quinta-feira, 28 de abril de 2016

EDITORIAIS | Abril e Junho de 2002


Editorial ARC # 23 - Abril de 2002

Responsável pela curadoria da representação brasileira nesta atual Bienal de São Paulo, o crítico Agnaldo Farias comenta que "as artes plásticas viraram um saco de pancadas", observando ainda que comentários frequentes da parte de nomes como Carlos Heitor Cony, Arnaldo Jabor e Ferreira Gullar, não passam de "as mais altissonantes cretinices e besteiras sobre o assunto".
Talvez se possa dizer o mesmo da própria produção artística, ao menos aquela que encontra abrigo na grande imprensa. Não se trata aqui de defesa desse tipo de crítica questionada por Farias, mas, antes, de uma preocupação mais ampla, com relação ao seguinte: onde radica o descompasso entre crítica e produção artística? A dúvida é se críticos e artistas, em nossa contemporaneidade, não estariam a se merecer.
Busquemos equivalência na poesia e na música. Recentemente, o jornal O Globo (Rio de Janeiro) deu voz às diatribes do poeta Alexei Bueno. Em princípio poderíamos ver ali "as mais altissonantes cretinices e besteiras sobre o assunto". Mas tudo o que despeja Bueno sobre a poesia brasileira também nos leva a pensar acerca da produção manifesta dessa poesia. Já o crítico Lauro Lisboa Garcia (revista Época) dá passagem a declarações do compositor Lenine em defesa de uma "não-fórmula", que poderia eventualmente ser entendida como uma contraestética. Ingenuamente, repete chavões como "não sei muito bem aonde quero chegar, mas sei aonde não quero", e o jornalista tanto não questiona essas reiterações quanto situa Lenine como o mais inventivo expoente da canção brasileira contemporânea.
Para os leitores que não conhecem Bueno e Lenine, cabe informar que o primeiro jamais teve dificuldade de acesso à mídia, enquanto que o segundo somente nos últimos anos é que o tem conseguido. De qualquer maneira, tais exemplos permitem indagar: quem está a dever a quem: a arte ou a crítica? A referência a ambas categorias - arte e crítica - se dá aqui em um espectro mais amplo, abrangendo toda a criação artística e consequentes perspectivas de reflexão e difusão.
Francis Bacon creditava ao senso crítico de um artista uma importância fundamental: "pode ser que não seja nem um pouco mais talentoso, mas o seu senso crítico é simplesmente melhor". Caberia lembrar o óbvio, que arte é linguagem, e que ninguém cria alheio a um ambiente - cria-se contra ou a favor, mas nunca de modo alheio -, para então perguntar: o que aceitamos como evidência corresponde a uma realidade intrínseca, ou à realidade permitida? O que se anuncia é o registro honesto do que temos, ou uma escala de interesses de mercado? Como seguir acreditando na arte e na crítica?
A criação artística, ao longo do século XX, aventurou-se em peripécias políticas, em muitos casos tornando-se refém de uma visão nacionalista. De alguma maneira, aprendemos que essa condição não interessa à arte. Agora, se o que vamos pôr no lugar é o caráter amorfo de uma arte que reflete apenas o previsível, e que se deixa demarcar esteticamente pelo que aponta o mercado, então estamos negociando miçangas.
Teria a arte deixado de representar negação ou afirmação de uma realidade dada, passando a ser quase uma crônica do suportável? Nenhuma crítica é digna de relevância se não contempla essa encruzilhada que possivelmente não passe da simples mudança de pele de uma cobra de quintal. Aos artistas faltaria, portanto, senso crítico em igual proporção à da escassez de talento dos críticos? Ou como indaga o Belchior em uma canção: "alguém se atreve a ir além do Shopping Center?" Conversemos.
Este número da Agulha Revista de Cultura mostra que há uma outra arte e uma outra crítica, que dialogam como partes de um todo e que se buscam amorosamente, não limitadas pelo jogo de anunciantes da mídia, ao mesmo tempo em que conscientes desse ardil cuja relevância é justamente a de revelar o caráter de seus participantes.
E aqui se entrelaçam arte e crítica, na visão solidária de mundo (em nenhum momento deixando de ser questionante) de Albert Marencin, Alfonso Chase, Américo Ferrari, Esteban Moore, Fabrício Carpinejar, Félix Contreras, Maria Esther Maciel, Miguel Ángel Muñoz, Sophie Maríñez e Tomás Saraví, as vozes críticas que assinam as matérias desta Agulha Revista de Cultura # 23, a todo instante lembrando-nos que a arte não deve tornar-se uma mera crônica do suportável.


Editorial ARC # 25 - Junho de 2002

Esta Agulha Revista de Cultura # 25 nos leva a um inevitável balanço. Não no sentido usual de buscar elogios para o que se tem realizado, mas antes no de questionar além das próprias ações a repercussão por elas alcançadas. E nos referimos a repercussão não por ausência mas sim pela natureza da presença. Em outras palavras, o saldo de 24 edições, ao largo de dois anos de atividade, não constitui de todo uma ideia de plano realizado pelo que nos falta de diálogo direto com a realidade que nos é mais imediata, a de um estranho país chamado Brasil.
Desde o princípio Agulha Revista de Cultura se propôs a circular em dois idiomas - português e espanhol -, dedicando-se a apresentar a seus leitores uma perspectiva a mais ampla possível de uma percepção crítica das artes e da cultura envolvendo a realidade desses idiomas. Nossas parcerias estabelecidas com outros países, seja através da busca de condições ideais para definir o artista convidado de cada edição, ou do diálogo com instituições que tornaram possíveis muitas das matérias publicadas, de alguma maneira confirmam uma receptividade - expressa, por exemplo, em um mailing de mais de 50 mil endereços. Igualmente se poderia aludir a cumplicidades estabelecidas com outras publicações, virtuais e impressas, que se manifestaram, ao longo desses dois anos, na concretização de projetos culturais (Panamá, México, Costa Rica, Portugal, Colômbia) envolvendo os editores da Agulha Revista de Cultura.
Contudo, o que nos realiza fora nos inquieta dentro. Quando pressentimos uma aproximação maior de leitores de língua espanhola do que de língua portuguesa, logo nos indagamos acerca de uma possível janela travada. Será nossa a trava, quando estamos tão declaradamente empenhados em trazer para uma mesa de diálogos as culturas brasileira e hispano-americana, por exemplo, ou acaso a trava será de uma equívoca tradição cultural brasileira que rejeita o diálogo com outros povos, que só entende a linguagem da submissão e de um capricho perversamente mundano de transferência de padecimento?
Talvez devamos considerar um aspecto, que é o da utilização deste veículo virtual de comunicação, por demais incipiente na realidade brasileira. O país que ostenta certas recorrentes tolices estéticas como sendo sua pastoral dos dias maduros, é o mesmo que não consegue vislumbrar sucesso editorial que não esteja diretamente ligado à indústria do entretenimento. A utilização da Internet no Brasil é tão precária que mesmo no plano institucional se conclui pela ausência brutal de percepção de um instrumento inquestionável de ampliação da comunicação.
Mas o que tudo isto explica? Em dois anos de existência a Agulha Revista de Cultura jamais conseguiu, no Brasil, exceto por ações paralelas de seus editores, uma nota na imprensa cultural impressa. Ao que parece estamos tão determinados por uma cultura do específico que se desenvolvermos um pepino de três cabeças só encontraremos abrigo no programa Globo Rural. Se há uma cultura geral, o que ela divulga? Com que preenche seu infinito aparato diário de repercussão do vazio? Até o momento a Internet é percebida, por esse jornalismo tão presente e interferente em nosso cotidiano, como um mostruário da criminalidade: sabotagens, perversões etc.
Evidente que tudo isto reflete uma estreiteza de visão muito maior. Esta ausência de coerência em qualquer plano ofertado pela política no Brasil, ajuntada ao fato de que o reclamante foi não propriamente anulado mas antes astutamente convertido em cúmplice, corrói parcialmente a base de qualquer recusa. Algo de tudo isto não tem especificamente a ver com o Brasil nem mesmo com a Agulha Revista de Cultura, já o sabemos. Nem o que se reclama é propriamente restrito a uma compreensão do que temos realizado até o momento. Tal realização implica justamente na cobrança de atenção para o que se tem produzido culturalmente neste país. E em momento algum podemos desprezar o diálogo essencial com a cultura hispano-americana.
Do que se ressente a Agulha Revista de Cultura é justamente da atenção de brasileiros. As justificativas não compõem uma carta de navegação. É preciso cair no mar, entregue às ondas ou medido por um vislumbre cartográfico qualquer, mas que se esteja ali, em quaisquer ondas, e que se compreenda que apenas o movimento rege nossas vidas. Não há história calcada na inércia. Cada mínima espátula com que se borra a história se chama risco, movimento, entrega. Por vezes não sabemos mais o que fazer com o leitor brasileiro, de tão precário ou ausente. Será assim tão pautado pela ações governamentais, de claro isolamento cultural, de absoluta incapacidade de definir o mundo por conta própria?
Não cremos nisto. O que por vezes imaginamos é que se encontre desbastado em seu ânimo, que já não alcance vigor suficiente para restabelecer-se de uma perda de credibilidade na honestidade do outro, estando o país como que toldado pela inércia, desestabilizado por uma arritmia brutal de fraudes e desenganos. E não nos referimos ao leitor de uma maneira geral, habitual ou infrequente, mas antes àquele que nos busca para o estabelecimento de uma cumplicidade, e acaba por tornar-se um valioso colaborador.
Temos nos posicionado sempre de maneira a mais descerrada possível, buscando as harmonias menos previsíveis, dadas como incomuns em nossa prática de uma política cultural. A soma de matérias até aqui publicadas atestam qualquer consideração a respeito. Boa sugestão é que visitem nosso índice geral de matérias. Um ponto final: que os brasileiros percebam que a Agulha Revista de Cultura é uma revista pensada como possibilidade de diálogo entre nossa cultura e o resto do mundo.



*****

Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Valdir Rocha
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

Visite a nossa loja







Nenhum comentário:

Postar um comentário