Responsável pela curadoria da representação brasileira nesta atual Bienal
de São Paulo, o crítico Agnaldo Farias comenta que "as artes plásticas
viraram um saco de pancadas", observando ainda que comentários frequentes
da parte de nomes como Carlos Heitor Cony, Arnaldo Jabor e Ferreira Gullar, não
passam de "as mais altissonantes cretinices e besteiras sobre o
assunto".
Talvez se possa dizer o mesmo da própria produção artística, ao menos
aquela que encontra abrigo na grande imprensa. Não se trata aqui de defesa
desse tipo de crítica questionada por Farias, mas, antes, de uma preocupação
mais ampla, com relação ao seguinte: onde radica o descompasso entre crítica e
produção artística? A dúvida é se críticos e artistas, em nossa
contemporaneidade, não estariam a se merecer.
Busquemos equivalência na poesia e na música. Recentemente, o jornal O Globo (Rio de Janeiro) deu voz às diatribes
do poeta Alexei Bueno. Em princípio poderíamos ver ali "as mais
altissonantes cretinices e besteiras sobre o assunto". Mas tudo o que
despeja Bueno sobre a poesia brasileira também nos leva a pensar acerca da
produção manifesta dessa poesia. Já o crítico Lauro Lisboa Garcia (revista Época) dá passagem a
declarações do compositor Lenine em defesa de uma "não-fórmula", que
poderia eventualmente ser entendida como uma contraestética. Ingenuamente,
repete chavões como "não sei muito bem aonde quero chegar, mas sei aonde
não quero", e o jornalista tanto não questiona essas reiterações quanto
situa Lenine como o mais inventivo expoente da canção brasileira contemporânea.
Para os leitores que não conhecem Bueno e Lenine, cabe informar que o
primeiro jamais teve dificuldade de acesso à mídia, enquanto que o segundo
somente nos últimos anos é que o tem conseguido. De qualquer maneira, tais
exemplos permitem indagar: quem está a dever a quem: a arte ou a crítica? A
referência a ambas categorias - arte e crítica - se dá aqui em um espectro mais
amplo, abrangendo toda a criação artística e consequentes perspectivas de
reflexão e difusão.
Francis Bacon creditava ao senso crítico de um artista uma importância
fundamental: "pode ser que não seja nem um pouco mais talentoso, mas o seu
senso crítico é simplesmente melhor". Caberia lembrar o óbvio, que arte é
linguagem, e que ninguém cria alheio a um ambiente - cria-se contra ou a favor,
mas nunca de modo alheio -, para então perguntar: o que aceitamos como
evidência corresponde a uma realidade intrínseca, ou à realidade permitida? O
que se anuncia é o registro honesto do que temos, ou uma escala de interesses
de mercado? Como seguir acreditando na arte e na crítica?
A criação artística, ao longo do século XX, aventurou-se em peripécias
políticas, em muitos casos tornando-se refém de uma visão nacionalista. De
alguma maneira, aprendemos que essa condição não interessa à arte. Agora, se o
que vamos pôr no lugar é o caráter amorfo de uma arte que reflete apenas o
previsível, e que se deixa demarcar esteticamente pelo que aponta o mercado,
então estamos negociando miçangas.
Teria a arte deixado de representar negação ou afirmação de uma
realidade dada, passando a ser quase uma crônica do suportável? Nenhuma crítica
é digna de relevância se não contempla essa encruzilhada que possivelmente não
passe da simples mudança de pele de uma cobra de quintal. Aos artistas
faltaria, portanto, senso crítico em igual proporção à da escassez de talento
dos críticos? Ou como indaga o Belchior em uma canção: "alguém se atreve a
ir além do Shopping Center?" Conversemos.
Este número da Agulha
Revista de Cultura mostra
que há uma outra arte e uma outra crítica, que dialogam como partes de um todo
e que se buscam amorosamente, não limitadas pelo jogo de anunciantes da mídia,
ao mesmo tempo em que conscientes desse ardil cuja relevância é justamente a de
revelar o caráter de seus participantes.
E aqui se entrelaçam arte e crítica, na visão solidária de mundo (em
nenhum momento deixando de ser questionante) de Albert Marencin, Alfonso Chase,
Américo Ferrari, Esteban Moore, Fabrício Carpinejar, Félix Contreras, Maria
Esther Maciel, Miguel Ángel Muñoz, Sophie Maríñez e Tomás Saraví, as vozes
críticas que assinam as matérias desta Agulha
Revista de Cultura #
23, a todo instante lembrando-nos que a arte não deve tornar-se uma mera
crônica do suportável.
Esta Agulha
Revista de Cultura # 25 nos leva a um
inevitável balanço. Não no sentido usual de buscar elogios para o que se tem
realizado, mas antes no de questionar além das próprias ações a repercussão por
elas alcançadas. E nos referimos a repercussão não por ausência mas sim pela natureza
da presença. Em outras palavras, o saldo de 24 edições, ao largo de dois anos
de atividade, não constitui de todo uma ideia de plano realizado pelo que nos
falta de diálogo direto com a realidade que nos é mais imediata, a de um
estranho país chamado Brasil.
Desde o princípio Agulha Revista de Cultura se propôs a circular em
dois idiomas - português e espanhol -, dedicando-se a apresentar a seus
leitores uma perspectiva a mais ampla possível de uma percepção crítica das
artes e da cultura envolvendo a realidade desses idiomas. Nossas parcerias
estabelecidas com outros países, seja através da busca de condições ideais para
definir o artista convidado de cada edição, ou do diálogo com instituições que
tornaram possíveis muitas das matérias publicadas, de alguma maneira confirmam
uma receptividade - expressa, por exemplo, em um mailing de mais de 50 mil endereços.
Igualmente se poderia aludir a cumplicidades estabelecidas com outras
publicações, virtuais e impressas, que se manifestaram, ao longo desses dois
anos, na concretização de projetos culturais (Panamá, México, Costa Rica,
Portugal, Colômbia) envolvendo os editores da Agulha
Revista de Cultura.
Contudo, o que nos
realiza fora nos inquieta dentro. Quando pressentimos uma aproximação maior de
leitores de língua espanhola do que de língua portuguesa, logo nos indagamos
acerca de uma possível janela travada. Será nossa a trava, quando estamos tão
declaradamente empenhados em trazer para uma mesa de diálogos as culturas
brasileira e hispano-americana, por exemplo, ou acaso a trava será de uma
equívoca tradição cultural brasileira que rejeita o diálogo com outros povos,
que só entende a linguagem da submissão e de um capricho perversamente mundano
de transferência de padecimento?
Talvez devamos
considerar um aspecto, que é o da utilização deste veículo virtual de
comunicação, por demais incipiente na realidade brasileira. O país que ostenta
certas recorrentes tolices estéticas como sendo sua pastoral dos dias maduros,
é o mesmo que não consegue vislumbrar sucesso editorial que não esteja
diretamente ligado à indústria do entretenimento. A utilização da Internet no
Brasil é tão precária que mesmo no plano institucional se conclui pela ausência
brutal de percepção de um instrumento inquestionável de ampliação da
comunicação.
Mas o que tudo isto
explica? Em dois anos de existência a Agulha
Revista de Cultura jamais conseguiu, no
Brasil, exceto por ações paralelas de seus editores, uma nota na imprensa
cultural impressa. Ao que parece estamos tão determinados por uma cultura do
específico que se desenvolvermos um pepino de três cabeças só encontraremos
abrigo no programa Globo Rural.
Se há uma cultura geral, o que ela divulga? Com que preenche seu infinito
aparato diário de repercussão do vazio? Até o momento a Internet é percebida,
por esse jornalismo tão presente e interferente em nosso cotidiano, como um
mostruário da criminalidade: sabotagens, perversões etc.
Evidente que tudo isto
reflete uma estreiteza de visão muito maior. Esta ausência de coerência em
qualquer plano ofertado pela política no Brasil, ajuntada ao fato de que o
reclamante foi não propriamente anulado mas antes astutamente convertido em
cúmplice, corrói parcialmente a base de qualquer recusa. Algo de tudo isto não
tem especificamente a ver com o Brasil nem mesmo com a Agulha Revista de Cultura, já o sabemos. Nem o
que se reclama é propriamente restrito a uma compreensão do que temos realizado
até o momento. Tal realização implica justamente na cobrança de atenção para o
que se tem produzido culturalmente neste país. E em momento algum podemos
desprezar o diálogo essencial com a cultura hispano-americana.
Do que se ressente a Agulha Revista de Cultura é justamente da atenção
de brasileiros. As justificativas não compõem uma carta de navegação. É preciso
cair no mar, entregue às ondas ou medido por um vislumbre cartográfico
qualquer, mas que se esteja ali, em quaisquer ondas, e que se compreenda que
apenas o movimento rege nossas vidas. Não há história calcada na inércia. Cada
mínima espátula com que se borra a história se chama risco, movimento, entrega.
Por vezes não sabemos mais o que fazer com o leitor brasileiro, de tão precário
ou ausente. Será assim tão pautado pela ações governamentais, de claro
isolamento cultural, de absoluta incapacidade de definir o mundo por conta
própria?
Não cremos nisto. O que
por vezes imaginamos é que se encontre desbastado em seu ânimo, que já não
alcance vigor suficiente para restabelecer-se de uma perda de credibilidade na
honestidade do outro, estando o país como que toldado pela inércia,
desestabilizado por uma arritmia brutal de fraudes e desenganos. E não nos
referimos ao leitor de uma maneira geral, habitual ou infrequente, mas antes
àquele que nos busca para o estabelecimento de uma cumplicidade, e acaba por tornar-se
um valioso colaborador.
Temos nos posicionado
sempre de maneira a mais descerrada possível, buscando as harmonias menos
previsíveis, dadas como incomuns em nossa prática de uma política cultural. A
soma de matérias até aqui publicadas atestam qualquer consideração a respeito.
Boa sugestão é que visitem nosso índice geral de matérias. Um ponto final: que
os brasileiros percebam que a Agulha
Revista de Cultura é uma revista pensada
como possibilidade de diálogo entre nossa cultura e o resto do mundo.
*****
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado | Valdir Rocha
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto de
séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
S1 |
PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 |
VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO
DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a
coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido
hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu
ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a
coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
Visite a
nossa loja
Nenhum comentário:
Postar um comentário