que se poderia
considerar vinculadas ao Surrealismo (edição de revistas, traduções etc.),
posteriormente criou uma barreira em torno dessa discussão. O mesmo se deu com
Juan Liscano, que afasta a possibilidade de Cármenes,
um de seus melhores livros, ter influência direta do Surrealismo. Aliás, vale
aqui lembrar que um primeiro vínculo de Gonzalo Rojas com Mandrágora também foi
dado como de pouca importância por ele próprio. E não nos esqueçamos das
relações entre Gerbasi e Díaz-Casanueva no grupo Viernes. Tudo isto se trata de
uma rejeição natural aos ismos ou
teria uma particularidade distinta?
LZ | O que eu sei é que Juan Sánchez Peláez
figura em uma das fotos de inaugurações de surrealistas, quando estudava em
Santiago, e naturalmente tinha uma abertura até estas possibilidades.
Quanto a Gonzalo Rojas, ele esteve vinculado ao grupo Mandrágora no
primeiro momento, porém ele próprio expressou que se desvinculou do movimento e
teve uma atividade contrária à deles, seguindo uma posição política.
O Chile é um país pequeno. Quando ali esteve Gerbasi ele encontrou com
toda a gente e era naturalmente muito próximo de Díaz-Casanueva e Rosamel del
Valle.
SW | Há alguns assuntos aqui que têm a ver com
a política literária, mesclada com a política como tal. Eu creio que neste
sentido Gonzalo Rojas é político, e Díaz-Casanueva ou Gerbasi – tendo seus
pontos de vista na política –, no plano literário se mantiveram mais próximo de
uma motivação interior e não da busca de poder, coisa natural e finalidade
principal da política.
FM | Já me disseste, Susana, que “durante
muito tempo o Partido Comunista foi tão poderoso e tão intransigente que era
heroico fazer o que fazíamos”. Em Boa
# 2 (Buenos Aires, junho de 1958), Julio Llinás observa que “mudar a vida é uma
fórmula, provavelmente, a mais válida que tenha anotado concretamente a poesia
em seu trajeto até o presente, mas é também o perigoso jogo da arbitrariedade
humana, em sua defesa inesgotável desse triste pão dormido que é sua própria
miséria”. Como se mostrava esse “jogo da arbitrariedade humana”, quando da
saída de vocês do Chile? E quais os prejuízos daí advindos?
LZ | Eu nunca pertenci ao Partido Comunista e,
no entanto, na Casa de la Luna, o café que tínhamos, os arquivos foram violados
pela polícia do Chile, pela gente da Embaixada dos Estados Unidos e por gente
do próprio Partido Comunista, ao ponto que não queriam cruzar com ninguém nas
ruas.
O espectro político mudou, aparentemente. Embora os comunistas digam
agora que têm uma nova visão, seguem igualmente agarrados aos meios de
comunicação no Chile, e favorecem apenas àqueles que lhe são incondicionais.
Isto nós pudemos comprovar pessoalmente em nossa recente visita ao país.
Como prova disto: o Prêmio Nacional de Literatura deste ano foi dado a
Volodia Teitelboim.
SW | Ludwig muitas vezes conta que em sua
juventude no Chile era possível pertencer ao Partido Comunista e então
participar nos encontros de Juventude e Paz em distintos pontos do planeta –
envoltos na influência de Moscou ou Pequim –, ou se podia ser beato e então
estar respaldado pela Igreja Católica e ser enviado à Espanha de Franco ou a
Roma. Se não pertencias a um movimento ou outro e querias ter uma posição
independente e além do mais de esquerda, recebias pancadas dos comunistas e
também dos católicos. Podemos, se queres, chamar a essas pancadas de “jogos de
arbitrariedade humana”. E talvez se possa alcunhar de igual maneira gestos como
aquele em que, a dois anos de nossa estadia no Canadá, me mandaram –
anonimamente, desde a Sociedade de Escritoras – um telegrama com pêsames pela
morte de Ludwig. Eu creio que chamaria este tipo de gesto de canalhice.
Não resta dúvida que a atitude dos comunistas para conosco afirmou em
mim um forte prejuízo. Não nos queriam ver vivos. Além de nos desprestigiar,
nos tiraram todos os meios de sobrevivência que tínhamos. Creio que se tivessem
podido nos matar além do metafórico teriam feito. E antes deles nos teriam
assassinado os militares que mataram colaboradores nossos nos primeiros dias do
golpe.
FM | A aberta dissensão entre Neruda, Pablo de
Rokha e Huidobro, de que maneira influiu no comportamento das gerações
posteriores? Um dos nomes centrais do modernismo brasileiro, Mário de Andrade,
observou que “os modernos do Brasil, na infinita maioria fizemos o impossível
pra não ter o espírito de grupo, o ideal comum”. Caberia observar até que ponto
em Mandrágora e Angurrientos havia essa compreensão de um ideal comum.
LZ | Mandrágora conforma uma concepção mais
universal, mais educada. Angurrientos tem um ânimo mais folclórico no Chile,
como diz o próprio nome.
Outra coisa: estavam tão desgostados Neruda, de Rokha e Huidobro que se
alguém se aproximava deles não tinha chance de estar com a outra gente sem ser
fortemente criticado.
Esta disputa dividiu muita gente. Huidobro é de quem se faz primeiro uma
fundação no Chile. Neruda está muito protegido pelo Partido Comunista, é
candidato desse partido à Presidência da República. Teve cinco casas no Chile
que agora são museus, e há também a Fundação Neruda: é imensa a influência que
restou dele. Já no caso de De Rokha, não há sequer uma boa edição crítica de
sua obra, mesmo que ele tenha se suicidado em 1968.
SW | Em minha experiência são poucos os que,
no Chile, Venezuela ou México, formam grupos. São mais a exceção do que a
regra. Que Mandrágora tenha conseguido funcionar foi uma conquista
extraordinária. O mesmo se pode dizer de El Techo de la Ballena ou dos surrealistas
argentinos entre os quais conheço alguns. Porém entre as próprias pessoas que
formam grupos se produzem disputas. Há pouco visitei Julio Llinás, em Buenos
Aires, e ele insistia em que não se considerava surrealista. Braulio Arenas
dizia o mesmo.
Na Casa de la Luna, o café e a revista, se juntava gente ao redor de nós
e agora também há jovens interessados em trabalhar com Ludwig e comigo,
principalmente porque compartilham nossos ideais e o fato de que nunca os
traímos.
FM | Em uma conferência, Gonzalo Rojas recorda
os desentendimentos entre Pablo de Rokha e Pablo Neruda, não sem destacar que
De Rokha, “desaforado em tudo, e desmedido, foi o primeiro demolidor do
pós-modernismo entre nós e o progenitor dessa ruralidade e elementaridade
transcendida, com certo enfoque primordial e cosmogônico, desde seus versos
iconoclastas de 1915”. Como, diante da grandeza renovadora da obra de De Rokha,
os méritos internacionais acabaram recaindo todos sobre Neruda?
LZ | De Rokha fez uma grande obra, muito vinculada
ao espírito dos chilenos, ao mesmo tempo em que tinha um modo muito pouco
diplomático e costumava brigar com a maior parte das pessoas.
SW | A frase de Rojas me faz pensar em quem
põe a carroça à frente dos bois e não como corresponde. O pós-modernismo não
pode ter preocupado a De Rokha, em seu tempo não havia surgido o conceito. E
creio que De Rokha, sim, foi desaforado, porém não desmedido; foi desaforado
como são todos os que se movem dentro do romantismo e suas consequências, entre
as quais se encontra o próprio Surrealismo.
Existe uma triste tendência nos seres de buscar segurança. Quando alguém
recebe um prêmio, com certeza receberá outros, porque os que darão os prêmios
segundos, terceiros etc., apostarão na segurança, no fato de que existe já um
precedente premiado. São poucas as exceções a isto. E ao tema se acrescenta que
o Partido Comunista e todo seu mecanismo publicitário imenso favoreceram a
Neruda, excluindo toda outra pessoa. E Neruda jamais se opôs a isto.
FM | Recordo palavras de Gómez-Correa: “As
descrições que incorpora o realismo fantástico são totalmente surrealistas,
porque aqui na América é questão de olhar a paisagem. Está repleta de coisas
loucas, abunda o Surrealismo por todos os lados. Vulcões, nevadas, selva,
deserto… Como imaginas que tenhamos a cordilheira e a cem quilômetros o mar?! O
Chile é Surrealismo por todos os lados!” Jamais concordei com tal afirmação,
considerando-a mais uma boutade,
talvez algo pertencente ao folclore ou ao âmbito turístico. A França não é surrealista.
Breton, sim. Ou seja, é uma condição que o indivíduo leva dentro de si, que não
pode ser expressa senão como valor individual. Concordam comigo?
LZ | Eu creio que a obra de arte está feita
por seres humanos e não por nevadas ou vulcões, mesmo que estes possam nos
mover a todos. No entanto, é exatamente Gómez-Correa quem se manteve sempre
fiel à ideia do Surrealismo.
SW | O próprio Breton, quando vem ao México,
observa que este ambiente é, por natureza, surreal. Eu creio que isto tem a ver
com “o desaforado” que comentamos acima, e creio que a isto também se refere
Gómez-Correa.
FM | Hans Arp – que escreveu um livro com
Huidobro – me parece ter sido a primeira voz a insurgir-se contra esse
preconceito do Surrealismo em relação ao abstracionismo. A busca exacerbada de
um conteúdo equivale à mesma preocupação isolada em relação à forma. Caberia
rever a obra de artistas como Jackson Pollock, Antonio Bandeira ou Francis
Bacon. Avaliar melhor as relações entre abstracionismo e figurativismo, por exemplo.
Creio que Río Loa, estación de los sueños
(1994) é uma bela síntese disto. Não há ali um “ato de evasão em proveito de
valores imaginários”, como temia Magritte em relação ao abstracionismo na
pintura.
LZ | São os seres humanos que fazem a arte. Alguém
nasceu nesse deserto, porém o resto das pessoas que viveram ali mesmo é
possível que façam uma coisa inteiramente contrária.
SW | Nós participamos, durante anos, do
movimento Phases, cujo postulado é que o Surrealismo não é necessariamente
figurativo, e que há abstracionismo surreal. Nisto o líder de Phases, Edouard
Jaguer, difere de Breton, e eu estou com ele. Em todo caso, qualquer
dogmatismo, venha de Breton ou de quem quer que seja, me parece aberrante.
FM | A residência em Oaxaca, após tantos anos
de Toronto, quais novas possibilidades aporta? E como tem sido o trabalho
editorial junto à revista Vaso
Comunicante?
LZ | Eu sinto que há em Oaxaca uma presença
enorme do pré-colombiano, muito importante, já que as pessoas que me toca
tratar são mixtecos e zapotecos que há quatro mil anos ergueram as primeiras
cidades meso-americanas. Neste aspecto, culturalmente, Oaxaca é riquíssima em
comparação a Toronto, embora também seja certo que Toronto é o lugar onde te
ajudam a realizar uma série de obras, edições etc.; em troca, em Oaxaca exista
uma atmosfera intelectual muito provinciana. Vaso Comunicante influi na mudança dessa atmosfera.
SW | Eu creio que o Surrealismo é uma condição
interior (nisto estou de acordo contigo), e aonde quer que vás o levarás como
todo o resto de tua psique. O trabalho de Ludwig e o meu próprio têm sido como
são não porque estivemos em uma cidade como Toronto, mas sim apesar disto. E o
mesmo sucede em relação a Oaxaca. Em Toronto gozamos de apoio material e aqui
gozamos do apoio social e humano e do fato de que o que fazemos parece aqui
mais “natural”, menos agressivo. A novidade aqui em Oaxaca é precisamente que a
resistência ao que fazemos é menor. Também vale a pena mencionar que Oaxaca é
um entorno muito permeado do oral e do visual. As pessoas leem pouco, porém
veem muito as imagens. Para quem faz colagens, como Ludwig, ou pinta, como eu,
isto abre uma fresta pela qual, com alguma sorte, poderemos colar nossa obra
artística.
Em Oaxaca Ludwig, sempre ansioso de fazer uma revista, encontrou o apoio
que buscava, principalmente em uma pessoa cujo nome é César Mayoral Figueroa.
3. ALGUMAS
CARTAS
A correspondência com Ludwig
Zeller tem início em maio de 1990. Já não recordo quem nos apresentou, e sim
que na época eu estava empenhado na publicação de uma antologia de poesia
hispano-americana, o que me levou a procurar endereços de vários poetas. Quando
estive no México, em 2004, Ludwig então residia em Oaxaca e, juntamente com sua
mulher, Susana Wald, foram à capital mexicana para que finalmente nos
conhecêssemos. O encontro resultou na improvisação de uma intervenção nossa na
feira de livros do Zócalo, e logo se estendeu pelo restaurante do hotel em que
eu estava hospedado. Em 2011, nos encontramos uma vez mais, quando me
hospedaram por alguns dias em sua casa em Oaxaca. [Floriano Martins]
Toronto, 5 de maio
de 1990.
Meu querido amigo:
Chego de uma viagem de mais de três meses ao sul do México e
naturalmente foi se acumulando muita correspondência que necessita ser
respondida de imediato. Tua carta, no entanto, é algo à parte que me deu um
entusiasmo e desejo que este pacote que te envio chegue o quanto antes em tuas
mãos.
Obrigado por tua apreciação entusiasta acerca de meus collages. Para que possas tem maior
material, anexo exemplar de meu livro 50
collages, editado simultaneamente aqui no Canadá e na França. Tem uma boa
introdução de Edouard Jaguer em espanhol, inglês e francês, e certamente te
aclarará muitos aspectos de minha vida.
Desde já estou encantado de participar na Antologia de Poesia
Hispano-americana Contemporânea, mas, como me indicas, anexo uma fotografia
informal e aproveito para enviar o livro A
celebration, uma espécie de milagre tornado possível graças à boa vontade
de muita gente e a participação de mais de cem amigos. Ali verás que “O faisão
branco” está traduzido pelo poeta português Mário Cesariny e o poeta brasileiro
Sérgio Lima. Anexo também um fragmento traduzido por Cesariny de um poema de
amor que leva por nome “Mulher em sonho”. Tudo isto para o que te possa servir.
Querido Floriano Martins, desde já me encantaria participar de teu outro
projeto, sobre entrevistas a distintos poetas que participam da antologia. Vi
com alegria, em Resto do mundo, uma
entrevista concedida a Oscar H. Villordo pelo poeta argentino Enrique Molina, a
quem admiro e quero como a um velho amigo. Adjunto ainda uma série de críticas
de: José Miguel Oviedo, Michael Bullock (escritor inglês residente no Canadá),
Anna Balakian (ex chair do Departamento
de Literatura Comparada da Universidade de Nova York), Javier Sologuren
(peruano a quem seguramente conheces), e A. F. Moritz (professor da
Universidade de Toronto e Guggenheim Fellow). A. F. Moritz, independente de ser
um amigo muito querio, é o tradutor da maior parte de minha obra ao inglês.
Envio outro par de libretos com poemas e aforismos, além de um vídeo e uma fita
cassete. Desfruta com calma e me envia as perguntas para teu livro.
Recebe um forte abraço de teu amigo
***
28 de novembro de
1990.
Querido Floriano
Martins:
Ontem me chegou tua nota e lamento grandemente não haver recebido as
perguntas que me fazias para teus Diálogos
com poetas latino-americanos. O correio é um desastre e tudo tem que ser
enviado com registro. Para remediá-lo, e acaso ganhar tempo, eu te proponho
responder a uma série de perguntas de uma entrevista imaginária. Eu o faria
livremente sobre minha visão própria da poesia em espanhol e o destino da
mesma, minha relação com o Surrealismo, assim como meus pontos de divergência.
O que te parece? Eu te enviaria isto nas próximas duas semanas, porém se te
parece que deverias fazer novas perguntas eu sigo esperando tua carta.
Querido Floriano Martins, eu admiro teu bom ânimo em fazer antologias,
eu mesmo faço tudo o que posso e sei que sempre é difícil. Também me dou conta
que chegou em tuas mãos um pacote de livros que te enviei, porém estou mandando
por correio registrado uma antologia de Rosamel del Valle que agora já não mais
se pode encontrar, e um pequeno livro homenagem de traduções feitas por minha
filha Beatriz com o título The Apostles’
Bar and other poems. Dispõe deste material como for possível.
O endereço de Humberto Díaz-Casanueva é
Hernando de Aguirre 1128
Santiago Chile
Podes mencionar que eu te dei seu endereço. É um esplêndido amigo e um
grande poeta. No pacote que te enviei anteriormente incluí um livro dele que eu
mesmo editei. Há outro poeta surrealista, último participante da Mandrágora,
que, embora padeça há anos de dolorosa enfermidade, escreve e responde às
cartas pontualmente. Seu nome
Enrique Gómez-Correa
Galvarino Gallardo 2150
Santiago Chile
Como no caso anterior, é um amigo de toda confiança que responderá teu
correio de imediato. Por favor, nos dois casos, envia as cartas por correio
registrado.
Até aqui a resposta à tua carta. Queria te fazer uma pergunta. Querias
fazer a tradução ao português de meu poema “Mulher em sonho”? É um poema
difícil, porém de uma extensão não excessiva, algo mais de 400 versos. No
momento, está sendo preparada a edição trilíngue deste mesmo poema, em
espanhol, inglês e francês, com um prólogo de Anna Balakian, uma professor que
tem dedicado a sua vida à divulgação e estudo do Surrealismo. Estando feita a
tradução, se é que te decides, logo encontraríamos a maneira de editá-lo. Há
esplêndidas ilustrações para o mesmo texto e se não for possível editá-lo no
Brasil ou em Portugal, veríamos uma maneira de fazer uma plaquette como a de
Rosamel del Valle que te envio. Por favor, responde o que pensas disto, ou se
preferirias fazer uma breve seleção de poemas. Para a próxima Feira
Internacional do Livro em Guadalajara, México, em novembro de 1991, eu estou
convidado para participar como figura artística central. Terei ali uma
exposição de minha própria obra, um filme e alguns vídeos. Além do mais, me
acompanharão artistas que vêm trabalhando sobre minha obra: Susana Wald que
ilustrou muitos livros e que neste caso exibe as ilustrações para um livro em
grande tamanho e alguns óleos sobre o mesmo tema; Erick Brittan está ilustrando
um longo poema meu que se chama “As engrenagens do encantamento”, seu trabalho
consiste em uma série de trabalhos em encáustica, preparatórios para fazer uma
grande porta em que iria a ilustração do poema nesta mesma técnica. Ao se abrir
a porta há um segundo espaço no qual há um retrato ideal de todo o poético, um
rosto como envolto em panos e sobre cujo bastidor está escrito todo o poema e
nomes de centenas de pessoas anônimas. O quarto participante neste envio é John
Wheeler que fez uma coleção maravilhosa de gravuras em distintas cores. É um
entusiasta da madeira e trabalha com a finura dos artistas japoneses. Tudo
isto, querido amigo, é o que se vai apresentar no Museu de Balas Artes do
México e logo em seguida nas cidades de Oaxaca e Monterrey.
Como vês, o projeto é grande, porém seguramente daí sairá a
possibilidade de uma dezena de traduções a distintos idiomas dependendo dos
contatos que se possa fazer na feira. Por favor, responde-me a respeito. Se
puderes fazer algo seria uma representação de uma imensa parte da América
Latina – as pessoas que falam em brasileiro.
Recebe um abraço cordial de teu amigo
***
18 de agosto de
1991.
Ao Floriano Martins
Querido amigo,
paciente amigo.
Acabo de receber uma nota de tua parte onde me contas que ainda não
recebeste minha carta com materiais para a entrevista. É lastimável isto dos
correios! Eu também havia enviado fotos e livros. Como estou bastante ocupado
volto a tirar uma cópia do computador com as respostas, escritas ao correr da
pluma, o menos solene possível.
Eu te explicava em minha carta anterior que me agradou teu artigo sobre
minha obra, e te pedia permissão para incluí-lo em um volume de ensaios que
será publicado sobre minha poesia e meus collages.
Aqui também incluo uma cópia da tradução ao inglês; a pessoa encarregada disto
foi o poeta Ricardo Sternberg, nascido no Brasil, mas que vive há muito tempo
entre USA e Canadá. É o professor de literatura brasileira na Universidade de
Toronto. Espero que gostes, o volume está sendo impresso e em outubro poderei
enviar-te exemplares.
* Alegra-me que tanto Humberto Díaz-Casanueva como Enrique Gómez-Correa
estejam em contato contigo. Estão entre os melhores na literatura chilena, além
de amigos entranháveis.
* Muitas outras coisas me escapam, já que não tenho cópia da carta
anterior. Havia anexado, porém volto a fazê-lo, o prólogo que escreveu minha
boa amiga Anna Balakian para Mulher em
sonho; segue também cópia do poema; sei que é tarde para que possamos
imprimi-lo para a Feira Internacional do Livro em Guadalajara, porém já virão
outros eventos no próximo ano. Talvez o mais interessante fosse uma antologia,
com introdução e notas de tua parte.
* Alegra-me que possas contar com a amizade valiosa de Sérgio Lima. É um
poeta e artista extraordinário. Também lhe enviei carta e um collage há algumas semanas, mas não
tenho resposta e temo que esteja em alguma caixa de objetos extraviados.
Querido Floriano Martins, querido amigo. Espero entendas a minha letra e
finalmente possam chegar esses papéis em tuas mãos. Tratarei de enviar em
envelope à parte reproduções de collages
ainda inéditos para a entrevista, aqui vão alguns que talvez te sirvam.
Recebe um abraço afetuoso de seu amigo
P.S.: Recebeste uma
antologia de meus poemas de amor traduzidos com o título To saw the beloved to pieces only when necessary? Acredito que
tenhas algum interesse nisto, apesar do tom nostálgico.
***
2 de outubro de
1991.
Meu querido amigo:
Acabo de receber tua nota onde me contas como progride nossa antologia Los espejos de Circe – poemas & collages.
Não imaginas a alegria que me dás com isto, são de alguma forma os poemas que
eu prefiro. Além disto, que possas traduzi-los e que te agradem me confirma o
vital de toda poesia que sempre estimula e abre outras possibilidades à mente.
Como me pedes alguns originais de Tatuajes,
preferi enviar-te o conjunto integral, e também um poema ainda inédito: Los engrenajes del encantamiento.
Escrevi uma série de versões distintas até chegar a esta; espero que te agrade.
O outro poema curto de um sonho e seu texto paralelo é de um projeto maior. Eu
queria reunir 50 ou 60 e edita-los como Sonhos,
poemas e collages.
Estou averiguando de que maneira pode o governo do Canadá pode ajudar na
publicação desta minha antologia, já que existem fundos para promover a
literatura através de traduções. Porém no momento não tenho segurança de apoio.
De qualquer modo, programa a antologia com inteira liberdade, incluindo
prólogos, documentos críticos etc. Logo encontraremos os fundos; em todo caso
existe a possibilidade de co-edição. Seria um bom dado ter uma ideia aproximada
de quanto custa um livro em edição brasileira. Anexo Espejismos – Mirages. Originalmente muitos deles serviram de
ilustração para os poemas longos. O tomo de poemas de amor eu torno a enviar,
pois temo que o anterior esteja perdido. De teu livro, ainda estou à espera.
Lamento que não venhas a Guadalajara, já que muitos amigos se reunirão
ali, e eu gostaria de falar contigo de tantos projetos que estão no ar. Até
breve.
Com o abraço
***
14 de setembro de
1992
Meu querido amigo:
[…]
Alegra-me que sigas com tua grande antologia sobre os poetas da América
Hispânica. A única coisa que lamento é que entre meus livros encaixotados no
Chile há muitos anos estejam todos aqueles autores cujos livros não encontras:
Eguren, Gaitán Duran e Pablo de Rolha. Eu te recomendo, no caso de Eguren, que
escrevas a Javier Sologuren ou Germán Belli, em meu nome, que poderão fazer
xérox do material para te enviar. De Gaitán Duran talvez possas falar com os
amigos colombianos de Prisma ou Común Presencia. De Pablo de Rokha eu
mesmo farei as cópias porque lamentavelmente tenho um volume muito grande que é
quase impossível enviá-lo por correio.
[…]
Recebe um forte abraço de minha parte. Viva a poesia!
***
San Andrés
Huayapan, 27 de fevereiro, 1992
A Floriano Martins
Meu querido amigo:
Como sempre, não sei se terás recebido meu catálogo Zeller Sueño Libre, ou o livro em que está incluído teu artigo em
sua tradução inglesa. Eu espero que sim, já que sei a alegria que terias caso
pudesses ter ido à Feira Internacional do Livro de Guadalajara, lugar onde
encontrei muitos amigos. Voltei a ver pessoas que quero muito, como Enrique
Molina e tive oportunidade de falar com muitos jovens da nova geração que me
assaltavam com perguntas. Tínhamos 400 m2 e supomos que durante o tempo
em que esteve aberto por ali passaram mais de 200 mil pessoas. Esta mostra será
exibida novamente em Guadalajara, a 18 de março, em seguida na Cidade do México
e viajará a Oaxaca, ao sul do país. Finalmente retornará ao Canadá, onde será
exibida em quatro cidades distintas nesse distante 1993 que ainda me resulta
muito borrado à vista.
Porém… Agora estou com minha mulher, Susana Wald, passando dois meses e
meio de férias relativas em Huayapan, um povoado bem perto de Oaxaca, vivendo
em uma mansão que nos facilitou um amigo italiano, localizada 200 m acima da cidade, o que
permite ver a mesma e uma dezena de povoados nos arredores. Aqui construiremos
no próximo ano uma casa-atelier onde passaremos os meses frios do ano e onde
seria maravilho receber tua visita.
As coisas caminham mais lentas do que desejamos, porém caminham. Este
ano 92 Joaquín Mortiz editará minha antologia de poemas de amor e tenho assim
assegurada uma esplêndida distribuição. (Tens To saw the beloved to pieces only when
necessary, editado por Elixe Editions?) Este ano também espero seja possível entrar em máquinas, em Québec, uma
antologia de minha poesia em francês traduzida muito belamente por um amigo,
poeta e cineasta, Jean Antonin Billard. Com respeito a edições: no final do ano
passado, durante a Feira de Guadalajara, fiz contato com o representante da
Câmara Brasileira do Livro, Aloysio Teixeira Costa, seu gerente geral;
mostrou-se interessado em minha obra e seria bom se entrasses em contato com
ele, pois foi quem pessoalmente me convidou a participar da Bienal
Internacional do Livro, SILAR 1992, em São Paulo , no período de 26 de agosto a 7 de
setembro. Eu falei pessoalmente com ele e contei que tens em preparo uma
antologia de minha obra, para o que ele me pediu te pusesses em contato direto
com ele. Eu não sei o que pode sair disto. De qualquer maneira, recomendo que
entres em contato com ele, já que temos uma amiga em comum a quem podes
referir-se, Sra. Margarita Sierra, organizadora principal da Feira
Internacional do Livro de Guadalajara.
Tenho pendente também uma carta que farei em seguida a esta, dirigindo-a
a Sérgio Lima, que me convida para um congresso em preparação para finais de
1992 ou princípios de 1993. É sobre “O Surrealismo no cone sul da América”. Eu
creio que então já terei livre o material que tenho que enviar ao museu de
Bochum, na Alemanha, para uma exposição ao final deste ano. Minha participação
neste evento será um livro único de 14 folhas duplas de 50x80cm que estamos
fazendo com Susana, a quatro mãos. O poema que escolhemos é “A Aloyse” e eu te
peço que se já o tens traduzido me envies com a máxima brevidade possível, a
Toronto (está incluído em Salvar la
poesía quemar las naves), já que assim figuraria na exposição em Bochum no
original espanhol e as traduções ao inglês, francês, alemão e português. Este
livro constitui em si mesmo uma exposição do trabalho que realizamos juntos com
Susana há anos e caso se torne realidade essa conferência sobre Surrealismo no
cone sul seria uma esplêndida peça para exibição.
Querido Floriano, agora que vejo aqui do terraço este povoado indígena de
Huayapan, como gostaria que pudesses vê-lo também! A vida é simples, porém ao
mesmo tempo maravilhosa. No futuro viveremos talvez 8 meses aqui e 4 meses em
Toronto, Canadá, e finalmente estaremos inteiramente dedicados, Susana e eu, ao
que nos interessa.
Recebe, por favor, um carinhoso abraço de ambos, eu penso que os
correios têm uma alergia especial ao Surrealismo, mas como iremos encontrar uma
maneira melhor de nos comunicarmos? Muito afetuosamente te abraça
***
Oaxaca, 19 de maio
de 1996.
Floriano Martins
Meu querido amigo:
Durante minha estadia no Chile recebi um manuscrito teu (Los tormentos miserables del lenguaje y las
seducciones del infierno en los instantes trágicos del amor de Barbus y Lozna),
acompanhado de uma carta em que me contas que te encontraste com um antigo,
entranhável amigo, Rolando Toro, de quem inclusive fiz um par de livros no
último ano.
Naturalmente, quando chegamos de uma viagem de muitos meses, há muitas
coisas a serem solucionadas e um saco de correspondência que necessita ser
respondida. Minhas desculpas pela demora em fazê-lo, México não é um país
simples e vivendo em uma cidade sulista nem sempre posso solucionar coisas de
edições e artigos com a Cidade do México, sem ir diretamente ali e comprometer
os amigos de forma absoluta.
Duas coisas eu tenho pendentes em tudo isto: logo tratarei de fazer um
artigo que te sirva de prólogo para teu livro. Eu o faço com gosto e não é de
forma alguma algo que seja contrário ao meu ânimo. O único problema que
encontro é que estou a ponto de viajar ao Arizona para um par de debates que
temos com Susana e para encontrar uma maneira de escolher os espaços no museu
da Universidade para uma exposição no próximo ano. Em seguida seguiria para
Toronto, para ver meus filhos e solucionar uma série de problemas editoriais
pendentes. Eu estaria de volta a Oaxaca nos primeiros dias de julho e será
então quando poderei ter a oportunidade de fazer um texto sobre teu livro.
A segunda coisa é que revisando com cuidado o texto eu te recomendaria
que alguém cuja língua fosse o espanhol e que tivesse uma ideia clara do idioma
fizesse a revisão. Há ali erros que os franceses chamam de “falsos amigos”,
coisas que soam iguais em dois idiomas, mas que têm significados diferentes.
Neste mesmo instante, Susana me diz que poderá fazer as correções em julho e eu
creio que na mesma ocasião poderemos te enviar.
Eu espero que não te aborreças com o que eu te digo, porém o mais
importante nisto é que o texto resulte impecável. Acabo de me dar conta que por
vezes me envias revistas ou jornais que chegam com muita dificuldade aqui se
não estão registrados. É como lançar uma garrafa ao mar.
Recebe, entretanto, um abraço carinhoso de teu amigo
infatigável arquiteto dos encontros, salve Flor!
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