As cidades e sua música abrasada de extravios são uma imposição de falsos
encontros. Tudo é perda ali, a começar pelo que julgamos encontrar: a ideia precária
de localização que ostentam as inúmeras sinalizações, os caminhos dados como
únicos, ainda que bifurcados. A rigor, a única razão para que o homem mergulhe
no labirinto aflitivo da malha urbana é a de buscar perder-se de todo e
descobrir ali uma antítese para o que lhe foi deturpado a caminho. Entrar ali
para perder-se de si, tratando de recuperar um outro já de muito desfeito.
Portanto, as cidades não são lugar de encontro, mas antes de acento da perda.
Assim vale caminhar por elas, perdendo-se no esgotamento de ruas e em
sua escuridão ardilosa. Seguir por ali como quem recorda um verso de René
Crevel: com as pernas abertas,
uma cidade dorme nua sobre o mar fosforescente. Não descartar jamais o
erótico. A própria e cultuada beleza, de prédios, roupas, carros - a estética
da velocidade, seu charme domado -, nos engana ao esconder o vazio em que se
ergue. O humano pode se instalar em qualquer espaço, mas deve levar consigo o
sentido. Hoje um ardil conceitual embaralhou o racional ao irracional, proveniente
de uma astúcia respaldada em certo temor atávico do homem conhecer-se mais
intimamente. As cidades devem ser vista como um convite a que o homem saia de
si, sim, mas que essa aventura se justifique por uma busca mais ampla de sua
existência.
Tocar as reentrâncias das cidades, beijar-lhe com sutileza os caminhos,
embriagando-lhes o passo. Um homem não pode compreender nada fora de si se
evita tocar-se. As mulheres estão mais próximas desse conhecimento essencial
porque sabem fazê-lo. Sabem preencher com mãos internas e externas todo o
ímpeto de sua vida. Os homens se distraem com uma exuberância fortuita e erguem
cidades onde ninguém mais se toca entre si. Pensemos nas cidades como um
aglomerado de casas e ruas conectivas. Não temos aí senão uma fertilização da
solidão. Os espaços de convivência são ilusórios porque o mercado das almas
prevalece em tais sesmarias.
As cidades são um lugar fecundo para que se perceba as vozes que revelam
as dissidências. Entregar-se a elas, perder-se nas dobras insuspeitas. Tornar a
vida uma grande aventura. Calvino a elas se referiria como palimpsestos:
raspando-lhes a face vamos dar em outra que nos evita olhar e logo em mais
outra que se abre despojada e outra mais e mais, até o infinito. No entanto, o
que quer que engulamos terá seu destino certo sob uma ótica que não é mais
apenas laboratorial. As cidades não são mágicas. Não são fantásticas. Não são
indícios de uma evolução humana. O próprio Calvino diria: não existe linguagem sem engano.
As cidades são a medida exata do homem que temos hoje. Este homem tão afeito ao
racional que consegue desconquistar-se.
Não está mais. Não é mais ele. E rigorosamente não ensina a si mesmo sequer uma
rua mais tranqüila para chegar ao espelho.
Raspando a face do que nos mostra o cotidiano damos em um imenso vazio
desconfigurado. Não há cidades. Seguindo as placas, nada muda, pois abolimos a
distinção entre visível e invisível. Perdemos as cidades, quando o ideal era
nos perdermos nelas.
Nesta edição # 30 da Agulha
Revista de Cultura encontramos
diversos matizes que unem cidade e memória, salientando a essencialidade do
instante, da deriva, não apenas recorrendo ao bordão da ruptura mas antes
sondando as inúmeras possibilidades de identificação, complementaridade,
desdobramento. Assim é que fortalecemos as relações no domínio de uma mesma
língua (portuguesa) e suas leituras e entrelaçamentos com outra (espanhola),
diapasão que permite abordagem e explanação de valiosas visões de mundo, onde o
destaque será sempre a multiplicidade. Caminhemos por suas páginas sempre
guiados pela voz de Crevel: com
as pernas abertas, uma cidade dorme nua sobre o mar fosforescente.
Nos
habituamos a lidar com o visível como recurso único para entender a realidade.
Na política há um personagem – o porta-voz – que funciona como arauto da
visibilidade. Seu anúncio consiste em padrões de conveniência, tornando cada
vez mais confuso o próprio entendimento daquilo que se anuncia. A realidade
deixa de ser intrínseca e passa à condição de objeto promovido a tal
entendimento. A realidade como um ready
made. O estado de vigília das massas, sendo induzido, processa apenas
parcialmente o que de fato acontece.
Já se disse que o grande
dilema de toda esperança é justamente o cadinho de realidade à sua volta. Ao
que parece, Salvador Dalí atirou no que viu e acertou o que não viu. Sua ideia
de sistematização do caos através de um “processo de caráter paranoico e ativo
do pensamento” tornou-se uma arma nas mãos do inimigo – até onde nossa
esquizofrenia consegue separar, no homem, o que é amigo do que é inimigo. A arte não se afirmou ante a
realidade. Ao contrário, rendeu-se a seus caprichos – embora reste a dúvida a
quem pertençam os caprichos. Acabou limitando-se ao palco, ao território do
visível.
Porta-voz de si mesmo,
disse Dalí em 1930 que tudo levava a crer que a realidade acabaria sendo
“considerada unicamente como um simples estado de depressão e de inatividade do
pensamento e, por consequência, como uma sucessão de momentos de ausência do
estado de vigília”. Haveria acaso um modelo puramente interior de realidade?
Talvez o que devamos nos perguntar infinitas vezes ao dia é por qual razão
concebemos o visível e o invisível como joio e trigo. A vida é o que está ao
alcance de nossas mãos ou de nosso desejo? E separar assim, uma dimensão da
outra, atende a qual motivo?
Nossos dias hoje estão
impregnados do que se pode chamar de metáfora das duas torres (Tolkien &
Bush). Não há dúvida quanto ao fato de que os Estados Unidos tenham se constituído,
ao longo dos tempos, na mais notável nação forjadora da realidade. A
curiosidade vem do fato de que essa fábrica de sonhos seja aceita por seus
partícipes quando se trata de arte mas não quando a realidade queima a carne.
Uma contribuição decisiva ao descrédito da realidade é afastá-la do mundo da
criação artística, tática que não se concretizaria sem a conivência dos
artistas.
O que nos parece claro
defender aqui é que não se pode escolher assento em um barril de pólvora crendo
que haverá menos dor em uma fileira do que em outra. Não há a dor da arte
distinta da realidade. não se promove a intensidade da dor por ser visível ou
invisível. Um porta-voz qualquer vem nos dizer que a dignidade humana está a
salvo graças aos últimos ataques militares contra o inimigo. Esta é a tônica da
humanidade, este é o porta-voz que escolhemos para todos nós: sempre avançar
contra o inimigo. Receita bélica seguida a risco pela arte: nenhuma coerência,
descrédito total na estética ou na existência humana.
Mesmo que as guerras se
mostrem como infortúnio essencial, o dilema central estará em como encará-las.
A metáfora das duas torres refere-se a supurações que deveriam ser superações: visível e
invisível, arte e realidade. O homem não está cuidando de si nem sofrendo novos
ataques. Apenas rebentam feridas mal curadas.
*****
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado | Valdir Rocha
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto de
séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
S1 |
PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 |
VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO
DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a
coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada
no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao
mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação
editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original,
desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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