Agulha defende ações em favor do livro e da leitura.
Conforme já observado aqui, em editoriais e ensaios, país desenvolvido é aquele
que tem índices elevados de leitura. E mais: o hábito da leitura,
historicamente, precedeu o desenvolvimento econômico e social nesses países.
Um dos editores desta revista eletrônica, em sua atuação como
intelectual franco-atirador, tem coordenado oficinas literárias voltadas para a
criação. Nelas, insiste em que a criação literária é intertextual, um diálogo
com outras obras. Em outras palavras: sem leitura, nada feito. E também tem
coordenado oficinas ou rodas de leitura para bibliotecários e outros agentes
culturais, escolhendo obras que oferecem obstáculos à decodificação. Isso, em
oposição à prática perniciosa da veiculação de sinopses, dos resumos escolares
que achatam obras complexas, reduzindo-as ao estritamente discursivo e
prosaico, eliminando sua dimensão poética.
Em uma das turmas desse projeto de oficinas de leitura para agentes
culturais (no município de Barueri), depois de interpretarem O Aleph de
Borges sob vários ângulos, foi examinado outro conto do argentino, Undr,
de O Livro de Areia. Isso, por sugestão de um dos participantes,
que, acertadamente, enxergou continuidade ou correspondência nas duas
narrativas enigmáticas. Em Undr (assim como em boa parte da
obra borgeana) é lançada a dúvida sobre a relação de significação. A ação
transcorre na Escandinávia do ano 1000. Um viajante chega ao povo dos “urnos”.
Lá, as relações entre signos e seus sentidos variam bastante. A figura negra de
um peixe em um poste amarelo representa a Palavra. Um poste vermelho com um
disco também representa a Palavra. Mas seu significado foi esquecido. Apenas um
vocábulo tem significado. Qual vocábulo? O que significa? Ninguém sabe. O
viajante percorre o mundo para descobri-lo. Muitos anos depois, retorna ao país
dos urnos: as mais diversas peripécias lhe haviam ensinado que essa palavra é undr,
e significa maravilha. Para conhecer palavras e seus significados,
é preciso ser capaz de maravilhar-se. Conta a descoberta a Thorkelsson, poeta
urno, seu amigo: “Como é de uso, perguntei por seu rei. Replicou: - Já não se
chama Gunnlaug. Agora seu nome é outro. Conta-me tuas viagens”.
Algumas consequências da narrativa borgeana saltaram aos olhos do grupo.
Transposta para o aqui e agora, é como alguém, depois de percorrer o mundo por
anos a fio, de volta ao Brasil, perguntar como vai o presidente, e receber a
seguinte resposta: “O presidente vai bem. Mas agora seu nome é outro. Chama-se
Luís Inácio Lula da Silva...”.
Enfim, a leitura de Borges, e de tantos outros poetas e narradores,
contribui para lançar a desconfiança sobre o que nos é apresentado como
realidade, um mundo fenomênico no qual, à luz da crítica, vê-se que nem tudo é
o que parece ser. A desconfiança mais acentuada é uma das consequências da boa
leitura, que assim contribui para formar cidadãos conscientes. É claro que o
relativismo borgeano é um dos modos possíveis de crítica ao real. Não deve ser
adotado de modo exclusivo, pois acabaríamos conferindo dimensão metafísica a
acontecimentos cuja interpretação pode ser muito mais simples e direta.
Literatura é plural, o campo da diversidade. Diferentes autores oferecem
distintas visões de mundo. A percepção de cada uma delas ampliará a
sensibilidade e enriquecerá a crítica.
Faz tempo deixou de ser novidade que meios de comunicação, especialmente
a TV, são uma fonte de confusão entre símbolos e significados, o virtual e o
real. Contribuem para engendrar réplicas do país borgeano dos urnos, onde as
palavras podem significar qualquer coisa, e as pessoas não conseguem mais
enxergar a relação entre signos e referentes. Por isso, democracias avançadas
impõem regras restritivas às empresas de comunicação: proibição de propriedade
cruzada, limites ao monopólio, à "share", o nível de audiência, à
extensão e cobertura das redes de emissoras. Assim, evitam que se realize a
distopia do Grande Irmão, do controle eletrônico das opiniões e das mentes. É
notável que, mesmo nos Estados Unidos sob George W. Bush, não tenha dado certo
a tentativa de “liberalizar” essas restrições, ou seja, de entregar tudo ao
grupo de Rupert Murdoch e sua rede Fox, em recompensa pelo trabalho de
propaganda em favor do militarismo norte-americano.
Já no país dos urnos… Ou melhor, no Brasil: aqui, pesquisas mostram a
existência da segunda maior mídia do mundo (de redes de TV a cartazes de rua,
passando por tabloides literários e revistas eletrônicas como esta). Sendo a
décima quarta economia do mundo, esses dados revelam uma distorção: é muita
mídia para pouco país. A causa, o interesse de empresas, do governo, de seitas
e igrejas, de políticos em geral etc., na posse de meios para influenciar a
opinião pública. E está sendo aprovado um financiamento estatal (do BNDES,
agência para o desenvolvimento econômico) de bilhões de dólares para cobrir
débitos do setor, especialmente do conglomerado do qual faz parte a TV Globo,
líder de audiência. Em troca, a TV chapa-branca, transformada em órgão de
propaganda do governo. Não, a distopia não está nada distante.
Também a Venezuela, país vizinho do Brasil, do qual temos informações as
mais desconexas justamente pelo mesmo fenômeno distópico, a sociedade encontra
na mídia seu maior obstáculo para exercer todas as possibilidades possíveis de
diálogo com a realidade. A diferença é que, neste caso, a mídia concentra-se em
desestabilizar o atual governo. Outro dos editores da Agulha Revista de Cultura esteve
naquele país, em março passado, a convite do Conselho Nacional de Cultura,
participando de um Festival Mundial de Poesia que reuniu expressões poéticas de
25 países e de todos os continentes. A despeito da alardeada crise social que
enfrenta a Venezuela, o que todos os poetas convidados puderam constatar foi
uma grande sensibilidade e manifesta vontade de participação de toda a
sociedade, considerando a surpreendente presença de público em 8 dias de
leitura de poemas e conferências, não somente em Caracas, como também nas
outras principais cidades venezuelanas. Não se deve esquecer que, dentre as
iniciativas estatais, encontram-se dois dos mais sólidos projetos
editoriais da América Latina, a Monte Ávila Editores e a Fundación Biblioteca
Ayacucho - cabendo lembrar que em ambos projetos se encontram editados
brasileiros, quando o inverso não se dá, e seguimos desconhecendo, por exemplo,
uma das mais fortes tradições líricas do continente -, o que descarta a ideia
de populismo circunstancial e confirma uma conquista social que sempre
considerou a cultura como elemento essencial na formação de uma sensibilidade
crítica.
De volta ao Brasil, o recente investimento do governo do Estado do
Paraná na criação de centros de excelência desportiva de imediato traz reflexos
positivos em nossa posição perante os esportes olímpicos. A questão não será
nunca de obstáculos intransponíveis ou falta de clareza, mas antes de uma
complacência ou mesmo interesse ante a confusão conceitual que busca
desarticular a realidade. Como interpretar um país que se recusa a tratar com
seriedade seus vícios estruturais, que segue a injetar-se todas as fórmulas de
corrupção mais gastas e que perdeu por completo a noção de qual seja seu
próprio nome? Para onde retorna um viajante quando pensa que está a regressar
ao Brasil? A Undr?
Em um artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, a 3 de
junho, intitulado Conversa Fiada, o arquiteto Oscar Niemeyer
tratou, com a autoridade conferida por seus 96 anos de idade, dos “velhos
tempos”. Reafirmou sua convicção na necessidade de “melhorar o ser humano”,
motivo de sua militância política. Lembrou que “o partido era para muitos coisa
sagrada, uma religião e sua crença”. Prosseguiu, lembrando os velhos
militantes: “Hoje continuo a admirá-los, convicto, como eles, de que a proposta
de Marx e Engels é legítima e apaixonante”. Um erro, para Niemeyer, teria sido
a “falta de modéstia”, representado por Kruschev: “Ele, que, ambicioso, voltado
para o poder, elaborou o lamentável relatório contra Stálin”. O nostálgico
modernizador da arquitetura brasileira associou engajamento, luta por tempos
melhores, à submissão: “Até na luta política a modéstia seria eficaz, evitando
erros como esse. E, mais ainda, na sociedade sem classes adotada, aceitando-se
as limitações que o novo regime – igual para todos – vai estabelecer”.
No final do mesmo mês de junho de 2004, morreu Leonel Brizola, último
grande líder do trabalhismo brasileiro, dirigente de um partido socialista,
crítico à esquerda do governo Lula. No Jornal Nacional da TV
Globo, declarações de um militante em lágrimas: “Para nós, Brizola foi um pai!
Um verdadeiro pai…!” No dia seguinte, durante o cortejo fúnebre em São Borja, a
mesma TV registra outra declaração de um adepto, também em lágrimas, também
envolto na bandeira do PDT, lenço vermelho no pescoço: “Fui um soldado!”
Mas como!? Religião? Coisa sagrada? Um pai? Soldado? A transformação da
sociedade não visava a emancipação, e a consequente superação de todas essas
instâncias, símbolos e metáforas da submissão à autoridade? Ou, sob a capa da
militância esquerdista, quer seja socialista, como no caso dos brizolistas
enlutados, ou comunista ortodoxa, como em Niemeyer, manifesta-se outra coisa?
Declarações como essas são a expressão de um imaginário associado a
militâncias que também poderiam justificar-se invocando avanços sociais reais e
ações efetivas de governo. Mas seu vocabulário é mais parecido com aquele dos
militantes de ultradireita, os integristas católicos da TFP, alguma outra
ressurreição do falangismo.
O ensaísta italiano Roberto Calasso, no brilhante A Literatura e
os Deuses (publicado no Brasil em 2004 pela Companhia das Letras), comenta
a pseudomorfose entre religioso e social. Consiste no …social
que, progressivamente, invadira e anexara vastas plagas do religioso, primeiro
sobrepondo-se a ele, depois infiltrando-se numa insana mescla, e por fim
englobando-o em si. Daí resulta a teologia social. Esta, diz
Calasso, …se desvincula cada vez mais de toda dependência e ostenta a sua
peculiaridade, que é tautológica, publicitária.
A Literatura e os Deuses é de
2001. Em 1972, Octavio Paz já dizia algo semelhante, em Los Hijos Del
Limo. Em vez de teologia social, usou a expressão catecismos
leigos, aqueles que prometem paraísos geométricos para o
futuro, ao postularem uma racionalidade e consequente previsibilidade do devir
histórico. Nesse ensaio – e em um sem-número de ocasiões – Paz insistiu na
crítica às …religiões envergonhadas, sem deuses, mas com sacerdotes, livros
santos, concílios, beatos, hereges e réprobos. (…) A crítica da
religião desalojou o cristianismo, e em seu lugar os homens se apressaram em
entronizar uma nova deidade: a política. (…) O tema mítico do tempo
original converte-se no tema revolucionário da futura sociedade.
Antes ainda, em 1935, André Breton já havia argumentado que o
estalinismo se identificava aos valores mais tradicionais, a começar pela
defesa irrestrita da família, da pátria, de um moralismo fechado. Desde então,
foram muitas as críticas à esquerda a partir de uma perspectiva
antiautoritária, argumentando que as esquerdas se haviam convertido em
substitutos da religião. Mas nunca, antes, a própria militância havia dado
razão a essa crítica, de modo tão claro.
Durante um período de uns duzentos anos, a vida política das sociedades
e das partes do planeta que, genericamente, correspondem ao Ocidente, foi
regida pela polaridade entre esquerda e direita. Isso, desde a época da
revolução francesa até – até quando…? Até 1989 e a queda do Muro de Berlin? Até
1991 e o fim da União Soviética? Ou até 2003 e a posse do governo Lula no
Brasil…? – enfim, até algum momento, alguma data na passagem do século XX ao
XXI. Criticar a esquerda, ou as esquerdas, ficou, ao longo de quase dois
séculos, por conta da direita, ou das direitas, em nome da manutenção do establishment,
da ordem estabelecida, ou da tradição, do retorno ao passado, defendida pelos
integristas e fascistas.
Ninguém, aqui, se identifica à direita ou às direitas históricas. Mas é
preciso indagar qual é o sentido dessa polaridade esquerda-direita, no momento
em que, do discurso de esquerda, parece não sobrar muito mais que o lamento
nostálgico, a evocação de uma pureza perdida nos “velhos tempos” da militância,
daqueles tempos que foram bons porque havia disciplina, submissão, abdicação,
sacrifício, pais a serem respeitados e cultuados, exércitos onde perfilar-se.
Ou então, pior ainda, quando sobra desse discurso apenas a adesão a algum
caudilhismo ou fundamentalismo ou qualquer outra modalidade de autoritarismo,
desde que se manifeste contra a presente ordem mundial. Há uma valorização às
avessas: se, historicamente, a esquerda se mostrou autoritária, então isso
significa que o autoritarismo é bom.
A crítica inevitável – aliás, nem se trata de crítica, apenas de
constatação: acabou – é em favor de outra coisa, de algo
efetivamente novo e transformador. De um novo que talvez seja algo antigo:
daquilo que, à margem da política instituída, por vezes subterraneamente, se
manifestou, ao longo do período de vigência da sociedade burguesa, como
rebelião em defesa de uma visão poética do mundo.
Algo se encerrou. Mas não estamos no fim dos tempos, porém em um tempo
que nos desafia a enxergar onde se anunciam novos tempos.
*****
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado | Valdir Rocha
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto
de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
S1 |
PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 |
VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO
DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a
coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada
no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao
mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação
editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original,
desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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