Onde a terra se nos escapa? Por onde uma greta de
nada nos faz ver que o diâmetro de gigantismo existencial é bem mais ou menos.
Hora de decidir: mais ou menos? Há tantas formas de exceção que uma pretensa
normalidade tornou-se a única exceção na praça, ainda que até o momento não
tenha sido reclamada por entidade alguma. Será uma outra forma de prostituição?
Então indaguemos: as meninas da normalidade farão ponto em qual esquina?
Talvez se verifique demasiada impetuosidade nas observações acima, mas
ao mesmo tempo cabe indagar se o que nos falta no momento não é justamente uma
dose dupla de veemência. Estamos aquartelados num ardiloso conceito de
normalidade, ao mesmo tempo em que imperceptivelmente esmagados por uma brutal
angústia provocada pela ausência de valores. O impasse radica numa decisão
eterna: mais ou menos. Não há como cegar este espelho.
Seguir indagando: mais ou menos? Prosseguir irritando: mais ou menos?
Não suavizar em momento algum: mais ou menos? Chegamos ao fim das ideologias ou
estamos vivendo um desfalque de ideologias? Igual efeito talvez esteja sendo
provocado por certa inflação místico-religiosa. Dízimos cobrados na política e
na religião como que comprovam que a base operacional mudou de meta. Devo pagar
para crer. Igualmente para descrer. Mais ou menos? Até que o Inferno se
converta em Paraíso.
Imaginemos um mundo em que todos estejam atravessando justamente agora a
decantada crise da meia idade. Simular em tecnicolor todo o processo dessa
angústia. Por onde andei, afinal? O que fiz de mim? No que acabei convertendo
toda a minha vida? E onde arranjar forças afora para reverter todo este acúmulo
de infortúnios, todo este canteiro de melancolias?
A rigor, assim nos encontramos neste princípio de século. E enquanto
indagamos por nós, ante uma condição existencial abatida, não percebemos o
quanto estamos sendo despojados do que nos é mais essencial, o quanto estamos
expostos a uma fraude, cujo eixo real, deslocado, nos toca não por inaptidão,
mas sim por anorexia induzida.
Mais ou menos? Insistir neste dispositivo como se fosse o condutor de
uma cósmica viagem a caminho do próprio revés da existência humana. Quanto mais
centelhas despertar melhor. Mais ou menos? Não há como adiar a decisão. Não há
mais política, não há mais religião. Criamos uma nova ilusão: a ausência do
enigma com a permanência do charlatão. Assim não sentimos nada, por mais que
doa.
Mas por onde escorre cada desejo frustrado? O que fazer com essa crosta
de insatisfação? Para mais circo, mais pão, vaticinava uma antiga cartilha.
Seremos ainda as mesmas vítimas de sempre? O mesmo circo, o mesmo pão? Tudo se
resume a isto: música ruim para o povo? Que a arte não prevaleça nunca, com
essa sua mania de irradiar reflexão por onde passa? Que tudo seja apenas
reconfortante alegria após o suor de nosso desamparo?
De uma forma ou de outra, somos sempre a permanência de um cativeiro,
esteja a servidão em nome de Deus ou de sua morte, da Ideologia ou de sua
erradicação. Nada altera a tirania com que os serviços públicos são manipulados
em um moto perpetuo que garanta transmissão de poder como um
ato retórico: troca de uma lâmpada onde a energia já de muito foi cortada.
Daí a insistência: como pôr em prática uma ideia nova, em um mundo já
completamente emporcalhado de vícios? Seguramente alguém pouco atento na plateia
dirá: a arte. Sim, sim, a arte, deveria caber a ela insuflar vida
em nosso pulmão, suscitar em nós um renovado ânimo perante todos os
descarrilamentos existenciais etc., etc., etc., ah a arte, sim, a arte! Mas por
onde anda o artista? Alguém o viu por aí, quem sabe disfarçado em cobrador de
impostos ou em sátiro de quermesse? Ele ao menos deveria estar inquirindo: mais
ou menos? Ao menos isto. Como não o faz, nos ajuda a ampliar a perplexidade já
de todo convertida em angústia.
Eis por onde se nos escapa a terra. Por onde o único orifício real é
aquele que nos ceifa a existência. Por onde nos esvaímos sem saber: mais ou
menos? Mas por onde saltaria alguém ainda a fazer tão inocente pergunta: mais
ou menos? De que nos serve isto?
Um grande articulador de deslocamentos, consultor de tendências, um mago
da era tecno-explorada em que vivemos, garante que não há nada como a “recontextualização”.
Mude de lugar os móveis da sala, uma estratégia governamental ou a incógnita em
qualquer equação e aí voltarás a despertar interesse do alvo principal: o
consumidor. Contudo, eis o imutável: não passamos de consumidores. E como
sempre temos algo a ofertar - um poema, uma verdade, um kit qualquer coisa -,
dividimos a sociedade não mais em tipos (quantum), mas em atuação:
quando vendemos e quando compramos.
Isto quer dizer que o grande talento que requer de nós a aventura humana
em nosso tempo é o de criar surpresa e excitação em um ambiente completamente
corrompido pela hipocrisia. Acabemos com isto de mais ou menos. Não há inovação
nessa angustiante permanência da dúvida. Mudemos de lugar os móveis na sala.
Agora. Vamos lá.
*****
Pertencem ao
rol das falsas surpresas, do aparente mais que acaba por revelar-se um menos,
as políticas públicas em favor do livro e da literatura no Brasil. Foi aprovada
uma Lei do Livro, que, entre outras vantagens, desburocratiza a aquisição de
livros por bibliotecas públicas. E os livros foram desonerados, tiveram a
tributação reduzida - ou, antes, foi reduzida a incidência sobre eles da
voracidade fiscal brasileira. O Ministério da Cultura apresentou programas,
políticas públicas em favor do livro, e recebeu propostas, assinadas por
dezenas de escritores, de ações e iniciativas valorizando a literatura.
Porém... Porém, ao mesmo tempo, o mesmo governo, através de sua ECT,
Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, aplica uma nova tabela de preços
para a remessa de livros. Agora, um livro não pode mais ser enviado como carta
comum: o volume que antes viajava pelo país a R$ 2,50 (pouco menos de um dólar,
para efeito de comparação), agora passa a custar R$ 9,50. O prazo de entrega,
antes equivalente ao de uma carta comum, de um a dois dias, agora passa a ser
de dez a quinze dias úteis. Remessas de livros para o exterior tiveram prazos e
preços majorados na mesma proporção. Vê-se que, para o Ministério das
Comunicações, ao qual os correios brasileiros são subordinados, livro é algo
pernicioso, cuja circulação deve ser onerada ao máximo, como estratégia para
impedi-la.
É como se o governo tivesse duas mãos, inteiramente desarticuladas. Uma
nos acena, aponta para um futuro mais. Outra nos retira algo e nos
oferece um imediato menos.
Na noite de 10 de março último, no auditório da
Embaixada da Venezuela, em Brasília, um dos editores da Agulha Revista
de Cultura recebeu uma homenagem pela publicação, em 1998, de Escritura
Conquistada (Diálogos com poetas latino-americanos). O livro teve, em seu
tempo, uma boa atenção da imprensa, sobretudo considerando que não houve edição
comercial - saiu através de um convênio entre Fund. Biblioteca Nacional e Univ.
de Mogi das Cruzes. O evento em Brasília foi auspiciado por entidades locais,
contando essencialmente com o apoio da Embaixada da República Bolivariana da
Venezuela. Na ocasião, além dos pronunciamentos do embaixador venezuelano, José
Julio García Montoya, do presidente da Academia Brasiliense de Letras, Antonio
Carlos Osório, e do próprio autor do livro, Floriano Martins, o destaque se deu
com a leitura de poemas de seis dos 24 poetas incluídos no livro, leitura a
cargo dos poetas Aglaia Souza e João Carlos Taveira. Importa mencionar aqui tudo
isto por uma simples razão: a atenção despertada sobre este livro, sete anos
depois de sua publicação, nos traz de volta algumas reflexões sugeridas à
altura e que agora merecem indispensável cotejo.
Logo no texto para as orelhas, o jornalista Lira Neto observa, com base
no título do livro, que “a proposta do encontro é mesmo, desde já, uma
conquista”, destacando “a possibilidade de uma ponte necessária - e inadiável -
entre dois territórios que, absurdamente, não se reconhecem em suas semelhanças
e contradições”. Outras leituras críticas, da parte de nomes como José Paulo
Paes, Wilson Martins e José Castello, em seu tempo fizeram referência à
condição insular da América Latina, fato conhecido por todos, mas não de todo
percebido e em absoluto desprezado quando requer ações que o corrijam ou
eliminem. Ao propor um diálogo o livro não se limitava apenas à
forma escolhida para evidenciar-se - a entrevista -, entrevista, neste caso,
posta não em seu formato jornalístico, mas sim disposta como uma conversa entre
dois poetas, conscientes do que a ocasião lhes propiciava. Sua atenção maior
dirigia-se ao diálogo entre culturas, busca tenaz de despertar, através da
poesia, uma percepção mútua entre elas.
A rigor, este diálogo segue sem existir. Em circunstância alguma um
livro apenas conquistaria tal meta, e nem mesmo se propunha a fazê-lo em
isolado. Pretendia-se mais uma pedra de toque, disposta a provocar uma
avaliação das purezas e impurezas dos metais envolvidos em tal questão. Mas a
verdade é que nada disto aconteceu, não interferiu em aspecto algum de nossa
quando menos controversa realidade cultural. Persiste uma absoluta falta de
percepção do Brasil em relação à América Hispânica, obtusidade que não se
limita à esfera governamental, mas que é, sobretudo, abonada pela classe
intelectual, por nossos escritores e artistas de uma maneira geral, abstraídos
todos por eventuais glórias pessoais. Gente pífia, a dizer a verdade. E gente
que vem ocupando os cargos mais decisivos, agora sim, na esfera governamental,
criando obstáculo para qualquer mínima perspectiva de diálogo, a começar pelo
próprio Ministério da Cultura, que alimenta tal círculo vicioso, cabendo aqui
mencionar a decepção, em contato com os editores da Agulha Revista de
Cultura, das Éditions Eulina Carvalho, ante a recusa oficial brasileira de
ajuda à publicação de livros em Paris por ocasião da deferência francesa ao
Brasil neste ano. Em msg que nos encaminhou Selda Carvalho, coordenadora
editorial da referida casa, diz haver “muita decepção em relação ao Ano do
Brasil”, e segue: “O Brasil oficial (Ministério, etc.), informou que nenhuma
ajuda seria dada à publicação de livros. Parece incrível, mas é a triste
verdade. Cultura para o Brasil é só mesmo escola de samba que teremos, claro,
em junho, como comemoração. Música, capoeira etc. Coisas interessantes e
importantes, pois componentes da cultura brasileira, mas não teríamos mais que
isso?” Seguimos entendendo cultura como atividade folclórica, agora com um
agregado ainda mais deformador: a autopromoção do Ministro da Cultura, tido e
mantido pelo presidente Lula, que se constitui em um dos mais agravantes
equívocos de sua administração. Ricardo Daunt, um dos colabores da Agulha Revista
de Cultura, também nos escreve a este respeito, dizendo-se “plenamente de
acordo com um protesto veemente contra a barbárie sufragista em que a cultura
se transformou; Brasília acolita pelegos e cultiva o comodismo intelectual e o
favorecimento. Enquanto isso o Itamaraty enche aviões com exuberantes mulatas e
pandeiretas para mostrar ao mundo o recheio do povo brasileiro.
Países como a Irlanda, divulgam seus escritores, homenageiam-nos em todas as
ocasiões. Aqui há o lobby cultural da pior extração.”
Na relação brasileira - sempre fortuita - com a América
Latina - onde nem mesmo os países de língua francesa são percebidos em suas
valiosas expressões culturais - não exercitamos senão um prolongamento
colonial, curiosamente destronado, onde não agem sobre nós feitos e efeitos da
coroa portuguesa, mas sim de outra matriz (a mesma?), francesa, agora piorados
pela ação violenta e virulenta dos Estados Unidos em todo o mundo. De uma
maneira ou de outra este imenso país chamado Brasil se deixa progressivamente
diminuir por sua incapacidade de projetar um diálogo com o que lhe é mais
essencial. Uma nação que se dispersa por si mesma, sem a menor necessidade de
inimigo. Sendo nação culturalmente tão rica, não causa prejuízo somente a si
mesma, mas interfere decisivamente no ambiente quando menos geográfico a que
está intrinsecamente ligada. Seria outro o destino da América Latina se o
Brasil compreendesse a importância do papel que representa em tal âmbito. Falta
de método, de clareza? Inapetência? Ausência de princípios morais? É
impressionante que se cobre a diário da Presidência da República assuntos os
mais diversos, funcionais até, porém decorrentes, e não se toque na mais
simples e fundamental de todas as questões: para ele, Lula, que papel imagina
representar como presidente da nação mais influente em um processo de integração
da América Latina?
Isto espelha que o assunto extrapola a esfera administrativa e se
encontra enraizado em todos nós, sobretudo nas tais antenas da raça que
tanto se autoproclamam país adentro, e que, se diferem em discurso, em relação
ao eixo Rio de Janeiro/São Paulo, o fazem somente por falta de oportunidade de
igualar-se ao mesmo. A rigor, não há uma instituição federal cuidando do papel
integrador da cultura latino-americana. Este âmbito não é compreendido,
discutido, proposto, nada. Entradas no Brasil de importantes autores
hispano-americanos se deram sempre em função de seu abono por parte de editoras
e mídias estadunidenses ou europeias, e o próprio boom da
literatura fantástica acrescentou a este um outro equívoco quando menos
curioso, o de identificar a realidade cultural hispano-americana como sendo uma
só, e não o retrato múltiplo de efervescências culturais em torno de 19 países,
cada um com suas singularidades. Em periódicos culturais onde se publicam
autores hispano-americanos, no Brasil, mais ou menos se observa o mesmo
critério, a aceitação internacional dos nomes veiculados. Trata-se de uma
consequência de nossa autofágica política cultural.
Tudo isto precisa ser revisto, provocado, discutido exaustivamente. Ao
longo de quatro anos a Agulha Revista de Cultura tem
se posicionado em defesa de uma integração latino-americana. Ao circular em
dois idiomas já acena neste sentido, o que difere radicalmente da absurda
proposta do Ministro da Cultura, do Brasil, ao declarar que o portunhol deveria
ser nossa língua comum. Em se tratando de cultura, o comum é o diverso.
Considerando o fato de que há mais estímulo governamental ao conhecimento do
inglês do que do espanhol no Brasil, cabe indagar o que planeja o Sr. Gilberto
Gil em termos de língua comum e a que essa trivialidade linguística nos
levaria. Decerto não terá resposta, envolto que está com a perpetuação de sua
imagem em palcos os mais variados. Diante disto, e aqui poderíamos avolumar
particularidades, defendemos que o Itamaraty está mal posicionado. Não cabe em
Brasília, por não fazer parte da política administrativa de toda a história de
nossa república. Em momento algum a cultura é inserida nas pautas de
negociação, em âmbito nacional ou internacional. Porém a cultura está acima da
política e mesmo de qualquer grande ação militar. Nenhum país é lembrado por
seus atos políticos ou militares, sobrevivendo a eles a contribuição cultural.
Estamos aqui tomando posse do Itamaraty – ação que se pretende parte de nosso
entendimento de uma escritura conquistada – no que diz
respeito à seriedade que lhe devia caber na compreensão de uma política
cultural comum à América Latina. Estamos deslocando o eixo. A partir deste
momento – o que, sob certos aspectos, já vem se concretizando nos últimos anos
– o Itamaraty é aqui.
Para aqueles que estranhem o real sentido desta simbologia cabe dizer
que a responsabilidade por quaisquer atos indevidos da administração pública é
de todos nós. Hoje estamos diante de um falseamento completo da realidade e
temos mesmo que ir além da instância governamental. Nossa democracia é uma
prova de conveniência. O Estado brasileiro está se desfazendo. É essencial e
inadiável discuti-lo. Não fazemos a menor ideia da repercussão de nossa
decisão, sobretudo porque apontamos a classe artística brasileira como cúmplice
- ativa e passiva, a depender do caso, sem redimir responsabilidades - do
processo brutal de mediocridade de nossa cultura. Tampouco se trata de uma
posse retórica, considerando as realizações efetivas dos editores da Agulha Revista
de Cultura e de alguns de seus continuados colaboradores. Estamos
tomando posse do Itamaraty desde já aguardando que ele se manifeste e se
recupere em relação à inadiável necessidade de fundação - conquista? - de um
diálogo entre as culturas brasileira e hispano-americana.
*****
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado | Valdir Rocha
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto
de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
S1 |
PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 |
VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO
DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a
coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido
hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu
ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a
coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio
Simões.
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