terça-feira, 26 de janeiro de 2016

A. CÂNDIDO FRANCO | André Breton libertário e automatista


No Verão de 1944, já depois da ruptura com Jacqueline Lam, na companhia de Elisa Claro, com quem casará no ano seguinte, em Reno, André Breton, exilado na América desde 1941, por via de Vichy, abandona Nova Iorque e parte à descoberta do Quebeque, atraído pelas costas solitárias da península da Gaspésia, por onde vagueia durante semanas, só regressando ao ponto de partida no final de Outubro. Durante a viagem inicia a escrita dum novo livro, Arcane 17, que fechará nos primeiros dias do ano seguinte, dedicando-o a Elisa, modelo do mais benévolo influxo, e que terá uma primeira edição, em exclusivo bibliófila, na nova-iorquina casa Brentano’s, ficando a edição francesa, definitiva e corrente, Arcane 17 enté d’Ajours, para Junho de 1947, ano da reinstalação definitiva em Paris. O livro abre cruzando Elisa e a ilha de Bonaventure, um dos maiores santuários de pássaros de mar que existem no mundo, tudo por certo, do nome da ilha à emanação da mulher, mais que bastante para levar Breton a tomar para título do livro o mais auspicioso dos arcanos do velho Tarot, que fora de resto a sua derradeira consolação, com André Masson e Max Ernest, no curro de Marselha, quando tentava em Março de 1941 escapar de Vichy. Aberta a cortina, eis que de repente no livro, nas páginas iniciais, irrompe, viva e serpenteante, uma recordação de adolescência relativa ao ano de 1913, um desfile operário em Paris, no Pré-Saint-Gervais, em que as bandeiras negras anarquistas, flores carbonizadas – exclama ele, o haviam electrizado. E de seguida vem uma perturbante recordação de infância: Nunca esquecerei o choque, a exaltação e a euforia que me causou, numa das primeiras vezes em que, ainda criança, me levaram a um cemitério – entre tantos monumentos funerários deprimentes ou ridículos – a descoberta duma lápide simples de granito gravada em maiúsculas vermelhas com a estupenda insígnia: NI DIEU NI MAÎTRE.
O livro de Breton cogitado nas vastas solidões da Gaspésia conhecerá edição francesa (Sagittaire) no mesmo momento em que o grupo surrealista de Paris dá à luz o manifesto “Rupture Inaugurale”. O livro aparece no princípio de Junho e o panfleto é distribuído a 21. Que se diz neste? Que o surrealismo se emancipa em definitivo de qualquer ligação partidária, seja ela qual for, e se dedicará em exclusivo a promover a criação dum novo mito capaz de empurrar a humanidade para uma etapa mais adiantada do seu destino. Não é pouco para um movimento que em 1929 se mostrara na disposição de trocar a sua publicação própria, La Révolution Surréaliste, por uma outra, Le Surréalisme au service de la Révolution (SASDLR), que significava a sua capitulação diante do partido comunista francês, de resto efectiva desde 8 de Novembro de 1925, altura em que o grupo declarou no órgão do partido, L’Humanité, não haver uma concepção surrealista da revolução. Mesmo depois da ruptura com este partido em 1935, antecedida pouco antes pela expulsão de Breton da A.É.A.R. (association des écrivains et artistes révolutionaires), as ilusões partidárias de Breton, em ligação com o marxismo-leninismo, não esmoreceram. Aproxima-se do trotskismo e em Dezembro de 1936, como tribuno, intervém num comício do P.O.I. (parti ouvrier internationaliste) contra os processos de Moscovo que acabavam de ter lugar (Setembro). Dois anos depois, no Verão de 1938, Breton vai ao México, onde redige com Trotsky o texto por uma arte revolucionário e independente, que não terá porém a assinatura do russo mas a do pintor Diego Rivera e será o manifesto de fundação da F.I.A.R.I. (federação internacional da arte revolucionária independente), cujo boletim, Clé, surge em Janeiro do ano seguinte, a do início da guerra, com Breton na redacção, se não à testa. Em Março de 1941, já depois do homicídio de Trotsky (Agosto, 1940), Breton abandona a França ocupada e instala-se em Nova Iorque. É aí que se separará de Jacqueline Lam (1942), o fulgurante amor que lhe inspirara L’Amour Fou (1937) e de quem tivera Aube Breton (n. 1935), que nesse livro trata por Écurette de Noireuil, e encontrará a jovem chilena Elisa Claro (1944), que lhe restitui a alegria e a excitação do amor, levando-o a conceber a escrita dum livro sobre o mais benéfico dos arcanos do Tarot, “A Estrela”, o 17. É ao iniciar a escrita desse livro, no final do Verão, vagabundeando pelas soidões da Gaspésia quebequiana, na companhia da suaestrela inspiradora, que Breton é apanhado pelas duas recordações atrás reportadas, a primeira relativa a uma manifestação operária em Paris, antes da revolução bolchevique, quando os pendões negros do anarco-sindicalismo enchiam o imaginário da emancipação, e depois uma lembrança mais antiga, vinda das terras virgens da infância, cruzando uma primeira ida ao cemitério e uma lápide libertária, o todo levando pouco depois, no regresso à Europa, ao manifesto de 1947, “Rupture Inaugurale”, que parece ter sido a carta de alforria com que o surrealismo iniciou a terceira fase de vida, a meu ver a mais emancipada, e por isso a mais larga e a mais dinâmica, se não a mais rica, aquela em que pôde surgir a torre gelada dum António Maria Lisboa ou a poesia, a prosa e os sinais mistéricos e pictóricos dum Mário Cesariny, cuja importância e lugar no quadro do surrealismo internacional está ainda por perceber.
São “inocentes” e nuas as duas lembranças de 1944 ou estão antes providas de associações secundárias que o texto circunstancial a um amor encantatório mal deixa perceber? Não tenho qualquer dúvida em escolher a segunda hipótese. Trotsky acabara de ser assassinado no verão de 1940 por um assassino a soldo de Estaline, transformado em “herói” de Estado, e, porventura mais importante, Wolfgang Paalen (1905-1959) acabara de escrever no primeiro número da revista Dyn (Abril, 1942), por ele fundada, um farewell ao surrelismo, em que se tomam por inadequadas, e até por caducas, as referências maiores com que o movimento atravessara a década anterior e das quais tirara conclusões próprias – o acaso objectivo, devedor de Engels, a noção de objecto, cujo crédito vem da filosofia de Hegel, e sobretudo a necessidade de acertar o passo com os partidos revolucionários de origem marxista-leninista e que levara aos episódios da SASDLR e do partido comunista francês, e depois, quando a manápula do estalinismo se fez intratável, da travessia por dentro do trotskismo, com o nascimento da F.I.A.R.I. e a elaboração do manifesto desta em colaboração com o próprio Trostky. Austríaco, mas a viver no México, Paalen não era qualquer um; era tão-só uma das mais recentes e promissoras aquisições do surrealismo. Fora ele, com César Moro, o peruano que aderira ao surrealismo em Paris ainda na década de 20, na cidade do México, que organizara em Janeiro de 1940 a quarta Exposição Internacional do Surrealismo.
Já se viu na publicação de Prolegómenos a um Terceiro Manifesto ou Não, no primeiro número de VVV(Junho, 1942), onde se questiona qualquer pensamento sistemático e se liquida o antropomorfismo, outro dos motivos do texto de Paalen, a resposta de Breton às pouco esperadas mas pertinentes impugnações do organizador da exposição surrealista de 1940, que de resto regressará ao surrealismo na década de cinquenta, o que deixa em aberto que por aí ou por outro lado se deixou convencer de que o movimento superara os limites que lhe apontara no início da década anterior. Prefiro, pelo meu lado, eleger para resposta as duas recordações que abrem o livro do Outono de 1944, e onde o marxismo está de vez enterrado – nosProlegómenos ainda há uma alusão a Engels (mas ao lado de Abelardo, de Heraclito, de Arnim, de Rousseau, de Jarry, de Eckart e outros assim desalinhados). Inumado o marxismo-leninismo, o que em seu lugar irrompe e com a força basilar daquilo que vem da infância é o movimento libertário, que de resto depois do corte com o partido comunista francês, em 1935, parecia andar cada vez mais nas vizinhanças do itinerário de Breton. No Verão de 1936, Benjamin Péret, um dos próximos e tão próximo que por causa dele Breton entrara nesse mesmo ano em rota de colisão com Paul Eluard, com quem nunca mais se conseguirá reconciliar, vai para Espanha para lutar ao lado da República contra o golpe militar. A princípio integra-se no P.O.U.M., o partido trotskista que mais afinidade mostrava com o itinerário político do grupo surrealista, mas pouco depois passa-se para a coluna Durruti, da C.N.T., onde fará parte da guerra – regressou em Abril de 1937 (o corte de Péret com a IVª Internacional só acontecerá porém em 1948). Isto não terá escapado a Breton, que no manifesto redigido no Verão de 1938, quando ainda se esperava algo da ofensiva republicana no Ebro, chega a escrever o seguinte (é um dos parágrafos cruciais do texto): A finalidade do presente apelo é o de procurar encontrar um terreno para reunir os paladinos revolucionários da arte, de modo a servir a revolução pelos métodos da arte e a defender a liberdade da arte contra os usurpadores da revolução. Estamos profundamente convencidos que o encontro neste campo é possível entre os representantes de tendências estéticas, filosóficas e políticas adiantadamente diferentes. Os marxistas podem aqui caminhar mão na mão com os anarquistas.” De resto, já antes, se podia ler: Se, para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, a revolução necessita de construir um regimesocialista de plano centralizado, para a criação intelectual ela deve desde o momento inicial estabelecer e assegurar um plano anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma coacção, o mínimo vestígio de comando.
A ligação ao anarquismo acentua-se com o regresso a França no pós-guerra. O manifesto de 1947, limpando o terreno de qualquer tentação partidária, e o de 1948, “À la Niche les Glapisseurs de Dieu”, denunciando os milionários da fé, ambos catalisadores segundo Cesariny da formação do surrealismo português, exercitam e põem em prática a linha de força de Arcano 17. Entre 1948 e 1949 o grupo de Paris edita a revista Néon, de que saem 5 números. Em 1949, já sem porta-voz, o grupo socorre-se dum jornal para publicar as suas notas de imprensa, dando a conhecer as suas posições. Que jornal é esse? O velhoLe Libertaire, porventura um dos primeiros jornais anarquistas do mundo, fundado em Nova Iorque em 1858 por um francês e que em 1895 Sébastien Faure e Louise Michel transformam, lado a lado com a memorável revista Temps Nouveaux, no principal título da imprensa libertária francesa. Depois da Ocupação, 1944, o jornal reaparece como órgão da Federação Anarquista, resultante da fusão de estruturas anteriores. A colaboração dos surrealistas no semanário será longa, regular e activa – o jornal em 1954 é substituído por um outro título, Le Monde Libertaire, que ainda hoje se publica como hebdomadário. Entre 1951 e 1953 o jornal dá à estampa cerca de trinta bilhetes surrealistas. O primeiro, uma “declaração prévia” (12-10-51), com dezoito assinaturas, uma delas de Breton, abre assim: Surrealistas, nunca deixámos de consagrar à tríade Estado-Trabalho-Religião um repúdio que frequentemente nos levou a encontrar os companheiros da Federação Anarquista. Essa aproximação conduz-nos hoje a exprimirmo-nos em Le Libertaire. Entre as entregas do grupo surrealista figura um texto maior de André Breton, “La Claire Tour”, estampado no jornal a 11 de Fevereiro de 1952 e que pela sua importância para aquilo que aqui nos move, e até pelo que desfia do fio que abriu no livro escrito na Gaspésia, comentamos no final deste texto dele dando, em língua portuguesa, com autorização expressa de sua filha Aube Breton- Elléouët, alguns extractos meramente ilustrativos. Nele se vê como o ADN do surrealismo comportava no momento do seu nascimento um cromossoma libertário que só os sucessos relativos à revolução soviética puderam por momentos deixar de lado. A história desse recalcamento é a triste linha de sucessos que vão da adesão de Breton ao partido comunista, em 1925-6, até à sua expulsão em 1935. A libertação do trauma começa a partir desse momento, a medo primeiro, com aquilo que podemos chamar o anarco-trostkismo desse segundo lustro da década de 30, tocado pelo itinerário de Péret e pelo manifesto escrito a duas mãos com Trotsky, e depois mais espraiado, sem receios de espécie alguma, naquilo que se pode tomar por puro impulso libertário, desligado já do materialismo dialéctico, por via das críticas inesperadas de Paalen, que obrigam Breton a um salto muito mais alto, com o cruzamento feliz entre o encontro com Elisa e o passeio desafogado pela Gaspésia estival.
A colaboração de Breton e do seu grupo com o velho jornal de Sébastien Faure não começou com a “declaração prévia” de Outubro de 1951. Já antes disso o nome de Breton aparecera com alguma frequência nas páginas da publicação. Registemos alguns momentos. O primeiro, o discurso que fez num comício na sala “Mutualité” em 14 de Outubro de 1949 a favor da objecção de consciência ao serviço militar e que mereceu reprodução nas páginas do jornal (21-10-49). Assinale-se no discurso a alusão sempre exaltante à mobilização de 1913, dita do Pré-Saint-Gervais, contra o recrutamento e o serviço militar obrigatório, e que fora já objecto de exposição, mais vaga ou mais poética, na abertura inicial do livro de 1944, Arcano 17. Nesta nova alusão ao momento, Breton fala da manifestação como tendo sido o espectáculo que mais me marcou na minha juventude. Aqui se encontra no parecer de todos o primeiro gérmen político do jovem Breton, leitor reconhecido da imprensa libertária francesa da época, onde se topa com uma curiosa publicação L´Action d’Art, de inspiração stirnerniana, que lhe encheu por certo as medidas, e que só os sucessos ulteriores de 1917 vieram recalcar, com o fio subsequente que se sabe. Voltando às relações de Breton com Le Libertaire, que de resto era um dos títulos que ele lia em 1913, deparamos com novo texto de Breton no jornal em Janeiro do ano seguinte (20-1-1950), desta vez sobre Céline, resposta a um inquérito do jornal, aberto por Maurice Lemaître, a propósito da reabertura do processo contra o escritor refugiado na Dinamarca. Fora dos bilhetes surrealistas vale ainda reportar outro momento de Breton nas páginas do jornal. A 14 de Dezembro de 1951, no seguimento duma onda grevista que alastrou a toda a Espanha, os tribunais espanhóis condenaram à morte, em Sevilha, dois sindicalistas da C.N.T., clandestina então, e a 6 de Fevereiro do ano seguinte, desta vez em Barcelona, mais onze militantes da confederação sofrem a mesma sorte. Diante desta vaga repressiva, foi convocada uma acção de solidariedade em Paris, sala Wagram, onde Breton discursou. A peça será publicada em Le Libertaire a 7 de Março de 1952. É um dos raros momentos – o único mesmo de que dou nota, mas admito falhas – em que Breton se pronuncia sobre a mítica central sindical ibérica. É texto que por todos os motivos merecia inclusão neste número da revista. A dimensão do texto – vinte e seis parágrafos, alguns com quase duas dezenas de linhas – dissuadiu-nos porém do propósito, adiando a sua publicação integral para o público português para ocasião futura. Ainda assim deixamos, a título ilustrativo, abertura e fecho do texto: Camaradas: se em alguma parte do mundo o coração da liberdade continua a bater, se há um lugar em que essas pulsações nos chegam mais ritmadas do que em qualquer outro ponto, todos sabemos que esse lugar é a Espanha. É exaltante pensar que quinze anos de ditadura não o enfraqueceram. / Quando das greves de Barcelona de Março de 1951, pudemos constatar que não somente a combatividade dos meios operários e também dos universitários em nada havia diminuído, como ainda um contágio magnífico se estendeu ao conjunto da população, isolando num só golpe os paladinos e os carreiristas do regime e ficando em posição de expulsá-los como um corpo estranho. / Todos os que se deram conta destas greves, mesmo sem simpatia funda pelo longo sofrimento do povo espanhol, foram surpreendidos pela sua inclinação em alastrar como mancha de óleo. /…/ Há aqui um facto novo que não precisa de muita cogitação. Não é difícil interpretá-lo como uma serpe que afecta no seu conjunto toda a estrutura ditatorial. Pode-se matar, pode-se empenhar tudo a envilecer o que pode ser envilecido, pode-se agitar à direita e à esquerda o crucifixo e descarregar a metralha, pode-se esfomear um povo e separá-lo da restante comunidade humana, que não é por isso que se acaba com a alma desse povo tal como ela incarnou na minha infância na pessoa de Francisco Ferrer e depois se fortaleceu na bravura lendária da C.N.T. e da F.A.I. / (…) / Antes que seja tarde, já que de acordo com as últimas notícias os falsos advogados dos nossos companheiros foram adverti-los de que seriam fuzilados em breve, falemos a uma única voz para exigir a revisão à luz do dia dos julgamentos de Sevilha e de Barcelona, com advogados isentos e conhecedores dos processos e sob a garantia de observadores internacionais. A todo o preço, e com toda a urgência, encontremos meio outrossim de fazer chegar aos nossos camaradas uma mensagem do tipo: “Em nome de todos os homens livres e de todos os que só anseiam por se libertar, obrigado! Não perdei a esperança, que nós estamos de todo o coração em pensamento com vocês! Vida e glória à heróica C.N.T. espanhola.” Em 14 de Março, sete dias depois do texto de Breton vir a lume, cinco dos condenados foram fuzilados nos arredores de Barcelona. Pelo menos Albert Camus e Albert Béguin, o autor de L’Âme Romantique et le Rêve (1937), intervieram ao lado de Breton para salvar a vida aos sindicalistas libertários espanhóis.
Depois da tranformação de Le Libertaire em Le Monde Libertaire, a colaboração de Breton com a imprensa libertária diminui, se bem que ainda na década de 50 alguns outros momentos – a invasão soviética da Hungria, a guerra da Indochina, a guerra argelina – voltem a fazer cruzar o itinerário de Breton com o dos anarquistas franceses. Para essa diminuição muito contribuiu a publicação de duas revistas surrealistas novas, duas das muitas que o surrealismo francês criou, Médium (53-54) e Le Surréalisme Même (56-57), e nas quais Breton empenhou muita da sua energia. A colaboração de Breton com a imprensa libertária conhecerá ainda porém um episódio digno de registo. Em 1957, o velho anarquista francês Louis Lecoin, então com sessenta e nove anos, decide mobilizar-se para obter um estatuto para os objectores de consciência. Desde o comício de 1949, em que Breton estivera presente, que a situação se mantinha. Nenhum estatuto, nenhuma protecção, nenhum cuidado. Em caso de objecção, a única alternativa era o cárcere. Havia então uma centena de encarcerados, grande parte Testemunhas de Jeová. Lecoin vendeu os bens e reuniu donativos para fundar um hebdomadário, chamado Liberté, que foi lançado no princípio de 1958, cuja finalidade era tirar da prisão os objectores e obter um estatuto legal que os defendesse. Com o jornal, Lecoin criou um comité de socorro aos objectores de consciência, em que Breton colaborou. A campanha teve peripécias, imaginação e vitórias estimulantes, como a libertação ainda em 1958 de nove encarcerados. Conseguiu por fim obter o estatuto, mas só ao fim de cinco anos, em 1963 e depois duma greve da fome que durou mais de vinte dias e que deixou Lecoin, aos setenta e cinco anos em estado de coma. Conhecem-se duas intervenções de Breton no processo: primeiro, a alocução que fez num dos comícios a favor dos presos, a 5 de Dezembro de 1958, sala Mutualité, Paris, e que foi dado à estampa no jornal de Lecoin; segundo, o curto texto que escreveu, durante a greve da fome do anarquista, que ficou inédito durante muitos anos – só foi dado à estampa em 2008 – e de que ficaram duas versões manuscritas. Também estes dois textos merecem tradução integral em português, que aqui, pela sua dimensão, não podemos restituir. Em seu lugar deixamos extractos ilustrativos.
Do primeiro, um longo texto, no género da alocução em favor dos sindicalistas da C.N.T., escolhemos um período, em que Breton discorre sobre a consciência. Assim: A consciência, essa força individualista, sim, por excelência libertária, que em presença de tal ou tal situação nos introduz, isto se o caminho não estiver impedido por nossa culpa, no mais secreto de nós mesmos e nos impõe de nos empenharmos contra aquilo que temos por escândalo; a consciência, é aquilo que nos une à vocação do homem, a única que em última visão podemos tomar por sagrada: a de nos opormos, sem olharmos às consequências para a nossa pessoa, a tudo o que atenta à mais profunda dignidade da vida. Do segundo – que serviu talvez a Breton para prestar, junto da imprensa, apoio ao jejum de Lecoin, e inédito ficou até à publicação das obras completas (Gallimard, 1988-2008) – tiram-se alguns períodos. Estes: Que o maior erro (…) dum revolucionário seja o de ultrapassar a idade de cinquenta anos, eis o que (…) Lenine confiou a Trotsky (…). / (…) / Foi todavia além desses limites que Louis Lecoin, mais exigente do que nunca, tomou em mãos o triunfo da causa que fez sua. Sacrificara já doze anos de liberdade. Muito abalado (…) pelo desaparecimento da sua companheira, o seu primeiro gesto (…) foi o de se dar por inteiro a esta causa. Data desse momento a fundação de Liberté, jornal “social, pacifista, libertário”, no qual os seus amigos bem sabiam que ele iria empatar todos os seus magros haveres. Mas ali estava um imperativo absoluto: agir de tal modo que o caso dos objectores de consciência pudesse ser reconsiderado, arrancando-os de vez às enxovias e dando-lhes um estatuto que os livrasse da obrigação militar em troca dum serviço civil./ No curso dos cinco anos de existência do jornal sabe-se que muitas promessas apareceram. Seriam para cumprir? Para duvidar era preciso não ser Louis Lecoin, quer dizer, o desinteresse e a generosidade em pessoa. (…) / De decepção em decepção, chegou porém o dia em que a fé na palavra dada deixou de ser suficiente. Foi quando a amnistia ousou dizer o seu nome (…) que Lecoin compreendeu que o mais verosímil era os objectores ficarem de fora, pese embora a amnistia se estender aos piores criminosos. Diante duma tal negação da justiça, não lhe restou senão escutar a voz interior que lhe ordenava que se empenhasse na prossecução do seu fim sem olhar a custos. / (…) /.
Não quero fechar sem referir um derradeiro episódio sobre as relações de Breton com o anarquismo francês. Tem lugar em 1923, dez anos depois da manifestação do Pré-de-Saint-Gervais, cujos lábaros negros serão mais tarde recordados na Gaspésia, lado a lado com a impressiva leitura na brancura da infância duma lápide libertária (por certo dalgum velho communard ali enterrado). O ano de 1923, se não é o do parto do surrealismo, faz ao menos parte da época que marcou o seu nascimento. Em 22 de Janeiro desse ano a anarquista Germaine Berton assassinou o monárquico Marius Plateau, secretário da Action Française, o que levou de imediato à sua prisão. O evento agitou o grupo que se reunia em volta da revista Littérature (1919-24), no seio da qual se desenvolveu o surrealismo, provocando nele vivas discussões. Por fim, no momento do processo, em Dezembro, o grupo, picado por Breton, toma posição clara a favor da incriminada, levando-lhe à saída do tribunal um cesto de rosas e cravos vermelhos, acompanhados dum cartão com os seguintes dizeres: A Germaine Breton, que fez aquilo que nós não soubemos fazer. Um ano mais tarde, a 1 de Dezembro, no primeiro número da revista La Révolution Surréaliste, que substitui Littérature, cujo derradeiro número aparecera em Junho, Germaine Berton será um dos motivos fortes de celebração do imaginário surrealista inicial, que nela verá a encarnação da revolução e do amor.
 O episódio de Germaine Berton é significativo por duas razões. Primeiro põe à mostra o cromossoma libertário do surrealismo, em época de oiro, aquela em que Breton estampa o primeiro manifesto (Outubro de 24) e o grupo abre o bureau de recherches surréalistes e dá à estampa o primeiro número da sua revista específica. O que reforça este cromossoma é o facto do partido comunista existir desde 1921, ano em que Dádá em Paris fez, por meio do grupoLittérature, o processo de Maurice Barrès, inculpado de crime contra a segurança do espírito. No episódio Berton desenha-se a encruzilhada do surrealismo nas suas relações com as forças políticas exteriores. Para bem dizer, no momento do seu nascimento ele tanto podia ter continuado fiel ao anarquismo inicial, que não estava só afinal confinado à primeira juventude de Breton (lápide libertária e manifestação operária anti-belicista do Pré-de-Saint-Gervais), como inclinar-se para o recém-nascido partido comunista francês, o que na verdade veio a acontecer, e por longo período, mais duma década, ao que parece pela leitura que Breton tomou por empolgante no Verão de 1925 da biografia de Lenine por Trotsky.
Em segundo plano o caso de Germaine Berton, ausente da história das acções mais conhecidas do grupo surrealista francês, é ainda representativo da personalidade política de Breton – tão patente por exemplo no caso da agressão a Ilya Ehrenbourg, que levará à sua expulsão do partido comunista em 1935. Breton mostrou sempre adesão apaixonada à revolução, tal como a entendiam os herdeiros das convulsões sociais do século XIX, e ao que nelas havia de violento, de altercador, de chocante, de catártico. Coevo de Gandhi, nunca citou com simpatia, que eu saiba, a actividade política deste grande lutador, não obstante o apoio incondicional que deu aos objectores e (até) ao pacifismo não violento de Lecoin. Ao que dou nota, Breton nunca regressou à figura de Berton, como se a leitura da Vida de Lenine de Trotsky a tivesse enterrado para sempre, ao contrário do que faz com a manifestação do Pré-de-Saint-Gervais, com a ida ao cemitério da sua infância, ambas citadas com verdadeiro fervor em Arcano 17, e com a figura de Violette de Nozières, acusada de parricídio em 1933 e que mereceu a Breton a inclusão nas efemérides surrealistas de 1955. Ainda assim talvez nenhum episódio, nenhuma figura, nenhum momento nos situe melhor a alma política de Breton do que esse cesto de rosas vermelhas enviada a uma pantera anarquista que acabara de se envolver num atentado à mão armada. E não é tanto o Breton revolucionário ao velho estilo da acção directa que eu vejo aqui, o mesmo que como tantos outros acabaria por uma questão de eficácia (duvidosa) por aderir ao partido comunista em 1925, e que para bem dizer é o mesmo que intervirá a favor do sindicalismo libertário espanhol ou dos objectores de consciência, mas o Breton inflamado, escaldante, vulcânico, poético, que no momento da sua ruptura com o estalinismo, e depois com o abandono do marxismo-leninismo em geral (e dele não sobreviveu qualquer alusão nas efemérides de 1955), percebeu que transformar o mundo não era suficiente; era preciso, na senda da grande poesia, na via de Rimbaud, mudar de vida e de mente.
E por aqui se chega e retoma o estupendo texto de André Breton, “La Claire Tour”, dado a lume no jornalLe Libertaire a 11 de Fevereiro de 1952, e que pela sua textura representa uma condensação riquíssima, até do ponto de vista simbólico, dos nós que se encontram no percurso político de Breton e do surrealismo. É uma chave interior, talhada na recordação dum poema de Laurent Tailhade, a balada Solness, datada de 1900, cuja estrofe final invoca a anarquia, portadora de lume e construtora da clara torre que domina as torrentes. A canção, composta sobre epígrafe de Ibsen, teve larga popularidade, tocando o jovem Breton da manifestação de 1913, que quarenta anos depois a retoma para com ela baptizar a mais densa e soberba reflexão sobre o itinerário político do surrealismo e de que aqui deixo dois ou três trechos representativos:Onde o surrealismo pela primeira vez se reconheceu, bem antes de se revelar a si próprio e quando não passava duma associação livre entre indivíduos rejeitando espontaneamente e em bloco as coacções sociais e morais do seu tempo, foi no espelho negro do anarquismo. (…) / Nesse momento a recusa surrealista era total, absolutamente incapaz de se deixar canalizar sobre o plano político. Todas as instituições sobre as quais repousava o mundo moderno e que acabavam de dar por fruto a primeira guerra mundial eram tidas por aberrantes e escandalosas. Todo o aparelho de defesa da sociedade (…) estava em causa: exército, justiça, polícia, religião, medicina mental e legal, ensino escolar. (…) / Porque não se operou nesse momento uma fusão orgânica entre elementos anarquistas propriamente ditos e elementos surrealistas? Ainda hoje, vinte e cinco anos depois, me continuo a interrogar. Não há dúvida que a ideia de eficácia (…) ajudou a decidir doutro modo. Aquilo que se pode tomar como o triunfo da revolução russa (…) contribuiu para uma grande mudança de modelo. O único borrão na pintura – que depois se fará nódoa indelével – residia no esmagamento da insurreição de Cronstadt a 18 de Março de 1921. (…) Podíamos porém acreditar que os sinais de degenerescência a Leste eram regeneráveis. Os surrealistas viveram então na convicção que a revolução social alargada a todos os países não podia deixar de promover um mundo libertário (alguns dizem um mundo surrealista, mas é o mesmo). (…) / Conhecemos hoje o impiedoso saque que foi feito a estas ilusões durante o derradeiro quarto de século. Por uma horrível ironia, em lugar do mundo libertário sonhado surgiu um mundo onde a mais servil obediência é de lei, onde os mais elementares direitos são negados ao homem, onde qualquer espaço social gira em torno do polícia e do carrasco. (…) É no termo deste processo que reencontramos o anarquismo e ele apenas (…). / Liberta das brumas da morte deste tempo, os surrealistas tomam-na [a concepção libertária] pela única capaz de fazer ressurgir a clara torre que sobre as torrentes domina.
Que torre é esta? Já se sabe, a torre da balada de Tailhade, que correu na juventude de Breton. Podemos também chamar-lhe a anti-torre, pois os seus desígnios parecem contrariar os de Babel. Mais do que aspirar ao céu, esta clara torre põe mão nos caudais revolutivos da Terra, harmonizando-os, de acordo com a teoria fourrierista da satisfação integral das paixões e fora de qualquer noção de obrigação, mesmo revolucionária. O criador do surrealismo pôde assim construir com a clara torre do poema de Tailhade um símbolo imperecível das suas aspirações mais vastas.
E em Fourier, o do falanstério ou o do contrato social renovado pela felicidade, encontramos outra das linhas fortes que cerzem o Breton desta nota, que procura a arqueologia libertária do surrealismo. Depois de dar a lume Arcano 17, Breton descobre as obras completas de Charles Fourrier (edição de 1846), de que só conhecia extractos, e numa viagem a Reno, Nevada, na companhia de Elisa, com quem então casa, e no meio duma reserva de índios Hopi, no Verão de 45, inicia e conclui a escrita celebrativa de Ode a Charles Fourrier, que funciona assim como o poderoso elo que estabelece a ligação entre as recordações da Gaspésia e a colaboração dada ao jornal Le Libertaire em passo ulterior do regresso a Paris. Também esse texto, publicado em 1948 e que Ernesto Sampaio verterá para português em 1963, trará segundo Cesariny uma nota ao modo próprio com que o surrealismo português nasce na segunda metade da década de 40. Eis o momento em que a emancipação social deixa de ser dever moral ou obrigação política para passar a ser celebração do espírito e ponto onde a libertação dos conteúdos recalcados cruza o desvio mágico. Dito doutro modo, Freud encontra por fim em Fourrier a sua lente de refracção e Marx pode passar de mito a mimo.

NOTA
Esta nota não podia existir sem contributos bibliográficos exteriores – isto para além dos textos de Breton nela citados. Refira-se o trabalho de Marguerite Bonnet sobre dois textos recolhidos em La Clé des Champs (1953), “Pour un Art Révolutionnaire Indépendant” e “La Claire Tour”, este dado a lume inicialmente no jornal Le Libertaire (11-2-1951), trabalho esse publicado no terceiro tomo de Oeuvres Complètes (Gallimard, 1999). De resto é ainda a Marguerite Bonnet que se recorre para historiar parte dos eventos relativos a Breton entre 1913 e 1924, com especial enfoque no caso de Germaine Berton, aqui no primeiro tomo das mesmas obras (1988). Também o trabalho de Étienne-Alain Hubert, comentando as intervenções de Breton a favor da C.N.T., no terceiro tomo das obras, dos objectores de consciência encarcerados e de Louis Lecoin, no quarto tomo (2008), nos deu elementos valiosos para o comentário. Tirando estes contributos, que foram de socorro, cite-se ainda um trabalho (que não conhecemos): Surréalisme et Anarchie (1983) de José Pierre. E um outro, que também desconhecemos, mas que pode ser de valor para o pesquisador, Surrealismo e Anarquismo (Editora Imaginário, São Paulo, 2001) onde Plínio Augusto Coelho recolhe, traduz e comenta a colaboração dos surrealistas franceses no jornal Le Libertaire. O itinerário político de Benjamin Péret merecia, só ele, um texto à parte. Registem-se porém as relações amorosas com Remedios Varo, anarquista espanhola, no tempo da guerra civil, e com quem se exilou depois no México, e as ulteriores colaborações que deu ao jornal Le Libertaire, algumas delas de invulgar alcance teórico (v. B. Péret, Oeuvres Complètes, Textes Politiques, vol 5, 1989). As traduções que se apresentam de A. Breton foram autorizadas por sua filha, e actual herdeira, Aube Breton-Elléouët (referida em L’Amour Fou), animadora da colecção Phares – que, a seu pedido, se publicita na contracapa deste número.




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A. Cândido Franco (Portugal, 1956). Dirige desde 2013 a revista A Ideia, à qual está ligado desde há 35 anos (1979) e acaba de publicar um livro no Brasil: O Surrealismo Português e Teixeira de Pascoaes (2013). Contato: acvcf@uevora.pt.






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