FM | Em entrevista a Ana Marques Gastão, comentas a respeito
das diversas vozes que se podem perceber em tua poética, vozes que ora são imaginárias,
citações reais, deformadas etc., o que acaba dando uma valiosa carga teatral a muitos
poemas. O que está por trás disso tudo? O que busca a poesia através de Manuel Gusmão?
MG | São vozes ou por vezes apenas entoações,
citações de outros poemas ou de romances, às vezes de personagens de um filme, mas
podem também ser frases de cartas que recebi ou coisas que me disseram, ou certos
jeitos quotidianos da língua. Trata-se de responder a essas vozes outras, de dar
a entender como uma voz singular se faz ou pode fazer a partir das “palavras dos
outros”. Nenhum de nós inventa a língua em que escreve, podemos reconfigurá-la um
pouco, podemos construir alguns possíveis novos dessa língua, mas no limite a invenção
só é possível porque a língua já existe. Aquilo que para muitos aparece como uma
condenação, para mim é como se fosse uma condição de possibilidade, a generalidade
e a socialidade da língua são aquilo mesmo que torna possível o fazer da singularização
e da individuação. Trata-se também da descoberta e da invenção de uma coralidade
que, mesmo se mínima, é uma hipótese de vitória sobre o silêncio imposto, de não
deixar que a solidão, entretanto necessária, se feche por completo sobre nós e nos
congele, de dar voz ao que em nós e fora de nós não fala. Por outro lado, trata-se
também de uma tentativa de mudar de registo discursivo ou rítmico no interior de
um livro ou mesmo dentro de um só poema, de acolher a heterogeneidade daquilo de
que sou feito, a alteridade sem a qual só abraçamos o ar demasiado puro e elevado.
Na nossa câmara mais íntima, quando fazemos silêncio para poder escrever, então
aí, podemos ainda escutar esses murmúrios em que outros falam, assim como cintilam
e vibram as imagens e os rumores do mundo.
FM | De que maneira a escritura, em
1998, do libreto da ópera Os dias levantados se insere dentro de tua obra
poética, e o que volta a significar agora quando o publicas em separado da peça
musical de António Pinho Vargas?
MG | Sobretudo agora quando me autorizei
a publicá-lo autonomamente e com alterações, julgo que não posso rejeitá-lo, ou
seja, estou disposto a pagar o preço por assiná-lo. A dificuldade e a diferença
vêm de que este livro começou por ter um “programa” desde o início – era para ser
sobre o 25 de Abril, sublinho o “sobre”, e para servir uma sua realização outra,
pela música e num palco. Diria que é um livro que mostra ou dá a ver coisas que
nos outros livros de poemas são mais oblíquas, menos directas, o que é no fundo
admitir que há traços ou formas de fazer que são comuns. Por exemplo: a coralidade;
a ostensão aqui explicitada das citações das vozes de outros; a afirmação de uma
posição política na história que não é demagogia, mas é experiência vital, história
da vida que tenho vivido e passionalidade ideo-verbal e ético-política. Mas há também
o lado da construção, da arquitectura ou da composição do poema. Aí, admito que
o libreto é um poema dramático mais perto de visar uma cantata ou uma ópera por
quadros ou sequências. As acções são sobretudo conflito de vozes. A partir de certa
altura, praticamente desde um dos quadros do Iº Acto, vai-se citando as transformações
ou as glosas, por poetas do século XX (Jorge de Sena, Ruy Belo, Fiama Hasse Pais
Brandão, Luiza Neto Jorge e Gastão Cruz), de um verso de Sá de Miranda (séc. XVI)
que só será citado já para o fim (no “Êxodo”). Por um lado, imagino a recitação
ou a citação repetida como uma espécie de repetição da origem, que regressa no tempo;
por outro lado, que o verso originário só apareça quase no fim, pode significar
que a origem ainda está à nossa frente, ou por vir. Por outro lado, a recitação
do verso através dos seus ecos é homenagem à poesia e põe esse verso a costurar
os tempos. Com estes procedimentos vários, julgo que no libreto procuro maneiras
para praticar a deslinearização do tempo histórico, a constelação das várias formas
do tempo – uma das minhas obsessões, que vou buscar como herança a Walter Benjamin.
FM | Como se deu então o diálogo entre
músico e poeta, e até que ponto crês interessante para a poesia essa aproximação
de outras áreas da criação artística?
MG | Quando o compositor me convidou
– não nos conhecíamos pessoalmente - fiquei efectivamente surpreendido. Embora sempre
me tenha interessado por outras artes e até tenha trabalhado sobre formas de encontro
concertante ou dissonante entre elas, nunca tinha pensado escrever sequer para teatro,
quanto mais para uma ópera. Por outro lado, o convite implicava escrever em direcção
a uma realização outra, diferente daquela que se processa na leitura, mesmo em voz
alta, e escrever “sobre” algo que era à partida político e muito menos consensual
do que pode parecer. Quando me decidi a aceitar, disse ao António Pinho Vargas que
não escreveria nem um texto de propaganda nem exclusivamente celebratório, assim
como também não poderia nunca escrever uma coisa neutra e consensual, porque a data
é daquelas que são simultaneamente história colectiva e história pessoal de quem
activamente as viveu. Desde o princípio ficou claro que ele utilizaria o meu texto
como a música lhe fosse ditando, assim como eu ficaria livre de o editar de forma
autónoma. O texto foi sendo escrito em diálogo com o compositor e depois também
com o encenador, Lukas Hemleb, que trabalha sobretudo em França. Esse diálogo que
foi exigente interessou-me muito por várias razões. Desde logo porque foi efectivamente
um diálogo entre
diferentes, colaborando. Eu ia escrevendo cenas ou blocos de texto
e obtinha quase imediatamente a reacção de um ou dois leitores, que faziam perguntas,
comentários e sugestões. Depois, porque eu tinha de escrever tendo à partida ou
no horizonte algumas restrições ou constrições no plano da produção: por exemplo,
o número de solistas ou o número de membros do coro. Para além disso, aquilo que
o António sugeria poderia levar-me a encontrar ou inventar soluções em que não tinha
pensado ou que tinha pensado de outra maneira. Enquanto experiência de um diálogo
que contamina ou move quem dialoga, de um trabalho de escrita que se desenrola integrando
já uma escuta, foi para mim uma experiência muito interessante em si mesma e que
de alguma forma se projectou no livro Teatros do tempo que eu também já começara
a escrever. Por outro lado, a minha “preparação” para o libreto levou-me a ouvir
outras peças musicais do António Pinho Vargas ( iincluindo a sua 1ª ópera, “Èdipo,
tragédia do saber”, com texto de Pedro Paixão) e outras óperas contemporâneas que
ele me sugeriu.
FM | Em tua participação em uma mesa-redonda
na Associação Abril em Maio (janeiro de 2004), em Lisboa, defendes que é necessário
criar uma consciência política em âmbito artístico, «se não quisermos que a arte
se dilua naquilo que é dominante na sociedade». Não crês que essa diluição já esteja
presente ao ponto de tornar esta tua defesa, que é também a minha, mais utópica
do que a possamos imaginar?
MG | Não sei se disse mesmo assim. Lembro-me
que nesse momento estava a referir uma passagem do epílogo do ensaio de Walter Benjamin,
“A obra de arte na era da reproductibilidade técnica”. Nessa passagem, ele estabelece
uma relação entre o fascismo e a esteticização da política que segundo ele culminaria
na guerra. Benjamin diz que a humanidade
se tornou de tal forma estranha ou estrangeira a si própria que se dá em espectáculo
a si mesma e é capaz de viver a sua própria destruição como um prazer estético de
primeira grandeza. E termina dizendo que a resposta dos comunistas é a politização
da arte. Eu procurava entender o que ele escreve na sua circunstância e recolocar
o problema, hoje, em que a espectacularização da política e da própria vida privada
atingiu, juntamente com o crescimento das “indústrias culturais”, uma exasperação
enorme. E daí partia para a consideração de que sem perder de vista a defesa da
independência relativa da arte (que justamente hoje está ameaçada) cujo esquecimento
por quem quer revolucionar o estado das coisas pode conduzir ao desastre e, simultaneamente,
sem a tomar como uma autonomização absoluta, abre-se um espaço para trazer à consciência
política e estética a percepção da politicidade da arte e trabalhar por uma cultura
ao mesmo tempo de resistência e de alternativa. Trata-se de compreender, por exemplo,
que a massificação do acesso a certos bens culturais não é necessariamente uma democratização
e que se trata de intervir não tanto na criação (esse é um problema em larga medida
de opção do artista) mas nas formas de produção, circulação e consumo culturais.
A dissolução da arte no mercado ou a neutralização da sua dimensão crítica e inventora
de novos possíveis, é hoje uma tendência dominante, de acordo, mas isso não torna
necessariamente utópica a intervenção pela arte. É certamente mais difícil; obriga a pensar como,
onde, de que maneira, com quem e para quém. Por outro lado as utopias são nas suas próprias formulações, contingentes, históricas,
mesmo que não tenham disso consciência. Se concebermos o utópico como aquilo que
resiste à tentativa de ocupação total do espaço, se reagirmos ao uso da palavra
“utópico” para acusar e desarmar toda a tentativa de busca de um outro possível,
numa estratégia de cancelamento ou estreitamento de qualquer horizonte diferente
para as nossas sociedades, então, eu poderia aceitar essa dimensão utópica daquilo
que me move, mas insistindo na sua determinação histórica.
FM | E qual contribuição têm dado, seja
em busca de solução ou na permissão de agravamento, os próprios artistas, poetas,
intelectuais?
MG | Para além de julgar que é importante
procurar pensar a história do problema, digamos assim, até para perceber melhor
a sua configuração presente, posso falar do que tenho perto de mim. Acho que posso
dizer que uma grande parte dos intelectuais portugueses desejaram e acompanharam,
participando de formas muito diversas, o fluxo pelo menos inicial da revolução portuguesa,
entre Abril de 1974 e o verão de 1975. Depois, nos longos anos que vêm até hoje,
dividiram-se, confrontaram-se, desistiram ou regressaram a casa, tal como aconteceu
com outras camadas sociais intermédias. É evidente que abriu há umas décadas atrás
uma espécie de caça aos intelectuais. Não creio que seja um fenómeno redutível a
uma compra e venda, antes se trata de algo mais complexo, onde se usou e usa o quantum
satis de discriminação e, ao mesmo tempo se recorre em larga escala à sedução.
Isto em determinadas circunstâncias sociais e culturais marcadas pelo crescimento
rápido das indústrias e de um mercado cultural que se rege não apenas por regras
económicas, mas também por determinados valores simbólicos e ideológicos.
FM | Mas se poderia acaso dizer, de
uma maneira geral, que esta camada social, artistas e intelectuais, esteja hoje
como que acomodada a esse avançado processo de atomização, sendo raro manifestar-se
em «defesa da independência relativa da arte»? Em havendo, isto viria unicamente
do fascínio exercido pelos meios de comunicação de massa?
MG | Eu não tenho a certeza se há uma
acomodação da maioria. É possível que sim, mas num quadro que a médio prazo e seguramente
a longo prazo é de grande mutabilidade. Nos movimentos contra a globalização capitalista
e recentemente contra a guerra houve e há uma participação sensível de intelectuais.
A proletarização crescente daquilo que podemos designar por profissões intelectuais
e que excede largamente os artistas e os intelectuais, enquanto porta-vozes tradicionais,
comporta fenómenos de grande diferenciação
interna da camada, de desemprego ou sub-emprego, de perda de controlo sobre o seu
trabalho e de estreitamento ou compressão
da sua independência relativa. Entretanto, não estamos apenas perante o fascínio
exercido pelos grandes meios de comunicação de massa; acontece também que as novas
tecnologias permitem formas de trabalho e de associação em micro-empresas que geram
uma experiência virtual, que não é apenas uma ilusão, de independência e de universalidade,
na qual o cosmopolitismo esquece o internacionalismo. Ora esse esquecimento esquece
também que, em períodos ou conjunturas de relativo bem estar, grande número de intelectuais
integra os 2/3 que vivem sobre um terço de excluídos nas sociedades do mundo capitalista
mais desenvolvido, que por sua vez assenta o seu “desenvolvimento” na sobre-exploração
dos outros mundos e na exportação das mais violentas desigualdades.
FM | Retornando à tua poética, onde
está bem clara a relação com o tempo, indagaria agora por sua relação com o corpo,
ou seja, que gradação de sexualidade da escrita se poderia evocar ao tentar compreender
esta poesia?
MG | De algum modo a poesia na sua enorme
diferença em relação a si mesma sempre foi uma forma de inscrição perdida do corpo
amoroso, do “amor realizado de um desejo que permanece desejo” como escreveu René
Char. Aquilo que escrevo imagino-o em certa medida como uma espécie de extensão
não-orgânica do corpo-a-corpo amoroso, pelo qual procuro estar próximo do coração
da terra, uma narrativa interrompida e recomeçada dos corpos que me tatuaram, uma
narrativa que acumula feridas e queimaduras e procura reinventar, para sobreviver,
aquela inenarrável perda da consciência que nos liberta de nós e que só julgamos
conhecer nesse corpo-a-corpo. O Eros prolongado no corpo da linguagem ou, melhor
no corpo-a-corpo com a linguagem, é uma maneira de querer a alegria, de imaginar
a morte como a condição de uma alegria feroz, de aprender e aceitar que “só pode
queimar quem aceita ser queimado”. E então as coisas confundem-se muito. A experiência
do amor que julgamos receber da vida e que em larga medida seria muda sem a poesia,
a arte, vem-me por exemplo não só daqueles corpos-músicos que amei e me amaram como
da definição da alegria por Spinoza, ou da fabulosa frase de Catherine Earnshaw
no inesquecível Monte dos Vendavais,
de Emily Brontë: “I am Heathcliff”. De certa maneira gostaria que
a poesia pudesse ser um dar voz à experiência que a frase final de um poema de Rimbaud,
“Being beauteous” inventa: “Oh! nos os sont revêtus dun nouveau corps amoureux”.
MG | Deixa-me começar por dizer que
não partilho da ideia de que a poesia acabou, nem mesmo da versão reduzida de que
o lirismo estaria exausto, ou teria chegado ao fim. È mais um decreto, proclamado
no quadro da ideologia dos fins, e no máximo poderá ter o valor de sintoma de um
mal-estar na cultura sobretudo em algumas sociedades contemporâneas desenvolvidas.
Julgo, por outro lado, que é mais interessante admitir que há várias tradições e
não apenas uma ou, então, falar de uma tradição plural e heterogénea, que comporta
diversas genealogias que, aliás se podem cruzar. No meu caso, gosto de imaginar
que aquilo que faço procura manter unidos gestos e processos de linhagens diferentes:
por um lado, a obsessão com a construção de cada livro, o rigor da composição verbal
que não deixe o lírico ronronar e creio ter andado a aprender, por exemplo, com
poetas como Carlos de Oliveira; por outro lado, não desistir da veemência, da imagem
alucinada, como ela sopra lá para os lados de Herberto Helder e, entretanto, trazer
a estas duas genealogias a heterogeneidade de registos e níveis discursivos, como
a podemos encontrar de modos muito diversos e de forma particularmente intensa numa
poeta como Luiza Neto Jorge. É difícil falar disto, sem parecer pretensioso ou sem
ter a sensação de que me perco entre espectros, então, que sejam eles ao menos os
daqueles que prefiro. Apenas, diria mais que me fascina a possibilidade de encontrar
para hoje as formas ou as entoações da poesia narrativa. E ainda, esta tensão de
procurar manter unidas - nunca sei bem como – duas exigências: não deixar de me
manter perto do coração selvagem do que é da terra e ao mesmo tempo não faltar à
resposta que, por tomar a palavra, devo àqueles que da sua própria voz são expropriados.
Saber que vimos de muito longe, que somos animais longos no tempo, imaginar que
há qualquer coisa em frente à minha espera mas que me vem de Hölderlin, do 1º romantismo
alemão, o romantismo de Jena, de Rimbaud, e que é uma promessa e, ao mesmo tempo,
não me despedir nunca por completo daqueles que me trazem a depuração de uma oficina
onde pode soprar uma fúria rigorosa, Mallarmé, Cesário Verde, Ponge, João Cabral
de Melo Neto, Carlos de Oliveira. Aqui já comecei a alucinar, portanto é melhor
calar-me.
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Agulha Revista
de Cultura
# 39. Junho de 2004. Página ilustrada com obras de Hélio Rola (Brasil), artista
convidado desta edição especial de ARC.
Organização a cargo de Floriano
Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Hélio
Rola
Agradecimentos a Mhelena
Castro
Imagens © Acervo Resto do
Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais
da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia.
No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o
título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins.
Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de
Floriano Martins e Márcio Simões.
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