Um dos pontos nevrálgicos da Internet é que ainda
não aprendemos a utilizar corretamente essa maravilha tecnológica. A violência
dos disseminadores de vírus disputa espaço com o não menos violento balcão de
vendas, ambos ladeados por uma voracidade informativa que contribui mais para o
afastamento do que para a assimilação de um instrumento novo de informação.
Em
meio a tudo isso, há uma tendência natural a generalizar e apressadamente
julgar criminoso o SPAM. A todo momento somos atormentados
pela informação, havendo um excesso que já não nos dá mais a condição de
avaliar sobre seu real valor. Se pensarmos em espaços urbanos invadidos pela
propaganda (paredes, roupas, transportes, encartados de jornais, papeletas
distribuídas no trânsito, postagem de autocolantes de farmácias e restaurantes
etc.), mais a real invasão da privacidade que são as televendas, concluiremos
que o SPAM é apenas um modo a mais dessa violência, cuja rejeição em
isolado reflete, quando menos, incoerência.
A todo
momento somos cúmplices desse estado de letargia em que nos encontramos, cujo
reflexo é uma já automatizada capacidade de apenas recriminar, jamais
detendo-se no motivo da recriminação ou mesmo assumindo o compromisso de
reverter o quadro.
A
rejeição ao SPAM, antes de sua discussão, antes da compreensão de sua
raiz, equivalência e efeitos, afirma um estado degradante de uma sociedade que
não possui mais convicção alguma acerca de seus valores, e que se deixa
manipular por estatutos expressamente vinculados à indústria da propaganda.
Não
haverá como entender as ações humanas senão correlacionando valor intrínseco e
circunstância. Em recente entrevista à Veja Vida Digital (dezembro
de 2000), Umberto Eco salienta que "uma boa quantidade de informação é
benéfica e o excesso pode ser péssimo, porque não se consegue encará-lo e
escolher o que presta". Em muitos casos a rejeição ao SPAM vem
justificada pela interferência em nossa privacidade. A invasão de privacidade é
pautada pela curiosidade de informação (registros telefônicos, utilização de
cartões de crédito, assinaturas de revistas). É preciso compreendê-la como
efeito, cuja causa é nossa ansiedade irreflexa.
O
decantado mundo bem melhor de todas as campanhas também possui valor intrínseco
e circunstância. O mesmo se aplica em relação a tudo quanto toma nossas vidas
de assalto, ao longo dos dias, quase imperceptivelmente.
Esse SPAM por um mundo melhor não nos permite pensar por nós mesmos
acerca de suas origens e efeitos. Não resta dúvida de que a Internet seja um
instrumento a mais de irradiação de um equívoco. Mas, como todos os demais,
pode vir a ser o inverso.
Na
mesma linha de irreflexão, provedores se manifestam contrários ao SPAM.
Sobrevivem através de anúncios, e exigem participações em distintas empresas
virtuais, incluindo as revistas de cultura. Praticam-no, sob outra orientação,
ao mesmo tempo em que são contra. Anunciam a si mesmos - ferindo assim o Código
do Consumidor por eles evocado -, mas proíbem seus filiados de tal recurso.
Em
outra passagem da sua entrevista, Umberto Eco observa: "Não acredito que a
humanidade toda vá usar a rede. Isso vai acabar criando novas formas de divisão
de classes." Não se pode pensar nisto como algo surpreendente. Trata-se de
uma inclinação natural da espécie humana. O mundo segue dividido entre ricos e
pobres. O interessante de se mencionar é que a classe supostamente pensante
seja justamente a mais manipulável pelo sistema.
Quando
serei suficientemente pobre para começar a pensar? Quando serei suficientemente
rico para deixar de pensar? Imaginemos um mundo deflagrado por essa conjunção.
Tanto SPAM e não saltamos fora da elite! A Internet segue sendo uma
igreja com suas restrições sociais (com sua Liga Anti-SPAM equivalendo à
Liga das Senhoras Católicas dos anos 60).
Antes
de toda rejeição, a discussão ampla. A Internet tenderá ao usufruto de
campanhas políticas no interior do país, como no caso do rádio, ou à
disseminação de uma mediocridade risível como no caso da televisão? Agulha
Revista de Cultura propõe aqui um fórum relacionado ao
tema: SPAM. Nada de preconceito. Precisamos discuti-lo abertamente. E
conclamamos provedores, editores de sites, observadores de plantão etc., para
que possamos agir um pouco mais à vontade no tocante ao que fazemos e
anunciamos: uma revista de cultura.
Até que ponto informação e lazer se confundem,
embaralhando valores entre si? A preocupação vem do fato de que a informática não
teria cumprido uma de suas premissas: a de concentrar melhor o tempo destinado
ao trabalho, ampliando assim as condições de acesso a lazer. Em primeiro lugar,
em uma escala institucional a informática é ainda algo incipiente, se pensarmos
no caso brasileiro, que nos servirá de exemplo no decorrer deste editorial.
Pesquisas em sites de busca tendem a ser frustrantes quando se trata de
assuntos ligados a política, economia e cultura, ou seja, quando buscamos
informações acerca de temas brasileiros, informações que tenham sido
disponibilizadas por instituições brasileiras.
O lazer invade então, neste caso específico, o espaço da informação, e
um lazer de baixa referência, pautado sobretudo por sites-empórios de
autoajuda, correntes de felicidade, anúncios de pseudo-santidade, protestos
antiglobalização, campanhas inócuas etc. Aqui mesmo, na editoria de Agulha Revista de Cultura, somos
visitados por ofertas inúmeras do comércio das almas esvaídas, ao passo que
nada nos chega das raras instituições públicas brasileiras ligadas à cultura,
ainda que sejam seus endereços, e não os demais referidos, a constarem de nosso mailing.
Como então separar lazer e informação em um país que confunde cultura
com evento e tem rebaixado a índices alarmantes as ofertas de informação em
torno daqueles temas essenciais à constituição de uma sociedade, sobretudo
quando se costuma dar ênfase ao estado democrático em que supostamente vivemos?
Temos insistido na tecla: como conciliar democracia com voto obrigatório e a
promíscua proliferação de emendas à constituição?
Recentemente uma rebelião em diversos presídios brasileiros surpreendeu
pela congeminação de esforços e a simultaneidade de informações trocadas entre
os presos. Os chamados criminosos comuns, a escória do país, como a eles se
referem duas outras instâncias aproximadas, a imprensa e a classe política, se
mostraram mais integrados entre si do que nossos artistas, por exemplo, que
costumam considerar-se marginalizados.
Aqui se embaralham conceitos, valores, graus de consciência e entram em
campo os diversos componentes da manipulação desses mesmos itens. Qual
desempenho poderia ter a informática em um país onde a concentração de rendas
permite uma vida melhor ao contraventor de qualquer regra social? Celulares
entram e saem com facilidade nos presídios enquanto que os filhos da classe
média rasuram páginas de livros adotados que são verdadeiros implantes de
erradicação da leitura, sem falar nos filhos da grande miséria com sua dieta de
balas de escopeta.
Dizer que vivemos em um estado retaliador onde apenas 2% da população
tem acesso à informação é já um lugar-comum, de nada adiantando manter
informado esse percentual, uma vez que possui uma consciência evasiva, beirando
o autismo, viciado no dogma dose não é comigo, não existe. O ponto é
saber até quando suportarão o desequilíbrio os 98% da outra margem.
Diante de tudo isto, perde um pouco o sentido falar em distinções entre
lazer e informação? O leitor nos dirá. O importante é saber que não servirá de
nada o resmungo sem que ao mesmo corresponda uma ação no sentido reversivo do
objeto da reclamação. Uma revista de cultura cumpre seu papel ao apresentar ao
eventual leitor um leque de componentes culturais que sugiram, quando menos,
novas perspectivas de leitura. Este mínimo aporte é também o que se espera das
instituições brasileiras ligadas à cultura.
Temos que entender que o problema da distribuição de rendas está
interligado ao da distribuição de informação. O leitor contribui com suas
cartas, a difusão entre amigos, sobretudo com a conversa estabelecida entre os
seus, ou seja, o mínimo espaço sendo preenchido até ganhar mais corpo e
aderência. Governos não caem simplesmente. Ao sabor dos ventos só se pode
chegar a um lugar impreciso.
*****
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado | Valdir Rocha
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto
de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
S1 |
PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 |
VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO
DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a
coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido
hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente
ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a
coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio
Simões.
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