quinta-feira, 28 de abril de 2016

EDITORIAIS | Junho e Setembro de 2001


Editorial ARC # 13/14 - Junho de 2001

Já se disse (Ernst Jünger) que o fogo é o único dos elementos que não pode ser poluído. Essa ânima de viver que encontra no fogo sua metáfora eficaz constitui a linha de acesso entre ruptura e tradição, ou seja, não se deixar demover pela existência em isolado de uma das duas peças essenciais à aventura humana. Em um dos ensaios publicados agora, José Ángel Leyva, a título de epígrafe, recorre a Schlegel quando este afirma que "há classificações que são muito medíocres como tais, mas que governam nações e épocas inteiras…", e aqui nos lembramos de Novalis – tema de um outro ensaio deste número de Agulha Revista de Cultura –, ao considerar que "a luz é o gênio do fogo".
A relação entre destruição e invenção talvez esteja ligada a essa dupla possibilidade do fogo, a de queimar e iluminar (a um só tempo). Contudo, devemos jamais esquecer que a destruição ilumina na mesma proporção em que a invenção queima. Não se trata de um jogo de palavras, mas sim do entendimento de que o vício de classificação – ou qualquer outro modus de demarcação alienante de hábitos e valores – pode imprimir a um personagem a representação parcial de seu caráter. O próprio Novalis questionava se acaso o que se pode pensar não adere ao que não se pode, ou seja, sem essa relação de complementaridade nada se inventa ou destrói.
As dissonâncias possuem um feliz atrativo: nos aproximam daquilo com o que, embora intuitivamente, nos identificamos. Toda a riqueza humana radica na gratuidade com que se instala entre nós esse pomar de dissonâncias. Aí está um aspecto a ser considerado: o de rebelar-se contra o gasto entendimento do conflito de interesses nas relações humanas. Atentando para o vernáculo, em circunstância alguma o mercantilismo sequer soaria como interessante. É no mínimo estranho como o conceito de devoção foi convertido ao de tirar partido, levar vantagem. Talvez estivéssemos cansados da rendição a uma crença na dialética entre indivíduo e sociedade. Assim nos deixamos contaminar pelo imediatismo, perdendo a noção essencial de acasalamento entre desejo e memória.
Esse conflito de tempos em uma relação, qualquer que seja, importa pelo que agrega de surpresas diante do inesperado. O que me interessa naquilo que desconheço é o que comprime ou dilata meu assombro diante do vivido? A qual tabela cambial restringir tal sentimento? Quanto vale um Rembrandt acaso não é o mesmo que indagar pelo preço da espécie humana? E qual seria o mercado possível para uma sociedade que erradica o único componente que a identifica como tal, a dissonância?
É quando menos curioso hoje observar que as sessões às quais a imprensa habitualmente recorre para limitar assuntos perderam sentido. Quando a pauta é música, por exemplo, o assunto pode ser apenas um traumatismo craniano provocado por um acidente aéreo em um músico. Se a pauta indica política, não será de todo estranho se tratar ali da separação conjugal de um prefeito. Uma reportagem científica seguramente observará os dilemas existenciais de uma notável paleontóloga que perdera o filho em trágicas condições.
Como jornalistas também são peças de encaixe da teoria acadêmica das classificações acima referidas, vamos criteriosamente eliminando as possibilidades de haver vida inteligente fora dos muros dessa – assim tornada – torpe ciência. A pior prática jornalística tomou conta de nossa vida. Somos todos personagens de uma perversão, bonecos de cena de uma mídia que se diverte às nossas custas. O foi Deus que quis assim com alguma naturalidade deixou-se substituir pelo saiu na imprensa.
Ao prepararmos este número duplo de Agulha Revista de Cultura, diante da obra plástica da chilena Gabriela Villegas, nos pusemos a observar a convicção dissonante de nossa opção por convidar um artista para nos acompanhar na ilustração inteira de cada número da revista. Em pouco mais de um ano de trabalho, fomos descobrindo vertentes de identificação estética de um artista com temas abordados, e por vezes pusemos em contato autor de matéria e artista convidado.
Até aqui expusemos antologia de obra do argentino Víctor Chab, dos brasileiros Eduardo Eloy, Hélio Rola e Maninha Cavalcante, dos costarriquenhos Alberto Murillo e Hernán Arévalo, do mexicano Roberto Rébora, da panamenha Sandra Eleta, do português Cruzeiro Seixas e do uruguaio Fernando Velázquez. Entre si não seriam de todo dissonantes, levando em conta o caráter que firmaram, porém nuanças estéticas definiriam a obra de cada um na condição de distinta das demais.
Quanto valem ou até que ponto nos interessam, com algum apuro será possível perceber as relações surpreendentes traçadas entre recorrências a cultos tribais nas xilogravuras de Arévalo, na fotografia de Eleta e nas colagens de Seixas se relacionadas com aquela particularidade (nossa) de abordagem de temas vinculados ao oculto. Também encontramos vínculos mais afeitos a uma outra perspectiva já apontada, o surrealismo, na presença de pintores como Víctor Chab, Eduardo Eloy ou Maninha Cavalcante.
O que mais de importante nos interessa frisar é que não se pode reduzir a obra de nenhum desses artistas a uma bandeira escolástica. Os vínculos aqui delineados são aproximações possíveis. O leitor mais atento poderia verificar que diálogo, por exemplo, mantêm dois artistas que se desconhecem entre si, a exemplo do mexicano Roberto Rébora e do uruguaio Fernando Velázquez. E agora mesmo apresentamos uma artista cuja obra difere em tudo do que até aqui mostramos.
Assim vamos tornando Agulha Revista de Cultura parte essencial de nosso espírito, não apenas uma prática editorial, mas uma fogueira – a queimar?, a iluminar? – em volta da qual conversamos sobre as contradições entre invenção e destruição. A propósito, alguns textos desta edição dupla sondam o que construíram as destrutivas vanguardas, consideram os exageros típicos de uma visão de mundo pautada pela classificação e aludem a perspectivas de melhor compreensão do assunto. Mostram-se complementares entre si justamente por uma sutileza da dissonância. E nisto completam-se com a presença da criação em si, ou seja, avançamos em uma presença maior do objeto de nossa reflexão.
Ao par da mesa de diálogo sobre ruptura e tradição, uma outra – a mesma? – revela não mais a explicação da criação mas a criação em si. Em aparições distintas temos uma recriação fabulista do personagem Rubén Darío, escrita pelo francês André Coyné, a prosa poética de Per Johns e Contador Borges, e a recuperação de um livro do submundo da literatura brasileira, O equivocrata, de Raul Fiker.
Agora, quanto nos custa a dissonância? O valor essencial de cada coisa: a própria vida. Não se reduz, claro, a valor cambial no sentido da distorção acima referida do termo interesse. Não barganhamos ou negociamos com a diferença. A dissonância é nosso estado natural. Agulha Revista de Cultura se define como veículo empenhado na identificação do homem consigo mesmo. E aqui caberia lembrar uma vez mais Novalis, ao dizer que "a antítese do corpo e do espírito é uma das mais assinaláveis e das mais perniciosas". 


Editorial ARC # 16 - Setembro de 2001

A sociedade brasileira encontra-se tão atordoada com um espectro da corrupção que o próprio conceito de notícia tornou-se refém do que poderíamos chamar de um caso de polícia. O que informar que escape desse universo de derrocada moral? O que informar que, por outro lado, não seja deformação de uma cultura? Estes dois aspectos estão presentes de maneira ardilosa e corrosiva na vida dos brasileiros. O comportamento da mídia é derivativo desse impasse, se assim o podemos chamar: no intuito de denunciá-los, os aspectos falhos de uma sociedade acabam sendo o destaque diário de todos os meios de comunicação. Cria-se aí uma falsa ideia de sociedade em permanente estado de degradação. Ao mesmo tempo, a cultura passa a ser vista unicamente como produção de entretenimento, gerando outro desconforto para uma sociedade já fragilizada do ponto de vista moral.
É comum encontrarmos um mesmo tipo de deslocamento de raiz em matérias sobre futebol, música ou cinema, quando a notícia centra-se no inexplicável saldo da conta bancária do diretor de um clube de futebol, na manifestação de apoio de uma cantora a um político notoriamente corrupto ou no desvio de valores captados para a produção de um filme por parte da própria cineasta. Se vamos para áreas como política ou economia, o matiz é o mesmo, ou seja, nosso entendimento de política foi eclipsado pela vazante de escândalos que envolve o Congresso Nacional, ao mesmo tempo em que a economia converteu-se tanto em um ilusionismo como em uma precariedade: de um lado, busca-se explicação para o inexplicável; de outro, limita-se o conceito a ganhos e perdas, no caso, claro, mais perdas do que ganhos. Evidente que tal diagnóstico nem está completo nem se pretende novidade. É comum ouvir-se, mais a título de resmungo do que propriamente de indignação, frases como "esses políticos são todos safados", "não há mais cultura neste país", "os jornais só falam de crimes"… Até que ponto transformamos nossas vidas em cenário de um drama policialiesco?
Vivemos em uma sociedade criminal, onde a própria lei é redigida, mantida ou alterada de maneira unilateral. Não é de todo inexplicável a profusão de um contágio, hoje já em termos epidêmicos. Artistas, religiosos, administradores públicos, atletas, empresários, o país inteiro se confunde quando o assunto é corrupção. Contudo, não percamos de vista que a raiz de toda corrupção é a leviandade existencial, a falta de princípio. Eis, portanto, o que une derrocada moral a deformação cultural. E quanto mais levianos formos mais cedo erradicaremos o menor traço possível que nos conduza à memória de uma cultura brasileira. Cobrar consciência, naturalmente, pode parecer igualmente leviano. Tal recurso tem sido habitual, retórica utilizada para a lavagem das mãos. Segue atestando o cinismo vulgar com que vem sendo tecido todo o organismo social deste país. O esfacelamento de uma sociedade só pode ser corrigido pela consubstanciação de seus princípios. O grande vazamento que se verifica radica na projeção sistêmica de um isolamento, ou seja, a falta de diálogo entre as inúmeras vertentes constitutivas dessa sociedade. No caso brasileiro, é possível falar em ausência de comunicação interna e externa.
O país sempre conheceu a imposição, em toda a extensão de sua trajetória existencial. Um sentido ambíguo de imposição, diga-se, que permite a leitura de um diálogo falseado. Os exemplos poderiam ser dados à exaustão. Nos diversos matizes em que uma informação é editada, a mídia acaba convertendo-se em cúmplice desse processo de desenraizamento de uma cultura. Não se trata apenas do que informar, mas sobretudo de como informar. Não somente a arte é o território de uma estética. Toda a existência humana trafega entre ética e estética. Somos o que somos da forma como somos. Tal percepção deverá ser uma espécie de primeiro passo na reversão de um processo brutal que define a sociedade brasileira desde a colonização. Teremos que partir para o diálogo, buscar o outro a cada momento, entregar-se ao convívio, anular preconceitos e aceitação tácita do que habitualmente nos é imposto. O impasse: o estado policialesco aludido dopou o entendimento dessa insurreição. O brasileiro já quase não reage senão aos choques de mídia. O torpor vem da constatação de estar trabalhando no vazio. De volta ao estado viciado: "se todos são corruptos, tratarei também de sê-lo". Todos os dias um que outro brasileiro indagará a si mesmo: "como será possível reverter o assunto?" Toda a sociedade brasileira reage a partir desse substrato de corrupção. Estamos nos desfazendo. Já não recordamos uns tantos nomes fundamentais na história de nossa cultura e a cada momento acatamos a leviandade como sistema de vida. "Como será?", será através de uma entrega total de si, de uma busca errante de diálogo, da aceitação do outro. Somente aí se anula um processo de submissão.
Como a mídia escapar dessa condição derivativa? Não, não escapará. É sua contradição: está rendida pela notícia. Mas qual notícia? O que é notícia? Por aí conduzimos uma sociedade, criamos falsos fantasmas, anulamos zonas de tensão, azeitamos políticas de intervenção etc. O ponto nevrálgico é a consciência do que se passa dentro de nós e à nossa volta. Não resta a menor dúvida de que haja vazamento de fogo no inferno. O homem não compreende mais a si mesmo. Foi levado a isso? Não resistiu a tanto? O que esperar do futuro está intrinsecamente ligado ao que esperar de si mesmo.



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Valdir Rocha
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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