Por volta de
1970, pessoas qualificadas, competentes, bons profissionais do ramo de
comunicações, previam que a comercialização dos aparelhos para reprodução de
vídeos e a difusão das respectivas fitas colocariam em cheque as grandes redes
de TV. Em vez de assistirem a um programa, entre meia dúzia de alternativas, as
pessoas logo teriam uma infinidade de escolhas possíveis em matéria de filmes e
outras modalidades de entretenimento audiovisual. Produção e exibição de filmes
em cinemas, então, nem falar; nada sobraria, a não ser, quando muito, salas de
projeção de vídeo.
Em meados da década de 80, a conversa era outra. O entusiasmo dos
especialistas em tecnologias de comunicação voltava-se para as antenas
parabólicas, especialmente as menores, que podiam ser instaladas dentro de
casa, no lugar dos colossos que ocupavam um terreno inteiro ou o teto de
grandes edifícios, desde que houvesse reforço das estruturas. Principalmente
aquelas, portáteis, que podiam tanto receber quanto transmitir, convertendo
cada pessoa, cada cidadão, em emissora particular de TV. Foram publicados
artigos demonstrando que, na opção entre transmissão a cabo ou diretamente através
de parabólicas, estas se revelavam mais práticas e viáveis, nem que fosse por
não se precisar perfurar calçadas de rua para a instalação. Evidentemente,
também era desenhado um cenário no qual não havia lugar para cinemas e grandes
redes de emissoras de TV.
Dispensemos o exame de outras novidades em seu tempo, que logo a seguir
se revelaram mostrengos de um futuro irreal, fugazes anacronismos, como o
videoplayer. Deixemos de lado este autêntico ornitorrinco da futurologia, o
crescimento do número das salas de cinema, sob forma de multiplex, provocando o
renascimento de um entretenimento secular.
O último fracasso das previsões perfeitas de consequências das novas
tecnologias de comunicação foi o vislumbre da grande conexão de tudo, via
satélite: a super-rede usando celulares que desempenhariam o papel de unidades
múltiplas de transmissão. Como se sabe, o modelo chegou a ser posto em prática;
o satélite foi construído e lançado; contudo, custos adicionais e dificuldades
técnicas inesperadas obrigaram à revisão e interrupção do projeto, acarretando
prejuízo a investidores.
Na verdade, todas essas previsões foram corretas, no sentido de serem
logicamente perfeitas. Seu erro foi justamente este: nossa lógica é discursiva,
linear; por isso, partindo de um cenário determinado, eram feitas projeções
lineares para o futuro, repetindo ilusões positivistas através da aplicação de
modelos mecanicistas, fundados no determinismo simples. Acontece que a história
não avança linearmente. A realidade, principalmente aquela produzida pelo ser
humano através do trabalho, é dinâmica. Corresponde a sistemas complexos, nos
quais intervêm as mais inesperadas variáveis; algumas, de natureza qualitativa.
Isso não significa que o futuro seja inexplicável nem imprevisível. Apenas, no lugar
do pensamento linear, determinista, aplicam-se a ele modelos complexos, como
aqueles fundados na teoria do caos, na indeterminação, com a probabilidade
substituindo a causalidade direta.
Estas observações vêm a propósito da questão das publicações eletrônicas versus publicações
sobre papel, e, por consequência, do destino, da sorte futura de Agulha
Revista de Cultura. Pode ser que mesmo um prognóstico de alguém como
Bill Gates, um dos responsáveis por mudanças qualitativas nos cenários
relacionados às tecnologias da comunicação, venha a revelar-se uma falácia
determinista. Como se sabe, para Gates, a substituição do livro-papel (e, por
consequência, dos periódicos) pelo livro eletrônico levará menos de uma
geração. Acontecerá entre 2.010 e 2.020.
Ninguém, aqui, nesta redação virtual, é bibliófilo radical. Há
argumentos fortes em favor da publicação eletrônica. Um deles, o custo menor,
uma vez difundidas as telas planas para leitura do e-book. Há,
ainda, um custo adicional do livro-papel, nem sempre contabilizado, que deverá
pesar em favor de e-rockets e similares: aquele relacionado ao
espaço que uma biblioteca requer e ao tempo gasto para organizá-la e
conservá-la. Outro argumento é a maior facilidade de acesso à informação.
Associado a ele, a possibilidade da publicação eletrônica funcionar como
hipertexto, onde cada leitura remete a outras. E as publicações periódicas
permitem acumulação virtualmente infinita. Cada nova edição jamais elimina a
anterior: todas se somam e nada é descartável, conforme pode ser constatado
através desta oferta de artigos de edições anteriores de Agulha
Revista de Cultura, para quem não teve acesso a elas.
Em favor do livro no suporte tradicional, a possibilidade aberta pela
publicação on demand, ou, no ainda vernáculo, para pronta-entrega,
por encomenda, eletrônica, mas que também pode ser impressa. A tecnologia já
disponível deverá baratear o livro, tornando-o mais acessível. Quem compra um
livro no sistema convencional de produção, na verdade não está pagando por
aquele exemplar, mas pela tiragem toda: no preço de capa de seu volume, vem
embutido o custo do estoque, do armazenamento, do encalhe daquela edição ou de
outras da mesma editora, enfim, uma taxa de risco que deixa de existir na
produção por encomenda.
A quantidade crescente de mensagens recebidas por Agulha
Revista de Cultura, comprovando a expansão de seu público leitor,
demonstra a efetividade do veículo eletrônico. Mostra, novamente, que não se
deve temer a densidade; que eletrônico e banal jamais terão que ser sinônimos.
Isso não significa que esteja eliminada a publicação em papel. Poderá ocorrer,
mais cedo ou mais tarde, através de tiragens ou por encomenda. Todas as
possibilidades nos favorecem, pois não descartamos nenhuma. Ninguém, aqui, é
viciado exclusivamente em Internet. Nosso vício é a cultura, a literatura de
qualidade. Por isso, tudo pode acontecer. Aguardem. Certamente, voltaremos ao
assunto.
Fim da crítica literária
e de artes. Fim do valor literário, da literatura de qualidade no mundo
midiático e globalizado. Fim do livro. Fim da poesia. Apocalipses deste final
de milênio, tomando o lugar do fim do mundo anunciado para o ano 1.000 da nossa
era Mallarmé havia comentado que o mundo terminaria em um belo livro.
Talvez nas duas ocasiões, nas duas passagens de milênio, em 1000 e 2000, se
estivesse e se esteja anunciando a mesma coisa, uma crise no plano simbólico,
afetando as representações do mundo. Como, nos últimos quinhentos anos, o livro
se tornou o principal meio de registro e transmissão da matéria simbólica, faz
sentido desta vez o Apocalipse incidir sobre ele, ou afetá-lo
diretamente.
O
século XX já foi, todo ele, um final de milênio. Daí que, desde seu início,
viesse sendo anunciado o fim do livro, sucessivamente engolido pelo cinema,
pela TV, pela Internet. E, ultimamente, pela globalização da economia, conforme
os dossiês que têm sido publicados sobre a mudança na composição de capital das
editoras, absorvidas por complexos de comunicação. Por exemplo, no Nouvel
Observateur da última semana de março, a análise das consequências da
aquisição da Harper & Collins, americana, pelo grupo Bertelsmann, alemão,
esvaziando complemente a editora. A regra do jogo, nesse e em outros casos, é a
seguinte: a editora tem que atingir uma margem de lucro de 15%, a qualquer
preço, em prejuízo da qualidade. Para tal, programação editorial só de
banalidades, best-sellers e livros de interesse geral. E, se não cumprir essa
meta, fecha-se a editora, ou passa-se para a frente.
O Apocalipse
do valor e da alta literatura vem sendo examinado pela ensaísta Leila
Perrone-Moisés, entre outros lugares em seu livro Altas Literaturas(Companhia
das Letras, 1998) e em um artigo recente no suplemento Mais, do
jornal Folha de São Paulo. É associado a mudanças de orientação da
crítica e do ensino de Letras pela ascensão das tendências culturalistas,
pós-modernas, que estudam Literatura como um campo das comunicações sociais e
dos estudos da cultura, no sentido dado ao termo pela Antropologia.
Quanto
ao fim da poesia, basta lembrar que, a propósito da morte de João Cabral de
Mello Neto, uma verdadeira coorte de comentaristas e jornalistas de páginas de
variedades e cultura proclamou que não havia mais nenhum poeta de grande
estatura no Brasil.
Apocalipses
contêm a perspectiva de uma ressurreição ou de um renascer das cinzas. É esse o
sentido de uma matéria recente na revista Veja, anunciando a volta
da crítica, pois a revista passaria, novamente, a ter alguém (quem...?)
respondendo pelo registro regular de livros.
O
diagnóstico de crise do valor e da literatura, provocada por culturalistas
pós-modernos, é uma discussão acadêmica que ultrapassa e extrapola seus
limites. Confunde o mundo com uma sala de aula, vê o mercado editorial como
extensão de departamentos universitários, troca o lugar da infra e
superestrutura, entendendo que os currículos e conteúdos de aulas são
determinantes, e não um reflexo do que se passa na sociedade.
Quanto
à crítica, deixou de haver, ou de renovar-se, unicamente por responsabilidade
dos grandes jornais e revistas. Quinze ou vinte anos atrás, convocavam um
elenco de colaboradores de primeira linha para se ocupar disso. Achando que a
ampliação de escala, o aumento de tiragem e leitores de suas publicações os
obrigava a um aumento equivalente de banalidade, esvaziaram o setor. Foram eles
mesmos que transformaram páginas de resenhas em simples transcrições de releases,
ou em lugar para algum mestrando ou doutorando mostrar ao orientador e aos
colegas que fez a lição de casa.
Diversidade
e qualidade são determinantes do crescimento de editoras. Por isso, a cada
editora que se burocratizar, absorvida por algum complexo de comunicações,
surgirá outra, ocupando o espaço abandonado pelo ex-concorrente. E, na hora em
que as principais mediações, ensino e crítica, recuperarem um mínimo de
qualidade, o mercado editorial voltará a florescer. Surpresos, jornalistas e
professores constatarão um inesperado e inexplicável boom da
alta literatura, da poesia de qualidade.
Aparentemente
alheias a seu próprio fim, desconhecendo o terreno arrasado e salgado em que
estariam pisando, cresce a quantidade de revistas literárias no Brasil. Ao
menos no Rio de Janeiro e São Paulo, sessões de leitura de poesia proliferam.
Oficinas literárias têm filas de espera de inscritos. Sites literários
e revistas eletrônicas registram milhares, dezenas de milhares, centenas de
milhares de acessos. Incompetência de alguns editores de páginas culturais na
grande imprensa, queda de prestígio de teorias literárias e paradigmas cujo
alcance havia sido inflado, erros de programação editorial, ajustes de mercados
na área de comunicação - nada disso deve ser confundido com o Apocalipse. O fim
do mundo certamente acontecerá, mas ainda vai demorar um pouco.
Eternos
sobreviventes, prosseguiremos.
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado | Valdir Rocha
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto
de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
S1 |
PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 |
VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO
DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a
coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido
hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu
ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a
coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio
Simões.
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