Celebrou-se
durante todo o ano de 2013 o centenário do nascimento de Aimé Césaire (1913 –
2008) na França e na sua ilha natal, a Martinica, na Europa, na África e nas
Américas. Uma importante atividade editorial acompanhou colóquios, textos,
espetáculos, depoimentos sobre o homem e o poeta, o dramaturgo e o ensaísta.
Entre as publicações do ano Césaire, podemos destacar
por sua importância e/ou originalidade quatro obras:
a) os dois volumes de Kora Véron e Thomas A.
Hale, publicados em junho, intitulados Les Ecrits d’Aimé Césaire. Biobibliographie
commentée (1913-2008) [1]
analisando os textos do autor no seu contexto de
publicação, fonte daqui para diante fundamental de informações para qualquer
novo estudo sobre o poeta;
b) o volume do poeta, romancista e ensaísta
Daniel Maximin, Aimé Césaire, frère volcan
[2] explorando uma
vez mais uma geo-poética antilhana graças ao diálogo de inter-geracional entre
Martinica e Guadalupe;
c) no
final do ano, a grande edição crítica da obra de Césaire, coordenada por Albert
James Arnold [3] volume com mais
de mil e oitocentas páginas, com muitos e importantes inéditos mas no qual a
pressa de fazer o lançamento oficial ainda em dezembro de 2013, deixou passar
infelizmente um certo número de gralhas e em alguns casos (raros) problemas de
transcrição de texto com cortes inclusive (na peça teatral Une saison au Congo, por exemplo) e ainda vários erros no glossário, e finalmente,
d) num outro registro, o belo volume de
testemunhos Aimé Césaire: cent regards, cinq continents, [4] publicado pelo Conseil
Régional de la Martinique e organizado pelos Archives départementales de la
Martinique e a Bibliothèque Schoelcher, de Fort-de-France.
Este ano, dois anos mais tarde, comemora-se o
centenário de Suzanne Césaire (1915-1966), nascida Roussi, em Trois-Ilets
(Martinica), jovem intelectual brilhante, presença constante do ponto de vista
criativo, familiar e ideológico ao lado do poeta, mãe dos seus seis filhos, até
a sua morte aos 51 anos, em condições trágicas. Suzanne Césaire [5] não só é a
interlocutora fundamental dos anos 40, durante todo o período de Tropiques, revista cultural em que
publicou os seus sete textos, [6]
como deixa marcas duradouras na obra do marido mesmo depois do seu
desaparecimento. Marcas e traços não só nos personagens femininos teatrais como
em vários poemas até dos últimos volumes.
Na segunda metade deste ano de 2015, saíram ainda
dois outros volumes de ensaios sobre Césaire, ambos pela editora Königshausen
& Neumann, de Würzburg:
a) o livro de Ernstpeter Ruhe, Une œuvre mobile. Aimé Césaire dans les pays
germanophones (1950 – 2015) [7] e
b) o meu Césaire
hors frontières. Poétique, intertextualité, littérature comparée. [8]
O que trazem de novo os últimos estudos?
Em primeiro lugar, de certa forma, o provável esgotamento
das questões hoje apenas retóricas ou exercícios repetitivos, estudos puramente
ideológicos do tipo Negritude africana versus Negritude antilhana; Negritude,
antilhanidade e/ou crioulidade; o teatro de Césaire como leitura da descolonização; etc.
A publicação de numerosos inéditos de Césaire e
sobretudo a exploração recente de vários fundos de bibliotecas, coleções e
arquivos revelam de forma inequívoca:
a) uma nova história de cada obra (não só dos poemas
longos como os três ou quatro poemas épicos: o Cahier, “les Pur-sang”, “le Grand Midi” e “Batouque”, como poemas mais curtos, ensaios ou peças de
teatro, prefácios e discursos) com inúmeras e por vezes inesperadas etapas e
versões. Uma nova cronologia se impõe. Assim, por exemplo, a descoberta feita
por Alex Gil de um tapuscrito [9]
numa biblioteca particular permite compreender que a versão Brentano’s do Cahier, publicada em Nova York, em
janeiro de 1947, já estava pronta desde 1943, antes portanto do período de 6
meses passado pelo casal Aimé e Suzanne em Haiti. Isso significa que as
inúmeras alusões a Haiti e ao “vaudou” presentes na versão Brentano’s são fruto
de leituras e não de uma experiência concreta. Outro exemplo: a descoberta das
terceiras provas do Cahier, de
Présence Africaine, pertencentes à Srª Anouchka de Andrade, filha do secretário
da casa editora – provas desconhecidas inclusive pela edição recentíssima,
dirigida por James Arnold (de 2013) – e corregidas a duas mãos (a do poeta e a
do poeta angolano Mário de Andrade) revela hesitações e reposições,
modificações e pentimenti praticamente de última hora;
b) a consulta e exploração sistemática dos
arquivos do tradutor alemão de Césaire, Janheinz Jahn, confirmam que também as
peças de teatro, sem exceção, sofrem modificações diversas, Césaire acolhendo e
incorporando sugestões dos seus encenadores, atores e/ou tradutores: assim, como
os poemas, as peças teatrais são “obras móveis”. Jean Jonassaint e sobretudo Ernstpeter
Ruhe alargam e aprofundam a primeira exploração (incompleta) feita por Albert James Arnold;
c) a consulta dos textos, livros e manuscritos
do fundo Mario Pinto de Andrade, doados por suas filhas Anouchka e Henda de
Andrade à Fundação Mário Soares, de Lisboa, revela um campo vasto de
possibilidades de articulação não só com a produção de língua portuguesa (o que
se revelou uma boa surpresa [10]
embora o interesse pelo Brasil já fosse conhecido) mas igualmente de língua
italiana, sobretudo pelo prefácio importante assinado por ninguém menos do que
Pier Paolo Pasolini a uma antologia negra organizada e publicada na Itália
sobre produção lusófona. Por outro lado, o irmão mais velho de Mário, Joaquim
de Andrade, por muito tempo padre católico, permite alargar e dialectizar de
certa forma a marca do Cristianismo na produção de Césaire. Um estudo, que data
de alguns anos, escrito por Erntpeter Ruhe já apontava semelhanças importantes
entre um texto de Claudel e Les chiens se
taisaient;
d) Césaire é um bom anglicista (seu “mémoire” de
saída da Ecole Normale Supérieure, embora ainda não tenha sido publicado, versa
sobre a nova poesia negra americana) e na leitura de obras escritas em inglês,
o poeta não precisa do filtro das traduções. Sabe-se agora que publicou
inclusive traduções de poemas americanos. Numa conversa gravada com o seu
tradutor alemão, transcrita por Ruhe no seu último livro, Césaire cita com
fluência em inglês o poema “Tyger, tyger” de Willam Blake. Dessa forma, a
intertextualidade de Césaire de língua inglesa abarca não só o texto da Bíblia
(ou seja da King James Version) e Shakespeare, mas ainda William Blake e Auden,
entre os modernos. Enfim, ainda na área de língua inglesa, há um outro campo
importante a explorar: a marca de Césaire na obra de poetas antilhanos de
língua inglesa, em particular de Derek Walcott, Omeros;
e) a relação de Césaire com as artes plásticas
não se limita à sua série de poemas dedicados a Wifredo Lam, o maior “túmulo”
dentre os vários do seu volume crepuscular moi,
laminaire... (de 1981) mas pode ser vista como fonte quase ininterrupta de
imagens e de ekphrasis. Césaire ao
visitar museus (de belas artes, de etnografia ou antropologia), toma nota do
que lhe interessa. Muitas vezes, suas imagens nascem de um referente plástico;
f) já eram conhecidas as leituras de Césaire da
tragédia grega clássica (Ésquilo sobretudo), mas há poemas que revelam uma
reescritura explícita de outros autores, menos conhecidos, como o viajante e
geógrafo grego Pausânias, autor de Periegenis
Hellados, fonte parcial de pelo
menos dois poemas, o poema “Marais nocturne” e o poema tumular dedicado a outro
grande poeta antilhano, “Cérémonie vaudou pour Saint-John Perse”. Enfim, o tema dos números, como
substância das coisas, revela uma leitura não só de Pitágoras como da filosofia
clássica grega;
g) nas literaturas
neolatinas, um campo ainda a rastrear é a marca propriamente “italiana” não só de Dante (e dos seus ilustradores, W.
Blake e Gustave Doré) ou do Orlando
furioso, mas ainda a presença de um livro de contos barroco que antecede as
recolhas de Perrault e de Grimm, Lo cunto
de li cunti, de Giambattista Basile, [11]
verdadeira obra-prima, traduzida em italiano e saudada por Benedetto Croce.
Dessa forma, abrem-se
novas pistas a explorar tanto do ponto de vista da intertextualidade como da
intratextualidade na poesia, no teatro e nos ensaios. Césaire situa-se no
cruzamento de muitas linguagens e textos.
1. Tomes I et II. Honoré Champion,
2013. ISBN 9782745325204
2. MAXIMIN, Daniel. Aimé Césaire, frère volcan. Seuil, 2013, 273 p.
3. CÉSAIRE, Aimé. Poésie,
théâtre, essais et discours. Edition critique sous la
direction de Albert James Arnold. Planète Libre, 2014, 1806 p. ISBN : 978-2-271-07757-8
4. Aimé Césaire:
100 regards – 5 continents, Conseil général de la Martinique, 2013, 294 p.
5.
Sobre o diálogo Aimé e Suzanne Césaire, ler o texto de ALMEIDA, Lilian Pestre
de. “Suzanne Roussi dialogue sur et avec Aimé Césaire ou Une autre diabase”.
6. Seus textos serão reunidos e republicados sob o
título Ecrits de dissidence (1941 – 1945),
por Daniel Maximin, Seuil, 2009, 130 p.
7. RUHE, Ernstpeter, Une
œuvre mobile. Aimé Césaire dans les pays germanophones (1950-2015),
Königshausen & Neumann, Würzburg, 2015. ISBN: 978-3-8260-5787-8, 293 p.
8.
ALMEIDA, Lilian Pestre de. Césaire hors fronteires. Poétique, intertextualité, littérature comparée,
Königshausen & Neumann,
Würzburg, 2015, ISBN: 978-3-8260.5827-1, 402 p.
9. Diz-se tapuscrit
em francês para um texto batido à máquina com correções e modificações feitas à
mão.
10.
O Brasil já era um tema presente desde os anos 50 na poesia de Césaire. A
primeira viagem do poeta ao Brasil data de 1963 e a sua obra revela uma leitura
extensa do ponto de vista antropológico e etnográfico dos cultos
afro-americanos.
11.
A obra de Basile foi escrita inicialmente em napolitano, língua escrita
importante ainda hoje na Itália multilingue.
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