Ao concluir
Eva e os padres (Cia. das Letras, trad. Maria Lúcia Machado, 2001), o historiador
Georges Duby observa acerca da resistência das damas do século XII – tema central
do livro –, "adivinhando-as fortes, bem mais fortes do que imaginava, e por
que não, felizes, tão fortes que os machos aplicam-se em enfraquecê-las pelas angústias
do pecado". Tal condição apenas adivinhada encontra razão de ser no próprio
mapeamento histórico do período, sobretudo se tomarmos em conta a reforma por que
passava a Igreja, empenhada em impedir que os padres seguissem casando ou simplesmente
vivendo com concubinas.
Coincidindo
com o momento em que Pedro Abelardo se vê considerado herético pela escritura da
Teologia, obra que sugere uma aplicação da análise lógica na compreensão
da metafísica, o Concílio de Latrão, sob a regência do papa Calisto II, se realiza
por três vezes, no século XII, restabelecendo severa disciplina para o corpo eclesiástico.
O princípio dialético levado a termo por Abelardo logo seria desenvolvido por Graciano
em Decretum, que tinha por subtítulo A concordância de cânones discordantes,
espécie de carta jurídica que adotaria a Igreja, baseada na aproximação de afirmações
contraditórias, visando uma ambiguidade de interpretação que fatalmente permitiria
toda ordem de manipulação.
Temos no
século XII um daqueles essenciais entroncamentos da história da humanidade, em que
os poderes se reorganizam e redefinem normas e procedimentos. Se a Europa Ocidental
então vivia o que se chamaria de renascimento do saber, é preciso entender que tal
saber, mesmo que se realizasse no âmbito da medicina, da filosofia e das artes,
em muito privilegiou o florescimento de uma teologia que acabaria encontrando na
mulher a vítima ideal para os interesses de afirmação de uma nova ordem.
A primeira
das considerações a ser feita neste sentido diz respeito à recorrência, por parte
da Igreja, à definição de pecado, tomando por base uma mescla de conceitos envolvendo
homem/mulher, masculino/feminino, razão/emoção, dicotomias já de muito suspeitas,
embora sempre funcionais quando se quer confundir para melhor governar. A adivinhada
força da mulher, que menciona Duby, estava clara em textos da época que referem-se
ao rigor feminino e à indulgência masculina quando se trata de aspectos ligados
à sexualidade. Uma vez mais se observava a relação de interposição da mulher entre
Deus e o homem, criador e criatura, interferência da ordem de uma outra dualidade:
sagrado/profano.
Tais dobras
existem e requerem discussão menos dogmática. Em todas as culturas encontramos relações
entre forças complementares. A Igreja, no entanto, baseada no princípio (uma imagem
consubstanciada) da Queda, nos persuadiu a todos de que não há relação de complementaridade
sem a presença da submissão. Estabeleceu-se então que tal submissão recairia sobre
a sexualidade (sensualidade, parte animal, o Diabo). A alusão indispensável à figura
mítica de Eva condicionava a existência humana a três atos: criação, tentação e
punição. A instituição do pecado tornava-se assim uma das mais sagazes invenções
do homem, não resta dúvida, com sutilíssima aplicação até os dias de hoje.
O dualismo
empregado pela Igreja no século XII estabelecia uma relação direta entre criador
e criatura, relação interferida ou desordenada pela presença da mulher. O homem
seria o espírito, a mulher a carne, cabendo uma relação de subordinação desta em
relação àquele. Tal maniqueísmo esteve no discurso dos principais teólogos do século
e naturalmente Duby baseou-se em vários deles para escrever Eva e os padres.
Diz ele
próprio: "No século XII, o cristianismo não é mais tanto questão de rito, de
observância, quanto de conduta, de moral. A expansão das práticas da penitência
íntima torna mais urgente a pergunta: o que é o pecado?" Ao considerar o desejo
como algo passível de castigo, fortalecendo a defesa de que a expulsão de Adão do
paraíso foi provocada por um excesso de apetite de prazer, ainda hoje as relações
de afeição se sentem prejudicadas pela idéia de submissão, assim como a condição
de risco em relações políticas ou econômicas é evitada ou manipulada sob pena de
se comprometer a própria integridade do que se busca.
Quem eram
essas "sombras, vacilantes, inapreensíveis", que averigua Duby nas inúmeras
leituras de documentos da época? O que definiria o adultério como uma inclinação
da mulher? E como tantas esposas se mantiveram fiéis aos maridos ausentes durante
as Cruzadas? E onde se lê que todos aqueles padres casados frequentavam um único
leito? Em momento algum a razão se sentia atraída pela impudicícia? E as religiosas
guardadas por Deus nos conventos acaso não cediam a pecaminosos desejos? Onde os
documentos que se referem às relações homossexuais do período?
O que se
dizia então era que a sexualidade encontrava-se na ponta de toda transgressão da
lei divina. Mas não havia tal lei, e sim um conjunto de decretos que se impunha,
com base em imagem fraudada da mitologia cristã. Mesmo quando a Igreja define uma
nova condução apropriada para o casamento, não se vê aí senão uma solução melhor
do que a fornicação sem rédeas. O casamento foi assim incluído como sétimo sacramento
por uma estratégia de compreensão das forças de sujeição/dominação.
Eva e os
padres possui uma espinha dorsal interessante. O livro se
baseia em leituras de alguns documentos de época, expõe a condição de tratamento
das mulheres em aspectos que se referem aos conceitos de pecado, queda e amor, a
eles acrescentando a maneira como o corpo eclesiástico se dirigia a essas sombras
raptadas, recorrendo aqui a metáfora utilizada por mim em um poema dedicado
à condição feminina sob o jugo do cristianismo.
O francês
Georges Duby (1919-1996) encontra-se vinculado ao movimento dos Annales, corrente
de averiguação histórica criada em Paris, em 1929, por Marc Bloch e Lucien Febvre,
onde viria a se destacar como uma das principais autoridades no conhecimento do
Medievo. Ao referir-se a ele, José Mattoso observou o respeito pela "hierarquia
dos fenômenos históricos", bem como o reconhecimento do "efetivo significado,
sem confundir regras com exceções, fatos e dados majoritários com outros minoritários,
correntes dominantes com desvios, permanências com mutações".
Em entrevista
a François Ewald (Magazine Littéraire, Paris, 1987), ele próprio situava
a visão do referido movimento: "A história segundo Bloch e Febvre havia repelido
a história fatual, a história militar e local; ela havia posto à parte os problemas
do político. Eis que, após a travessia necessária de uma história que se debruçava
sobre os movimentos profundos das estruturas, e sobre os choques mais bruscos da
conjuntura, voltamos, depois de ter compreendido melhor o que eram a economia e
a sociedade, a colocar os problemas da evolução política sob luz mais intensa".
O estudo
tripartido da sociedade medieval – "os que rezam, os que guerreiam e os que
trabalham" – permitiu uma compreensão mais nítida das correlações entre esses
estamentos sociais, sobretudo se pensarmos, como recorda Peter Burke, em A escola
dos Annales (UNESP, trad. Nilo Odalia, 1997), que tal concepção tripartida "foi
uma arma nas mãos dos monarcas, que proclamavam concentrar em sua própria
pessoa as três funções básicas". Burke salienta ainda que, para Duby, a ideologia
não deveria ser vista como um "reflexo passivo da sociedade", mas antes
como "um projeto para agir sobre ela".
Há uma
citação chave em Eva e os padres: "Não é aventurar-se demais comparar
a comoção das consciências determinadas pelo progresso da pregação à incidência
da mídia de hoje". As alianças políticas, por exemplo, se fundam no mesmo princípio
do matrimônio, ou seja, o de "extinguir as exaltações do desejo". Já não
se trata de pura e simples dialética. Duby recorda um tratado da época que considerava
três táticas: alcançar o amor, vivê-lo e livrar-se dele.
Então os
violentos impulsos da carne estavam definidos por outra instância. Que as mulheres
assumiam uma importância social tanto no resguardo de uma integridade matrimonial
(no caso das esposas dos cruzados) quanto na assunção de novas maneiras de ser,
nenhuma dúvida. A Igreja transformou em violência todas as afirmações ou descobertas
de uma condição inaceitável. A mulher não estava mais condicionada pelo papel determinado
pela Bíblia. O notório e alarmante paroxismo seria deflagrado nos séculos seguintes,
quando da perseguição e dizimação das bruxas.
Em O
diabo – a máscara sem rosto (Cia. das Letras, trad. Laura Teixeira Motta, 1998),
o ensaísta Luther Link anota que "a mudança isolada mais importante do início
do século XII foi a concentração de poder nas mãos do papa e do imperador",
logo considerando que "ambos deixaram de lado as desavenças e se uniram para
julgar e separar os povos da Europa em abençoados e condenados". Este é o momento
exato em que se estabelecem normas de combate ao que essas duas forças determinam
como sendo heresia. A carta de fundação seria o decreto Ad abolendam, assinado
por ambos poderes, na verdade um índice de hereges que deveriam ser buscados e condenados.
Menciono
tais fatos pela razão simples de que o quarto concílio de Latrão já tratava de fortalecer
as condições operantes da Inquisição, ou seja, em meio a todas as observações que
Duby faz em torno da condição da mulher já se desenhava um dos mais violentos períodos
da história da humanidade, comparável decerto ao extermínio de judeus no século
XX.
Em outro
momento caberia observar como a cantoria da época descobriu uma maneira de dizer
que a mulher caiu, mas que o fez com alguma honra. A arte quase sempre foi subjugada
pelo poder ou, quando menos, compactuou com a situação. Os artistas seriam tão indicados
quanto os clérigos para prestar depoimento aceitável acerca das mulheres. A história
tem sido invariavelmente escrita por homens. Qualquer menção a uma perspectiva da
mulher soa como blague. O homem segue sendo o feitor da história e a mulher sua
vítima. O tema naturalmente deixa em aberto o que se poderia compreender em termos
de um dualismo ainda hoje mal assimilado: masculino/feminino.
Duby conclui
Eva e os padres com uma frase reveladora: "foram eles que as deixaram
escapar". Mas não se refere à mulher em si, antes à metade amputada pelo castrador
conceito da Queda. Ele próprio diz que procurou "perceber melhor a maneira
pela qual os homens de Igreja representavam-se as mulheres". A representação
se dava em nome de uma nova Igreja que se reformava. Talvez tenha faltado a Duby,
neste livro, uma veemência no tocante à condição vilipendiosa da Igreja em relação
à mulher. Não uma falha propriamente, mas antes uma confessa vontade de ouvi-lo
a este respeito.
*****
Agulha Revista
de Cultura
# 13/14. Junho de 2001. Página ilustrada com obras de Hélio Rola (Brasil), artista
convidado desta edição especial de ARC.
Organização a cargo de Floriano
Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Hélio
Rola
Agradecimentos a Mhelena
Castro
Imagens © Acervo Resto do
Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais
da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia.
No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o
título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins.
Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de
Floriano Martins e Márcio Simões.
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