sábado, 21 de maio de 2016

GRACCHO BRAZ PEIXOTO | Duke Ellington, Pixinguinha: dois músicos, dois países


Acenando como um alento no tom geral da programação de um canal a cabo, recentemente assisti a um documentário em que Wynton Marsalis falava sobre os eventos em curso, desde abril e estendendo-se por todo o ano, nas instituições musicais e veículos de comunicação americanos, que celebram o centenário de nascimento de Edward Kennedy Ellington, o Duke Ellington.
Como um dos responsáveis por parte das comemorações, nos intervalos dos ensaios à frente de sua orquestra, Marsalis comentava a importância de Ellington para a cultura americana, aplicando-lhe o superlativo maior seguido de compositor do século. Poderia ser o depoimento exagerado ou parcial de mais um americano arrogante, mas não é. De fato, se fugirmos dos enquadramentos pequenos e saltarmos para uma visão de humanidade, algumas figuras se revelam monumentais, como uma insurreição contra o tempo e a morte através de suas obras. E neste penúltimo ano, de um século tão desconcertante quanto prodigioso nas artes e ciências, Duke Ellington surge em sua elegância impecável, unissonante na opinião de criadores notáveis de diferentes áreas, e obviamente também na de Marsalis, virtuose do trompete, que trabalha com atenção especial para a fronteira entre o jazz e a chamada música erudita. Em 1974, na festa de seu 75o aniversário, em seu último ano de vida, Miles Davis, o antigo Mr. Cool, agora no auge de seu controvertido sucesso pela adesão ao jazz-rock, arredio a elogios declara à revista Down BeatTodos os músicos deveriam um dia se reunir e agradecer de joelhos ao Duke.
Ao longo do programa, inevitáveis, vêm as conexões, as relações de um país com outro. E nós? Temos um músico dessa estatura? Afinal, não é comum se ouvir dizer que o choro é o jazz brasileiro? Como as sinapses são rápidas e o pensamento livre, Pixinguinha dá um alô. Pode ser uma pane no software ou mesmo um vírus nacionalista porque, de cara, para contrariar o cotejo, logo vem à mente o espantoso legado do autor de Solitude, entre outras milhares (isso mesmo: milhares) de composições, compreendendo canções, suítes, concertos, peças musicais, trilhas sonoras, arranjos para instrumentos, peças sacras, adaptações sobre música clássica, abrangendo enorme variedade de estilos, gêneros díspares ou afins. São cerca de 200.000 páginas catalogadas em seu acervo, em Washington, organizado por Mercer Ellington, seu filho e também músico, John E. Hasse e o Smithsonian Institution, constituíndo um manancial de anotações, partituras, arranjos, discos, fotos etc. à disposição dos estudiosos. Não é sem razão que John Edward Hasse, até hoje seu melhor biógrafo, usou uma de suas expressões preferidas quando queria elogiar alguém muito bom para o título de seu livro: Além das categorias - a vida e o gênio de Duke Ellington, trabalho de fôlego incomum, condensado em 480 páginas.
Sabemos que Pixinguinha não foi tão prolífico assim. Aliás, essa tarefa de contar obra de gênios é muito ingrata, até mesmo para os próprios. Guardadas as devidas proporções, apesar do trabalho obsessivo de Ellington (ele escrevia em hotéis, estúdios, trens, aviões), se houve perda de algum material, isso deve ter ocorrido com Pixinguinha, pois fica difícil dimensionar sua produção, inclusive pelo descaso com que se trata música no Brasil, excetuando-se o esforço de abnegados pesquisadores e músicos. Sua produção foi menor também por outras questões e porque, considerando diferenças de personalidade e tônus criativo. Enquanto Hasse afirma que aos 66 anos Ellington encontrava-se no auge de sua força criativa, Pixinguinha enfrentava problemas de saúde, com a velha manguaça, entre outros altos e baixos, como é mesmo que se diz?, fi-nan-cei-ra. Difícil acreditar, não? Mas se driblarmos a profusão criativa de Ellington para viabilizar o espelhamento entre os dois mestres, cai como uma luva o depoimento que Sérgio Cabral, no livro Pixinguinha, vida e obra, recolheu de Baden Powell sobre o seu biografado: É o compositor do século! Diz George Meredith, escritor e poeta inglês do Séc. XIX, em Últimas palavras de um sensível poeta medíocre:o gênio faz o que deve e o talento o que pode. Coube a Ellington e Pixinguinha fazer o que deviam.
Ellington veio ao mundo em 29 de abril de 1899, em Washington D.C., àquela época cidade muito procurada pelos migrantes negros devido à maior possibilidade de um emprego público, como também pelo recrudescimento do racismo no Sul. Seu pai, James Edward Ellington, migrante da Carolina do Norte com ginásio incompleto, fazia bicos como motorista e outras coisas, até conseguir coisa melhor como fornecedor de buffet para festas e cerimoniais na Casa Branca. Daisy Kennedy Ellington, negra bonita e bem educada, de classe média e colegial completo, fatos notáveis para a época, mimava o garoto como a uma jóia, encorajando-o com o melhor que podia. Profetizando, tornou-se hábito falar para o filho: Ed, você é um abençoado, você não tem nada com que se preocupar. Contribuíam, para esta aparente tranqüilidade, as fartas sobras de comes-e-bebes que o pai sempre trazia dos eventos. Já na maturidade, Ellington disse certa vez: ele nos tratava como se fosse milionário. Tendo iniciado os estudos de piano aos sete anos, Duke, apelidado por seu vizinho devido aos bons modos, viveu e incorporou ao seu caráter altivo e amigável o contexto social de sua comunidade.
Coube a ele aglutinar as informações oriundas do blues, o coração do jazz, para desenvolver, ao longo de 55 anos de duas carreiras simultâneas, como compositor/arranjador e como bandleader, um estilo único a partir das harmonias e sonoridades novas, facilmente identificável aos primeiros acordes, que se instilou nos inúmeros gêneros que cultivou, desde o exótico estilo jângal, em voga em sua mocidade, passando ao ritmo sincopado do ragtime e a tantos outros que se formaram a partir do entrelaçamento das culturas européia e africana nascidas na América, notadamente na região de Nova Orleans e no Deep South, expandindo-se para o mundo. Quebrou velhas regras musicais, criou novas e, como diz Marsalis em seu poema escrito ao mestre, não ficou escravo de nenhum sistema. Desde as primeiras obras-primas jângal, a partir de uma orquestra aos poucos formada no Kentucky Club, no Harlem em N.Y., com a participação de músicos talentosos, como o trompetista Bubber Miley, o trombonista Joe Tricky Sam e o sax-barítono Harry Carney, à sua mudança, após quatro anos no Kentucky para o ainda não lendário Cotton Club, também no Harlem, a música de Ellington estava destinada a encantar o mundo. Os jornais aplaudiam e o público vibrava com aquele som, feito por um timaço de craques. Miley arrasava, emitindo o growl com sua surdina, criando os mais estapafúrdios efeitos jungle style. Hasse conta que só nessa época do Cotton Club foram cerca de 200 discos gravados. Não devemos esquecer também que cada gravação podia levar até os dois lados de um disco.
Quando veio a Época de Ouro do Cotton Club, Duke e sua trupe encontravam-se em pleno gás. Eles também haviam provocado aquela onda conhecida então como o Ressurgimento Negro. São deste último ano, 1932, músicas hoje celebrizadas por retratar um tempo único na história da música. Com sua orquestra, gravou It don't mean a thing if ain't got that swing(em tradução livre: Sem aquele balancê não tem nada a ver), Lazy rhapsody (Rapsódia preguiçosa), incursionando pelas primeiras sonoridades impressionistas, em Blue Harlem e Sophisticated lady. Aqui as informações se avolumam. Vale a pena uma pausa para falar daquele nascidas dito atrás. E também porque Pixinguinha nos espera.
Pelo incrível número de celebridades que produziu, torna-se simples entender quão atraente e igualmente difícil dominar a história do jazz. Um engano comum é afirmar que a formação e a herança dessa música provém somente da cultura negra. Sobre isso, Eric J. Hobsbawn, entusiasta e estudioso do assunto (além de historiador eminente), escreveu em seu História Social do Jazz, a certa altura do livro em que situa os personagens deste teatro: (...) a música negra rapidamente passou a se fundir com componentes brancos, e a evolução do jazz é o resultado dessa fusão. O jazz surgiu no ponto de interseção de três tradições culturais européias: a espanhola, a francesa e a anglo-saxã. Cada uma delas produziu um tipo de fusão musical afro-americana característica: a latino-americana, a caribenha e a francesa. No caso de Ellington, por uma questão de justiça, devemos registrar aqui seu depoimento a um repórter a respeito de sua música: toda a minha música é negra. Noutra ocasião falou: todos os títulos de minhas músicas, eu os retiro da vida no Harlem.
Antecipando-se a Duke apenas dois anos, no dia 24 do mesmo mês de abril de 1897, deu o ar de sua graça o 18º filho de Alfredo da Rocha Viana e Raimunda Maria da Conceição. Funcionário dos Telégrafos, Alfredo sublocava para seus amigos músicos alguns cômodos no casarão de oito quartos e quatro salas, que ficou conhecido como Pensão Viana, onde moravam e por onde passavam em visita craques como Villa-Lobos, que de vez em quando acompanhava ao violão o velho Alfredo, flautista amador, Cândido Pereira da Silva, o Candinho, trombonista virtuose, Donga, que por toda vida acompanharia Pixinguinha, os inquilinos Irineu de Almeida (Irineu Batina por causa de uma sobrecasaca que ele não largava no pior verão), tocador de oficleide, bombardino, trombone e professor do garoto Alfredo, Sinhô, entre outros. Quando pegou na flauta usada por seu pai, já o acompanhava ao cavaquinho ou violão, juntamente com os irmãos, quase todos músicos. O fato é que, aos 14 anos, levado pelo seu irmão China, violonista e cantor, foi contratado pelo conjunto da Concha, famosa casa de chope da Lapa, estreando seu profissionalismo com a flauta caríssima que o velho Alfredo importou da Itália. 
A capital da República fervilhava com suas avenidas, bares, cafés, chopes cantantes e cinemas mudos, onde os músicos tocavam acompanhando a projeção. Ainda de calças curtas, Pixinguinha ganhara fama na cidade ao tocar no conjunto de uma casa, contratado para fazer concorrência ao sucesso do pianista da casa em frente, cujo nome era Ernesto Nazareth. A fama também vinha por logo depois ter entrado para a orquestra do maestro Paulino Sacramento, no teatro Rio Branco. Em plena apresentação, daria início às curtições particulares, fazendo improvisos, solos por fora da melodia, uma de suas características que, depois aperfeiçoada, passou a ser sua marca: contraponto e improviso.
Como em Ellington, nas palavras de Henrique Cazes, em seu livro Choro: do quintal ao Municipal, exímio cavaquinista dedicado à divulgação do choro, coube a Pixinguinha (...) partindo da música dos chorões (…) e misturando elementos da tradição afro-brasileira, da música rural e da sua variada experiência profissional, aglutinar idéias e dar ao choro sua forma musical definida. O choro, então, deixava de ser um jeito de tocar, surgindo como a mais genuína música instrumental brasileira, tendo-se estruturado em três partes, modulações e improviso.
Cabe aqui mais uma pausa curiosa para contextualizar jazz e choro. Por volta de 1900, data em que os historiadores são unânimes em afirmar como o nascimento do jazz, a licenciosidade do catolicismo francês no Sul foi responsável pelo surgimento dos creoles, mulatos americanos, filhos de franceses com escravas negras. Foram eles os primeiros bluesman a conquistar fama nos EUA, todos com nomes franceses. Constituíam uma classe intermediária entre os europeus e os africanos. Católicos sem ligar muito para a salvação das almas de seus rebanhos, o africanismo americano foi mais bem preservado no Sul, longe do protestantismo, onde surgiram formas mais híbridas, como o gospel e as revival songs
A mesma variedade e riqueza de instrumentos das bandas militares ou de agremiações francesas, onde se originou o Carnival, e onde até hoje se mantêm as divertidas bandas de Dixieland (Dixie, região do Sul), estiveram também presentes no Brasil com suas marchas etc. Em um país inteiramente católico, de colonização portuguesa, haja choro, samba, carnaval e mulatas… Seria até razoável se fosse somente isso o resumo da ópera, neste país onde o exercício diário de ler jornal é jogar ácido no estômago e ódio na alma.
Mas se Duke só começou mesmo a detonar por volta de 1924, no Kentucky, Pixinguinha, depois de ter ganho fama e passado por vários times de craques como o Grupo Caxangá (com Donga e João Pernambuco), formava com outras feras os Oito Batutas, uma banda que fez grande sucesso devido ao ecletismo do repertório para gregos e baianos e que, em 1922, com a ajuda de Arnaldo Guinle, mecenas amigo da turma, estreou, sob vários graus abaixo de zero, no Teatro Scheherazade, em Paris. O público francês, surpreso com aquela música ligeira e sincopada dos chorinhos e outros ritmos, estendeu a temporada por quase seis meses. Cá no Brasil, os senhores mais ilustres se diziam envergonhados com a presença desses músicos na Cidade Luz, denegrindo a já não muito boa imagem do Brasil. Lá, jornais enchiam a bola de Pixinguinha e seus companheiros. 
Em 1927, foi a vez da Argentina, de onde, após um desentendimento, o grupo voltou desfeito, dando origem aos Oito Cotubas, dissidência dos descontentes. Conta-se que, na temporada Argentina, até dinheiro faltou, porque o empresário… Quarenta horas de trem, depois de passar por Mar Del Plata, Mendoza, Rosário, Córdoba, Rio Cuart, a fome… Sérgio Cabral conta a história de um dos membros da trupe que tinha dotes extra-musicais e armou um enterro de mentira para ganhar algum, fingindo-se de morto!
A linguagem do jazz invadiu o mundo e o Brasil não era exceção. Pixinguinha fazia incursões pelo saxofone, Os Oito Batutas entravam também na onda do fox-trote para poder competir com outras bandas. Caprichavam naquele visual maneiro com bons ternos e gel no cabelo. De norte a sul, o país dançava com a algazarra do novo som. Unindo forças, Os Cotubas voltaram ao ninho e surgiu a orquestra Os Oito Batutas, com um som massudo, que tocava choro e jazz no repertório.
Como Pixinguinha, Ellington era também infenso ao estudo acadêmico, sistemático, embora o fizesse, dando-lhe um maior conhecimento para criar peças personalíssimas. Depois de escrever Sophisticated lady, em 1933, foi sua vez de conquistar a Europa. Em 1935, Benny Goodman esmerilha a chamada Era do Swing. O governo americano, ciente da revolução do jazz, patrocinava excursões de regentes, cantores, músicos e compositores por todo o mundo. Constatou que seu sucesso estava além fronteiras. Vieram obras-primas como In a sentimental moodBlue feelingReminiscing in time, peça refinada e sentimental composta, segundo ele, em lágrimas, após a morte de sua mãe, em 1935. Com 13 minutos de duração, englobando diferentes temas em uma só peça, ele radicaliza a experiência anterior de Creole Rhapsody, com frases de tamanhos assimétricos, surpreendendo com pequenos espaços para improvisações, ao invés de solos definidos. A música tem contrastes internos com melodias doces, harmonias complexas, porém suaves, e um sentimento de melancolia que predomina.
Ellington acrescentou nova virtude ao que entendemos por refinamento. Certa vez, tendo sua aparência minuciosamente descrita por um jornalista, do cabelo ao sapato, o jornalista finaliza: parece mais um conformista que um violador. Em outra ocasião, ele mesmo comentou, em tom de provocação: violamos mais regras musicais do que qualquer um! E que mudanças eram essas? Modificar combinações de timbres de sopros convencionados pela música clássica, colocando-os no jazz; desrespeitar a estrutura de chorus para lançar uma frase solta ou improviso; escrever para um instrumento em um tom não apropriado para este; criar climas a partir de combinações de dissonâncias. Tudo isso nada tem a ver com equívocos muito comuns em alguns músicos, para os quais ser bom é complicar. Não é o mesmo que explorar, aprofundar. E ele o fazia sempre sem prejuízo para as belas canções de simplicidade cruel, pensando nos cantores e cantoras. Entre irônico e gozador, certa vez sentenciou: nós não hesitamos em quebrar regras e criar outras novas, não temos seguido os fetiches de músicos sinfônicos. Temos ofendido alguns oficiosos, mas também fazemos novos amigos.
O sucesso era absurdo e o show business ganhava corpo e força. Em Chicago, em uma série de concertos, somou mais de 400.000 fãs. À cena de hoje, com o espaço para música orquestral, é inacreditável. Seria decadência ou somente mudança de ares? No Brasil, Pixinguinha já havia composto obras-primas, como Lamentos, o samba Gavião calçudo, que, junto com duas outras músicas, vendeu por um conto de réis para um certo F. A. Pereira, e Carinhoso, um choro ainda sem letra, de apenas duas partes, que no futuro seria feito por Braguinha, o João de Barro. Tom Jobim conta que, durante as gravações de seu disco Tide, ao terminar Carinhoso, os músicos vieram cumprimentá-lo, achando que fosse sua. Nos EUA, Duke realizava gravações a rodo e composições marcantes com Billy Strayhorn, jovem músico de enorme talento, cuja afinidade com Ellington era tão grande que os músicos não conseguiam discernir a autoria das composições e orquestrações. Foram parcerias que esculpiram a grande fase de Ellington. Billy Strayhorn morreu jovem, de câncer, deixando um enorme vazio. Considerados irmãos, foi um choque para Duke. 
É uma característica na vida dos nossos dois músicos o grande abatimento com a perda de amigos. Pixinguinha dizia que morria de medo de estar vivo e não ver mais seus amigos. Sofreu demais com as perdas de Jacó do Bandolim, que, aos 37 anos, teve um enfarte fulminante, ao chegar a sua casa, vindo de uma visita ao Pixinga e ao seu irmão China. Certa vez contou, em depoimento ao MIS, de um grande susto que experimentou no dia em que, inadvertidamente, chamado por colegas do IML, quando trabalhava como fiscal da prefeitura, foi olhar o corpo, na mesa de autópsia, de um músico achado à beira de um riacho. Era Ernesto Nazareth.
Cá no Brasil, as coisas são bem mais calmas, pois a grana é menor. Se Ellington era um homem refinado, podemos dizer que Pixinguinha era um homem fino. Unanimidade entre os que o conheciam era sua simplicidade cativante. Se aquele não dispensava um smooking, este só queria passar no bar do Gouveia (onde fora homenageado com uma placa de 10 anos de cadeira cativa, no aniversário de sua primeira visita), chegar a casa e vestir seu pijama. Sem deixar de ser igualmente elegante! Em sua maturidade, a cadeira de balanço e o mundo estavam em paz. Afinal, o rapaz começou no batente com 14 anos. Pixinguinha ganharia o status de Duke. 
Tendo-se instalado no Brasil, a RCA o contratou para reger e fazer os arranjos para a Orquestra Victor Brasileira. Muito trabalho e uma situação privilegiada lhe permitiam superar o sufoco que seus amigos estavam passando com a chegada do cinema falado. Sérgio Cabral chama a atenção para este fato: a contratação de Pixinguinha pela Victor representou a solução para um problema que a MPB, em geral, e o samba, em particular enfrentavam nas gravadoras, cujas orquestras eram constituídas e dirigidas por músicos estrangeiros. (…) Pixinguinha abrasileirou as orquestrações de forma tão nítida e radical que se pode dizer, sem medo de errar, que foi ele o grande pioneiro da orquestração para a MPB.
Faz justiça. Quem está pelos 40, deve lembrar de arranjos irresistíveis como aqueles metais das frases iniciais de O teu cabelo não negaA- la- la-ô que calor. Pixinguinha deu molho, colocando a cozinha em ordem com percussão bem brasileira. Pausa. Tio Faustino era um tremendo percussionista e boa praça que fazia parte do Grupo da Velha Guarda, outra banda montada pela turma. Convidados por Mr. Evans, diretor da Victor, que trabalhou muito tempo com esses compositores e cantores, a Velha Guarda compareceu em peso. Tio Faustino havia criado sua própria percussão, batizando o instrumento com o nome de omelê. De formação técnica, Mr. Evans implicou com o som estridente, criando um impasse que só se resolveu quando tio Faustino, invocado com a situação, falou: se o meu omelê não gravar, vou sair daqui, matar um galo e oferecer para Exu. Quero ver quem tem o santo mais forte: eu ou esse americano!
Além das atividades na Victor, dirigia orquestras na Odeon, na Parlophon, na Brunswick (selo também de Ellington) e depois na Columbia. Havia também a orquestra especialmente para os carnavais com o nome de Diabos do Céu. Podia haver nome melhor? Em uma dessas gravações, estava lá com sua tuba, no estúdio, um rapazinho de Iguatu, interior do Ceará, que atendia pelo nome de Eleazar, Eleazar de Carvalho. Fez carreira internacional, estudou com Zubin Metha, regeu no exterior. Foram amigos. Pixinguinha conta que a turma toda saía para tomar umas e ele ficava na sua. Depois, tornou-se conhecido seu desprezo pela música popular.
Ellington enfrentava dificuldades com o crescimento da música comercial e as mudanças no mundo do entretenimento. Não só ele como todo o mundo do jazz: Charles Mingus, outro excepcional, Count Basie, Benny Goodman e tantos mais. Tal fato traria novas transformações. O pessoal chamava de música do Mickey Mouse, entediado pelas harmonias e ausência de improvisos. Chegando a um meio termo para segurar a onda, faz modificações no repertório. Pessoalmente, imprimia mais um salto qualitativo em sua produção e na consolidação da carreira, como aquele que empurrava à frente o horizonte do jazz. Durante os anos de guerra, vieram Black, brown and beige, considerada outra masterpiece sobre a saga negra na América, além de Deep South, de 1943, e Perfum suite, de 1945, para apenas ressaltar as mais célebres. Em seu retorno à Europa, em 1950, a aclamação vinha dos públicos do jazz e do clássico. Em 59, concluiu sua versão jazzística para o Quebra-Nozes, de Tchaikovsky. Os anos 60 não foram diferentes, durante os quais trabalhou com Ella Fitzgerald. Governos faziam encomendas de composições, uma delas a Suíte liberiana, para o centenário da pequena República Africana.
Em 1965, realizou um velho sonho, voltando à Grace Cathedral, para apresentar o Concerto Sacro para milhares de fãs. O público gostou, mas as autoridades da Igreja Batista o chamaram de profanador. Na Inglaterra, houve grande receptividade. Em 66, excursiona com sua amiga Ella pela Europa. Em 68, segue em turnê pela América do Sul, de onde depois viria a Latin American suite. Em 1969, em seu 70º aniversário, Nixon lhe oferece um jantar na Casa Branca, entregando-lhe a Medalha Presidencial da Liberdade, a mais alta condecoração civil, e no mesmo ano, Nelson Rockfeller, governador de Nova York, declara o Dia de Duke Ellington. Empreendeu uma série de viagens com sua orquestra, incluindo uma excursão à União Soviética e a Londres, onde tocou o Terceiro concerto sacro. Era um pique exagerado para uma orquestra, cujos componentes se encontravam entre 60 e 70 e poucos anos.
Pixinguinha fizera incrível sucesso, levando Orlando Silva ao ápice cantando a valsa Rosa, aquela que diz: Tu és divina e graciosa… popularizada em nossos dias pela bonita gravação de Marisa Monte. Seu letrista, Otávio de Souza, era um mecânico que pouco aparecia pela turma, morrendo jovem. Foram muitos os trabalhos na orquestra que dividia com Radamés Gnatalli, o qual gostava de chamar a atenção para os contrapontos do flautista. Contava que, em certa ocasião, quando estavam ensaiando uma música em uma Rádio, Pixinguinha entrou no estúdio caneado e fazendo outra melodia em cima da melodia.
Pixinguinha gostava de chamar seus arranjos de Choro Orquestral, com formação instrumental idealizada por ele e que passou a ser uma linguagem da música brasileira. Como compositor, só encontrou alguém para solar suas músicas, além dele: Benedito Lacerda. O choro Por Que Sofres? Com 148 compassos era uma delas. Urubu malandro, Um a zero, hoje peças clássicas do gênero. Amigos até debaixo d’água, este era sua cara-metade. Quando Pixinga voltou a passar maus momentos com as prestações de sua casa atrasadas, sensibilizado, Lacerda, de ótimos contatos, conseguiu da editora Vitale adiantamento por futuras gravações que resolveu a situação. E da RCA, obteve o contrato por 25 discos com ele e Pixinguinha. Em troca, seria agora o seu parceiro em todas as músicas que ele gravasse. Humm… Bem… Ora, ora.
Na dupla com Lacerda, na Rádio, assumiu o saxofone, porque suas mãos trêmulas já não atendiam a habilidade que a flauta exigia. Depois que trocara a flauta pelo sax, nunca havia dado uma explicação, nem ao público nem aos amigos. Até o dia em que insistiram e ele se saiu com essa embromação: Um dia cismei que não tocava mais como queria. Comecei a ter medo de que notassem os defeitos que eu notava em minha execução. Tempos depois, vi uma imagem de São Francisco de Assis falando aos peixes, que botavam as cabecinhas fora das ondas para ouvir o Santo. Pensei: Pixinga, você já tocou em um navio e os peixes não botaram a cabecinha de fora. Você precisa aprender mais flauta, Pixinga. Parei com medo de ficar doido. Em uma entrevista, falou: Um dia vi que estava demais e resolvi parar. Quando cheguei no armazém o dono abriu a garrafa e eu, cheio de tristeza, olhando para ela decidido a não tomá-la, pedi um papel. Foi a ocasião em que fiz aquele chorinho Briguei com Virgínia. Virgínia era o nome da cachaça. Era esse o homem. Ou a criança.
Era a época de ouro da Rádio Nacional. Na Rádio Tupi, carnavais e programas de auditório revelavam novos nomes, novos compositores. Pixinguinha escrevia arranjos, melhorando as músicas apresentadas, em um convívio sempre muito próximo com os jovens músicos. Se vocês repararam nos nomes das composições da época, dá para imaginar o clima de informalidade e molecagem: Fica calmo que aparece, André de sapato novo, Proezas do Solon, Aguenta, seu Fulgêncio, Isto não é vida, Cangote cheiroso, Não sou mais trouxa, Manda brasa... Esta última, aliás, foi feita porque, quando estava no hospital, toda vez que a enfermeira chegava com seu prato preferido, carne assada, que era também seu apelido, ela dizia: manda brasa, Pixinguinha. Na juventude, quando toda a tropa foi expulsa de uma pensão por causa da música incessante, levando suas tralhas, foi tocando até à nova moradia. Ao ver a turma, o português sentenciou: Aqui vocês não ficam.
Duke Ellington morreu em 1974, Pixinguinha em 1973. Um aristocrata, o outro boêmio. Um escultor e desbravador de sonoridades, o outro poeta das melodias, virtuose da flauta. Mas a comparação não deve ser total. São dois mundos diferentes, dois países. O fato é que o jazz se consolidou mundialmente, ramificando-se em diversas linguagens, já que é uma obra em progresso. Desde sua pré-história, do blues ao swing, do bebop aocool, do hot à fusion, gêneros fundados por gênios, o jazz criou em seu torno uma indústria que faz a retroalimentação permanente, com publicações sérias, formação de críticos, programas em rádio, TV, gravações, festivais, escolas musicais etc. 
Como obra aberta, o jazz tende sempre a crescer e criar novas linguagens. Hobsbawn desfaz outro mito, quando prova que, à exceção dos cantores, a quase totalidade dos músicos de jazz, negros ou brancos, vem da classe média com acesso ao estudo. Nas décadas de 50 e 60, trabalhando com o pianista e orquestrador Gil Evans, considerado por Ellington uma das maiores personalidades do jazz, Miles Davis fez discos hoje históricos, como, por exemplo, Sketches of Spain, um trabalho magnífico sobre o Concerto da Aranjuez, entre outras peças. O choro, por maiores que sejam os esforços de excelentes músicos, hoje não se configura como presença marcante. Se comparamos a discografia de um e de outro, fica simplesmente risível. A grande revolução da música brasileira ocorreu com a bossa-nova, fusão do nosso sotaque ao violão de náilon com as dissonâncias do jazz. E que hoje também parece exaurida, sendo mais interessante o que se cultiva dela no exterior.



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Gracco Sílvio Braz (Fortaleza, 1954). Compositor. Agulha Revista de Cultura # 1, Agosto de 2000.

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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Alberto da Veiga Guignard
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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