Em 1997, a
FUNARTE, órgão cultural vinculado ao Ministério da Cultura, promoveu uma série
de entrevistas por Roberto Piva, intituladas “Meditações de Emergência”. Uma
delas, comigo, foi realizada em 31 de março. Essas entrevistas estavam disponíveis no site da
FUNARTE, que parece ter sido desativado. Por isso, resolvi torná-la disponível
na Agulha Revista de Cultura, a bem de pesquisadores e outros
leitores a quem tudo isso pode interessar. Acrescentei notas, tornando-a mais
inteligível para quem não acompanhou os acontecimentos em São Paulo na década
de 1960. Muito do que está registrado na primeira metade desta entrevista
também pode ser encontrado em outros lugares, especialmente no documentário Uma
outra cidade, de Ugo Giorgetti, e na longa entrevista comigo feita por
Floriano Martins, gravada em Espéculo. Já a
segunda metade contém material mais virgem, menos divulgado. [C.W.]
RP - Estamos com Claudio Willer, poeta,
tradutor, ensaísta. Willer, eu queria que você começasse dizendo daquele começo
dos anos 60, em que víamos muitos filmes japoneses na Liberdade [1]; em que
você tinha um veleiro em Eldorado, na represa… que você contasse para as
pessoas um pouco daquela época, do seu ponto de vista. Aquele período, para o
pessoal entender a gestação do seu primeiro livro, que foi Anotações
para um Apocalipse.
CW - Então, vamos por partes, pois isso é um
monte de coisas. Nos anos 60, realmente havia um ambiente cultural muito
interessante em São Paulo, composto por artistas de vários tipos, poetas novos,
e tudo isso gravitava bastante ao redor do Massao Ohno e da Coleção Novíssimos.
Eu já conhecia o Piva antes, mas muita gente com a qual viemos a ter amizade,
até criar uma espécie de grupo ou confraria, nós conhecemos naquele contexto,
direta ou indiretamente ligado à Coleção Novíssimos. Conheci o Piva mais ou
menos em 59 ou 60, e já tinha ouvido falar dele antes. O Piva já era bastante
famoso. No colégio onde eu estudava, o Dante Alighieri, eram muito comentadas
algumas façanhas e características do Piva.
Naquela época, de repente me enturmei com um
bando de excêntricos, o André, o Irco, o Feto. Era uma turma que dedicava
metade do seu tempo a ouvir ópera e a outra metade a armar confusões. Conheci o
Piva quando estava num bar com o Irco, o Olé, e o convidei para uns grupos de
música que eu organizava na ACM [2]. Ele foi ver o que era, e disse: “Vamos
fazer um ciclo, uma série de poesia!” Aí, você (Piva) chamou várias pessoas
para falar sobre poetas. Acabou você falando sobre Sá Carneiro, eu sobre
Augusto dos Anjos, o Salinas abriu sobre Antero de Quental, o De Franceschi
sobre Cruz e Souza…
RP - O Victor Knoll sobre Murilo Mendes…
CW - O Paulo del Greco sobre Drummond, e não
lembro mais quem sobre quem.
Bom, naquele grupo apareceram pessoas com quem
viemos a ter contato regular, como Décio Bar, Carlos Felipe Moisés e mais esse
pessoal que já citei. Na época, São Paulo tinha um centro, e um ponto aonde
todo mundo convergia, atrás da Biblioteca, onde havia o mitológico Paribar, e o
Leco ou La Crémerie, que era mais o ponto da minha turma, e onde, algum tempo
depois, foi aberto o Barroquinho, onde lancei meu primeiro livro de poesia e você
o seu segundo livro de poesia.
RP - Que foram respectivamente Anotações
para um Apocalipse, que tem prefácio meu, e Piazzas. Nós
lançamos no Barroquinho, que era do Zilco Ribeiro, que foi um grande diretor de
teatro de revistas, da linha daquele Silveira Sampaio, e ele foi, aliás,
assistente do Silveira Sampaio.
(público) - Quando a Galeria Metrópole foi
inaugurada? Lá tinha o Ponto de Encontro, também?
CW - A Galeria Metrópole foi inaugurada em 63.
Na verdade, freqüentávamos o lugar desde 59, porque já havia o Leco e o Barba
Azul, o Paribar, muito anteriores… A gente percorria aquele pedaço, que ia
desde aquele bar de cineastas perto da Sete de Abril até a outra esquina,
fazendo o circuito do Paribar, do Leco e do Barba Azul.
RP - Com paradas magníficas no Hotel Cambridge,
por causa da bossa nova, né?
CW - Isso foi em 64. O Cambridge com Alaíde
Costa, Pedrinho Mattar e Johnny Alf.
Uma coisa muito certa, dita em um ciclo sobre a
década de 60 que fizemos algum tempo atrás, foi sobre a viabilidade econômica
de viver naquele tempo. Uma parte de nós trabalhava em emprego que dava pouco
dinheiro; outra parte recebia mesada, e outra nem isso. Mas dava, por exemplo,
para ir ao Cambridge Bar, quase toda noite, durante uma época, ir com uma
namorada minha da época, me provisionar de três ou quatro Tom Collins -
tomava-se muitos drinques, coquetéis - e ficar ouvindo Alaíde, para depois
completar o restante da noite. Então, o orçamento da gente agüentava essas
coisas. Outra coisa que havia era justamente isso, de São Paulo ter um centro.
Evidentemente, São Paulo era extremamente provinciana, e nosso antiburguesismo
militante tem a ver com o grau extremo de caretice, de moralismo, de
provincianismo da burguesia paulista da época… isso foi se dissolvendo ao longo
dos anos 60, depois, naquele período mais contracultural. O pessoal de hoje não
imagina os níveis de caretice da época.
RP - Era um horror!
CW - Em 59, por exemplo, foi quando um filme
como Les Amants, do Louis Malle - tinha uma cena em que eles estavam
transando, e não aparecia nada, aparecia eles dando as mãos, o que significava
o orgasmo - deu em censura, em polêmica sobre o filme, e por aí afora.
Mas, com tudo isso, ao mesmo tempo havia essa
coisa de um centro, de lugares aonde você iria sabendo que ia encontrar as
pessoas… o que se perdeu bastante. Quero dizer, houve um ciclo de lugares
assim, e o último deles, já nos anos 80, foi o Pirandello na Rua Augusta, mas
hoje em dia não há mais lugares ou espaços referenciais. Conseqüentemente,
perde-se a dimensão da disponibilidade. Hoje, quando você sai para ir a algum
lugar, é um programa, ou seja, você marca, você combina… Naquela época - isso é
uma dimensão de que eu trato um pouco em meu livro Volta, mesmo
falando mais da Paris do começo do século do que de São Paulo - podia-se sair
sem ter nada marcado, sair ao acaso, e para mim isso era fácil, pois eu morava
em um apartamento no Viaduto Major Quedinho, a quinhentos metros desse lugar
que descrevi. Podiam acontecer os encontros, os episódios mais inesperados,
desde conversar com amigos até conhecer alguém, ou até mesmo se envolver em
aventuras que lembram alguns filmes da época, da Nouvelle Vague, do cinema
italiano. Por exemplo, Os Primos de Claude Chabrol… aquela
festa! Aquela festa naquele apartamento crepuscular, Jean-Claude Brialy segurar
aquele castiçal, botar a mão no peito e começar a declamar: “Oh, meine mutter!”
- naquela festa, nós estivemos… houve bastante daquilo.
Dolce Vita de Fellini, na segunda vez em que o vi,
tive a impressão de que havia estado naquelas festas, e já não sabia mais se
era por causa da primeira vez em que havia visto o filme - que me impressionou
muito - ou se estava reconhecendo lugares onde tinha estado, por exemplo,
aquelas festas do Albertito Martino, naquele casarão de Higienópolis.
RP - Exatamente! É até anterior ao Dolce
Vita.
CW - É, mais ou menos em 60, por aí. Eram muito
parecidas com aquelas festas naqueles palácios antigos, como em uma das cenas
do Dolce Vita. Até os papos, as conversas daquele pessoal de Dolce
Vita, no apartamento daquele intelectual que depois se mata, são muito
parecidos com gente que também conhecemos.
RP - E que se matou, inclusive.
CW - Então, estou tomando a referência
cinematográfica, porque é mais fácil alguém pegar o vídeo e ver. Até coisas
mais bravas ou mais pesadas, lembrando filmes como A Longa
Noite de Loucuras (La Notte Brava)
RP - Com o roteiro de Pasolini…
CW - …e direção de Bolognini. É um bando de
garotos completamente loucos.
Público - E Os Trapaceiros?
CW - Os Trapaceiros, quando passou
em 58, foi impactante, embora fosse um filme moralista. Foi com isso que a
Nouvelle Vague rompeu, pois nela havia filmes que mostravam essa juventude
transgressora, e que eram a favor da transgressão.
RP - Exatamente.
CW - Veio tudo de uma vez só, tanto a revolução
formal de Alain Resnais, o Mariembad e Hiroshima,
quando a subversão do conteúdo de um filme como Acossado (À
bout de soufle) de Godard. Evidentemente, um filme de que gostamos
especialmente, com aquele esplêndido anti-herói, um negócio que não existia
antes. O que fazíamos e com quem convivíamos era muito parecido com o que está
naqueles filmes. Não por acaso, pois a cinematografia europeia, em comparação
com a americana, trouxe a vida, a vida imediata, a vida que as pessoas viviam,
para o cinema. Era uma realidade muito próxima a nós. Isso, além de uma série
de referências também presentes nesses filmes franceses: é evidente que Sartre,
com todas as restrições que tenho a ele, na época era um autor referencial, e
um monte de gente se dizia existencialista - a série Os Caminhos da
Liberdadeera encontrada na biblioteca de todo mundo - e quando Sartre veio
ao Brasil, eu e o Piva fomos vê-lo no Teatro João Caetano e no Cultura
Artística. Tanto é que você (Piva) me apresentou ao Salinas nos seguintes
termos: “Esse é o cara que se trancou por três semanas em seu apartamento para
ler e estudar O Ser e o Nada.”. Você me apresentou o Salinas nesses
termos. (risos)
Para exemplificar, éramos capazes de ir à casa
do Vicente e Dora Ferreira da Silva, fazer uma leitura, capítulo por capítulo,
daquele livro de Heidegger sobre Hölderlin, sobre a essência da obra de arte. A
gente tinha um grupo de leituras…
RP - Eu fiz o Ser e Tempo.
CW - Quando o Piva diz: “Eu fiz o Ser e
Tempo”, já dá a ideia de um certo tipo de densidade cultural que coexistia
com esse ambiente, com a vida movimentada ou muito intensamente vivida que
tínhamos. Então, éramos capazes de começar lá mesmo, na casa do Vicente e da
Dora - Vicente era autoridade máxima no Brasil em Heidegger - e depois sair por
aí afora para armar todo tipo de confusão e, eventualmente, continuar até o dia
seguinte, de repente virar personagens do La Notte Brava, Giornata
Ballorda e coisas desse tipo. Havia disponibilidade, ninguém programava
nada, as coisas iam acontecendo, e havia uma comunicação muito grande entre
cultura e vida. Quando Zé Celso [3] fala, como falou na vez passada, quando fez
aquela crítica à USP, qual foi mesmo a expressão que ele usou?
RP - Universotário, coisa assim…
CW - Então, talvez esteja se referindo,
justamente, a essa cisão acadêmica entre cultura e vida. Para nós, ler
Heidegger, ou de repente um puxar do bolso um poema que havia escrito e mostrar
para o outro, e ao mesmo tempo fazer tudo a que tínhamos direito, não eram
coisas separadas. Ao contrário. A descoberta de Allen Ginsberg foi reveladora
porque significava tudo isso. Sentimo-nos uma espécie de reflexo do Uivo de
Ginsberg, daquele painel geracional, Eu vi os expoentes da minha
geração destruídos pela loucura, e tal… nós vivemos isso também!
RP - É claro!
CW - Quanto ao cinema japonês, acho que fui um
dos iniciadores do modismo do bairro japonês, e levei para lá o Piva e vários
amigos meus. Havia quatro cinemas japoneses, e esse era o departamento de esteticismo.
Infelizmente, a cinematografia japonesa entrou em decadência… Eu vi séries
completas de Tomu Ushida, por exemplo, que é o máximo do esteticismo de filme
de samurai. Os sete filmes da série Myamoto Musashi, além dos três
da série Myamoto Musashi de Hiroshi Inagaki. Ou aquela série
da Espada Diabólica do Ushida, e por aí afora. Filme japonês,
principalmente no Cine Niterói, era toda semana.
O Massao Ohno está nisso desde o início, porque,
logo depois que conheci o Piva, o Massao lançou a Coleção Novíssimos, uma
coleção por assinatura. Tinha alguém que levava os livros em casa e as pessoas
pagavam, e aquilo viabilizava economicamente a série, na qual saiu um monte de
poetas.
Só para completar: por volta de 62, 63, houve
uma espécie de segmentação, e nós radicalizamos. Havia muitos poetas fazendo
muitas coisas. Então, teve umas leituras que o Eduardo Alves da Costa organizou
no Arena. Resolvemos fazer, então, a nossa leitura, uma sessão só com o nosso
grupo. Fomos você (Piva), eu, Rodrigo de Haro e o Décio Bar. E nós nos
especializamos mais ainda naquela fase de nos reunir regularmente, a fase do
Sérgio Lima. Duas pessoas que conviviam muito com a gente eram Rodrigo de Haro
e Sérgio Lima, mas alternadamente. Quer dizer, teve o período do Rodrigo de Haro,
aí ele desapareceu, e aí teve um período de nos reunirmos muito com Sérgio
Lima, e depois teve outro período em que Sérgio Lima saiu um pouco de vista e
quem reapareceu foi Rodrigo de Haro. Agora, afora isso, eram o Décio Bar, o De
Franceschi, o Regastein, o Ruggiero, o Guilherme de Farias, o Bicelli… o
Bicelli e a Maninha pouco depois, já em 64, 65…
RP - Aliás, quem me apresentou o Bicelli foi
você.
CW - Foi a Maninha quem me apresentou o Bicelli.
Daquele nosso grupo, inequivocamente, o pessoal
que escrevia, ou seja, Rodrigo, você, Sérgio Lima, De Franceschi, Bicelli e
obviamente eu, todos estão com produção aí, estão com obras. Então, foi um
período seminal, que não ficou só no caos existencial, pois houve também uma
troca de informações, importante para todos, e o início de um processo de
criação, de pessoas que estão escrevendo, cada qual a seu modo, com todas as
diferenças de estilo, de personalidade e de postura de cada um, mas que estão
produzindo, fazendo literatura de qualidade até hoje, e vão continuar fazendo
enquanto puderem escrever.
RP - E a casa de campo em Eldorado? E o barco?
Sábados e domingos, fins de semana, semanas inteiras de veleiro.
CW - Meus pais haviam comprado uma casa de
campo, e nos fins de semana em que eles não iam lá a gente se divertia bastante
(risos). Aquela vez em que o Bicelli ficou pré-comatoso, e aí nós vimos,
naquela espécie de abismo, pois era uma pirambeira até chegar à margem da
represa, lá embaixo, uns setenta metros de jardim, meio parque, e aí nós vimos
o Décio Bar e uma namorada dele transando em pé, pelados, iluminados pela lua,
duas figuras completamente brancas debaixo daquela garoa fina e gelada (risos).
Essas cenas são como flashes, certos lances de que a gente se lembra. É como se
fosse uma colagem, um filme sem história, uma seqüência não-linear onde vão
aparecendo cenas e situações.
Agora, o veleiro - era preto, categoria Vinte
Metros… foram episódios cômicos, o meu cronista, Bicelli, conhece as histórias
do veleiro. Tinha um amigo nosso, o Edmar, um colega de determinados tipos de
expedições do Piva, que se agregou a nós e comprou por sua vez um classe Star
branco. O meu veleiro se chamava Maldoror, o dele, ele apelidou de Mallarmé
(risos). O veleiro é circunstancial, mas era divertido.
RP - Nós tínhamos um amigo, criminoso juvenil,
delinqüente, o Li. Uma vez - ele (Willer) tinha um jipe - eu livrei a gente, de
dentro do jipe, porque ele queria matar uma pessoa de dentro do jipe, na curva
da São Luiz. De dentro do jipe, naquela curva, Basílio da Gama com São Luiz, e
ele disse: “Olha aquele cara!”, e puxou o revólver, uma 7:65.
CW - Era uma coisa que havia muito na época, o
bandido romântico. Li se comportava como um perfeito bandido e, ao mesmo tempo,
não só gostava de Baudelaire, mas sabia de cor as Litanias a Satã das Flores
do Mal. Chegou um momento em que realmente tivemos que parar, houve uma
série de coisas que nos fizeram desacelerar. Primeiro, de 64 em diante certas
coisas se tornaram mais perigosas, devido ao recrudescimento da violência policial
E também chegou um momento em que não dava mais, pois começamos a ser chamados
pela polícia para saber se tínhamos algo a ver com o que ele fazia. Aí,
cortamos. O banditismo romântico foi muito interessante, mas chegou uma hora em
que tivemos que cortar, porque, se não, iríamos ter aborrecimentos enormes.
(público) - Claudio, e o começo do grupo
surrealista?
CW - Na verdade, nós éramos um grupo surrealista
desde quando nos conhecemos. O Piva já conhecia bem, o Piva colecionava o
surrealismo, a revista La Brèche, por exemplo. Poesia surrealista
foi uma coisa seminal e formadora para todos nós. Agora, em 63, o Sérgio Lima
veio de Paris, havia feito estágio de um ou dois anos na Cinemateca Francesa e
participou pessoalmente, diretamente, do movimento surrealista. Conheceu André
Breton, subscreveu manifestos surrealistas, correspondeu-se com Breton e teve
contato com ele até sua morte em 66. Então, houve um período em que nós nos
reuníamos em grupo, regularmente, uma ou duas vezes por semanas, em um bar, no
estilo surrealista. Isso, essa fase sistemática de grupo, durou até 64. O grupo
explodiu, e eu acho que nós não poderíamos e nunca conseguiríamos formar o tipo
de movimento do surrealismo. Acho o surrealismo fundamental em dois níveis:
como criação, e isso é o que realmente importa, a criação poética; e como
movimento de ideias, como prosseguimento da rebelião romântica e tentativa de
unir a rebelião romântica à transformação da sociedade. A junção do mudar
a vida com otransformar a sociedade, de Rimbaud e Marx. É um
movimento de ideias que teve mudanças ao longo do século, e que é fundamental.
De tudo o que aconteceu naquele período vanguardista do começo do século,
evidentemente foi o movimento mais significativo, mais importante, e,
disparadamente, o mais consistente. Agora, para dar um exemplo, em 68, eu fui à
França… - aliás, houve um episódio engraçado, eu estava em Paris, era
fevereiro, e de repente dou de cara com o Zé Celso na Champs Elisées, fomos
almoçar, aí o Zé Celso comentou comigo, porque já havia acontecido O
Rei da Vela [4] e, obviamente, tínhamos gostado: “É, parece que tem um
negócio agora, chamado tropicalismo, e estão dizendo que eu faço parte dele,
que tenho algo a ver com isso.”
Público - O tropicalismo foi bem depois!
CW - Não. Foi em 67. Aqueles festivais do
Caetano e Gil foram no final de 67, e o tropicalismo foi em 68.
Daquela vez, Paulo Paranaguá, cineasta
surrealista, me levou à Universidade de Nanterre e havia um zunzum, um ambiente
de qualquer coisa acontecendo, porque os estudantes estavam começando a se
rebelar por causa de homem não poder entrar em alojamentos femininos: foi onde
se iniciou uma coisa que foi crescendo, até dar nas rebeliões de maio de 68.
Voltando ao surrealismo, Paranaguá me levou a
uma reunião do grupo surrealista, estava Elisa Breton, havia um monte de gente,
estavam os surrealistas da época. E depois fomos ao apartamento do Vincent
Bounure, uma das figuras de linha de frente, das mais ativas do surrealismo. E
houve aquela coisa do francês, o francês nesse ponto é meio parecido com o
português, de encarar o que os portugueses chamam de “polémica”, de começar a
discutir e não parar mais, eles são muito passionais. Então, por causa da
geração Beat…
RP - Eles têm grilos com isso aí. Tem uma parte
que não tem, o José Pierre.
CW - É. Eu achava a geração Beat uma referência
fundamental, e ele questionava seu valor literário. Isso deu uma discussão que
foi, digamos, das onze da noite até umas três da manhã, no apartamento dele…
RP - O que eu entendi na época, do que você
falou, me desculpe interromper, foi que esse grupo, Bounure, uma parte dele -
por exemplo: havia um cara chamado José Pierre, que achava que pop-arte,
Rauchenberg, eram continuação do surrealismo, e Alain Jouffroy, que era um surrealista,
achava que Beat Generation é continuação do surrealismo, e você pega textos do
Ginsberg, dos poetas Beats, aquilo é influência básica do surrealismo francês -
mas tem esse pessoal, esse Bounure, que por moralismo, ficavam falando que era
coisa de lama, que queria se sujar com a lama… Lembra de um negócio assim, que
ele falava?
CW - Bem, o que aconteceu foi que eu falei que
achava a Beat fundamental, decisiva como movimento, pois, de fato, foi a
primeira vez em que uma rebelião poética se transformou em movimento social, um
movimento coletivo mesmo, primeiro os beats e depois o ciclo da contracultura,
e eu achava que Ginsberg era um grande poeta e Kerouac um grande prosador, e
foi aí a divergência, na questão da importância literária. Aquela discussão
pegou aí.
Mas, de qualquer forma, eu acho o surrealismo
fundamental, e se formos, digamos assim, elencar os movimentos, as grandes
revoluções culturais, eu ponho o surrealismo em primeiro lugar. Agora, sempre
pratiquei uma certa heterodoxia, eu jamais poderia conviver com qualquer
espécie de ortodoxia. Sempre fui uma pessoa de fazer frentes, e nunca me meti
em nenhum partido ou organização específica, porque se tornam ambientes
fechados. Então, na minha poesia é evidente a identidade com o surrealismo…
RP - Beat generation!
CW - Mas com o surrealismo, quer dizer, eu mesmo
escrevo muito mais parecido, se for para fazer paralelos…
RP - Não. Eu queria dizer que a definição da sua
poesia, de acordo com o Pasolini, a minha também, provavelmente a do Bicelli e
outros… é magmática! Do magma do vulcão, que une minerais, cinzas, minérios e
vários elementos da natureza, no caso do magma, assim como nós unimos várias
correntes de pensamento da poesia. Você não acha isso?
CW - Com certeza. E, realmente, há essa ideia de
reunir, de um ponto de convergência… Voltando um pouco atrás na década de 60,
há um artigo meu que saiu na revista da Biblioteca Mário de Andrade, sobre
movimentos poéticos do começo da década de 60: embora antagonizássemos
fortemente o pessoal que nós achávamos que fazia poesias bem comportadas e que,
de fato, fazia uma coisa bem comportada, como era o caso do Lindolf Bell e
inúmeros outros poetas, tínhamos algo em comum. Primeiro de tudo, se definirmos
negativamente, com relação à ortodoxia e às concepções artísticas do Partido
Comunista, do Partidão, que eram extremamente dominantes na época; ou seja, com
relação à estética do nacional-populismo. Com relação, igualmente, ao
formalismo, à poesia concreta e às demais correntes formalistas que, de alguma
forma, surgiram como ramificações da poesia concreta. E, também, tínhamos em
comum duas características importantes: uma delas, a volta à poesia do “eu”, a
poesia na primeira pessoa. O poeta engajado, dentro da estética
nacional-populista, não está falando da subjetividade dele: está falando das
grandes lutas sociais. O poeta formalista também não fala dele: o sujeito, o
“eu”, está abolido em qualquer concepção formalista, seja de Eliot, dos poetas
concretos, de quem for. Então, aquela foi a volta à poesia como expressão da
subjetividade. Acontece que eram subjetividades diferentes em cada caso: a
nossa era uma subjetividade que incluía o inconsciente, o inconsciente
freudiano. Outra coisa, outro ponto em comum, também, foi o cosmopolitismo. Nós
éramos uma geração que, se for para contextualizar, estava dentro daquele
ambiente que caracterizou o governo Juscelino Kubitschek, de desenvolvimento,
de uma abertura, de uma internacionalização da economia. Sentíamos que São
Paulo viria a se tornar uma metrópole, como de fato se tornou. Um lugar com uma
espécie de diálogo ou de contato com o resto do mundo, e não aquela província
que São Paulo era na época. Então, tínhamos essa abertura, esse cosmopolitismo
de nos interessar pelo que acontecia no mundo todo e, evidentemente, por
manifestações com uma dimensão crítica, que significassem algum tipo de ruptura
ou subversão. Isso tanto podia valer para determinados modos de assimilar o
existencialismo, quanto para o surrealismo, quanto para uma Nouvelle Vague,
quanto para, sem dúvida alguma, e com muito destaque, para a geração Beat.
Estávamos antenados e sintonizados com o que acontecia no mundo e, olhando
retrospectivamente, sem dúvida éramos extremamente atualizados. Com relação ao
surrealismo, numa época em que se dava como certo que não existia mais, nós
antecipamos uma revalorização do surrealismo que aconteceria mais tarde. Com
relação à geração Beat, nem se fala! Fomos os primeiros no Brasil a falar disso
e, principalmente, não só a falar ou a cultivar uma exterioridade Beat, que nem
chegamos propriamente a cultivar, mas a ler, porque isso era o importante, a
ler Ginsberg, Kerouac, Corso, Burroughs.
A ponto de, por exemplo, aquela leitura, aqueles
espetáculos de leituras de poemas da geração Beat, que eu preparei junto com o
Décio Bar, em 67, terem sido uma coisa única e pioneira, mesmo. Foi no Teatro
da Rua, um teatro do Emílio Fontana onde era a boate Saloon, naquela galeria da
rua Augusta. Décio Bar tinha uma boa cultura teatral, havia feito os seminários
de Eugênio Kusnet no Arena. Eu fiz as traduções, nós preparamos os atores, três
atores alunos do Fontana, e ficamos alguns meses em cartaz, às segundas-feiras.
Bicelli - Na segunda apresentação já foi
proibido, foi uma luta junto com deputados para tentar liberar, você lembra?
CW - Na primeira apresentação. Na estreia. A
censura naquela época era muito grande, se bem que piorou pós-68. Perdi
bastante tempo com censores, tive sorte de pegar um dos menos mal-humorados.
Agora, na primeira apresentação, faltavam alguns certificados e quiseram
interditar. Então, dois políticos, amigos do Décio, o Perrone, esse da ECA, que
era deputado, e o Jacinto Figueira Júnior, o ‘homem do sapato branco’, amigo do
Perrone, os dois, o Perrone e o Jacinto estavam lá, intervieram e possibilitaram
que o espetáculo não fosse interrompido…
No final dos anos 60, em 1970 - época em que
traduzi Os Cantos de Maldoror - no pós-final de 68, houve um
refluxo que durou até 76, e o grupo se dispersou um pouco, a gente desacelerou.
Foi um período em que não publicamos, em que realmente havia um risco físico,
até em se aventurar em manifestações puramente literárias. Eu, se algum dia for
fazer autobiografia, faço um capítulo sobre as vezes em que não fui preso, ou
por um motivo ou por outro. Havia duas categorias de motivos pelas quais você
poderia ser preso, uma por causa de envolvimentos contraculturais, outra por
causa de política, até por ser amigo de alguém ou figurar na caderneta de
endereços de alguém. Houve gente que entrou em frias horripilantes por causa
disso. Então, tivemos um período, até o final dos anos 60, que foi muito rico,
muito intenso, mas que é um momento, um período circunscrito, limitado no
tempo. Houve outro período, depois, em que as coisas se tornaram complicadas,
além de assustadoras: saber que havia gente que conhecíamos sendo morta aos
poucos, ou saber que alguém, por alguma bobagem qualquer, de repente teria sido
preso.
Público - Você e o Salinas se falavam, esse
Salinas foi preso várias vezes?
CW - Foi. E a morte dele teria sido por um
aneurisma que ele contraiu na prisão, por o terem espancado, fica um coágulo,
dez, vinte anos depois, de repente estoura o cérebro do sujeito.
Houve também as próprias transformações que São
Paulo sofreu, esse descentramento, essa mudança do perfil da cidade. Eu não
reclamo, não sou nostálgico, do tipo querer voltar atrás no tempo. E a
caretice, o extremo moralismo da época, incomodavam muito. Basta dizer que, por
volta de 63, tivemos dois amigo internados em clínicas psiquiátricas, aparentemente
pelo fato de andarem com a gente. Quer dizer, parece que o motivo foi esse. Um
deles, nós destruímos o consultório do psiquiatra que o internou. O outro, o
*** [5] - eu entrei com um revólver naquela clínica psiquiátrica onde ele
estava internado.
CW - É, o ***. Inventei uma história para entrar
lá, de que eu ia internar alguém e queria ver a clínica. Eu estava com uma
Browning aqui, debaixo da camisa, e meu jipe parado bem na porta. Eles
mostraram quase tudo, a clínica toda, mas não mostraram o lugar onde ele
estava. Se mostrassem, eu puxava o revólver, encostava na cabeça do cara e
seqüestrava o *** tranqüilamente. A gente não conhecia limites, e eu teria
feito isso numa boa, tanto é que entrei armado. De qualquer forma, é impressionante,
e pego isso como exemplo de caretice. Quando…
Público - Não houve um outro seqüestro desses,
famoso na época?
CW - Ah, sim, aquele seqüestro! O da Lígia Otto
Jordan. Foi um enorme escândalo, quem sabe dessa história é a Lygia Fagundes
Telles.
Quando líamos aqueles impropérios do Artaud
contra psiquiatras, ou aqueles trechos anti-psiquiatras do Nadja do
André Breton, sabíamos muito bem do que eles estavam falando. É estarrecedor um
psiquiatra, um sujeito formado em medicina e que fez um juramento ético,
permitir-se esse tipo de coisa. Parece século XIX, e vocês vêem como foi o
tamanho da ruptura, de repente acontecer o contrário disso, Basaglia,
anti-psiquiatria, abrir tudo, fechar hospícios, e as novas modalidades de
terapia. Mesmo a psicanálise freudiana que se praticava na época era, para esse
tipo de psiquiatria, uma coisa subversiva, quanto mais terapia reicheana. E a
gente lia Wilhelm Reich, era leitura corrente. Realmente, aí há um antes e um
depois, onde antes, de um lado, a qualidade de vida era muito melhor, você
vivia muito mais tranqüilo, muito mais seguro, porém…
Público - Depois havia o seguinte, me parece:
com a diferença da época, as drogas eram diferentes também, não é?
CW - As drogas eram outras, a paranóia com as
drogas realmente se tornou pesada pós-68 também. Mas a gente nem se drogava
tanto.
Público - O que eu estou falando é o seguinte: é
que hoje, por exemplo, existe o crack.
CW - Esses alcalóides agora, se criou uma
cultura das drogas nas grandes metrópoles em geral, e não é só em São Paulo.
Você vai ao Hauptbahnhof (Estação Central) de Frankfurt, que é lugar de junkie,
e a lugares assim, é deprimente o que você vê. Lá os junkies são
mais de opiáceo, aqui são mais de alcalóides, mas, enfim…
Além dessa questão do dinheiro, de que tudo era
mais barato, e naquela época você podia fazer muito mais coisas com menos
dinheiro. Por outro lado, havia essa opressão pesada de uma sociedade burguesa,
e havia algo curioso: se São Paulo tinha essa coisa fechada, careta e tudo, o
Rio de Janeiro, com o qual a gente tinha algum contato, que era um Rio de
Janeiro de Posto 6 e Ipanema, já era um ambiente e uma vida mais aberta.
Embora, no meio de tudo, isso nós, em São Paulo, tivéssemos um certo tipo de
densidade - essa história das leituras de O Ser e o Tempo é
um exemplo, foi algo único.
(público) - Como o grupo do Vicente, que foi
único, não é?
CW - Foi. Mas não era só o Vicente, éramos nós
mesmos. Eu me lembro de uma vez, quando a gente estava começando a ter contato
e a se enturmar. Uma noite, no seu apartamento (de Piva), estavam o Salinas,
João Ricardo Penteado, Paulo del Greco, e, assim como a gente poderia ter saído
para jantar ou para beber ou qualquer outra coisa, você (Piva) puxou da estante
a edição da obra poética de Fernando Pessoa e lemos a Ode Marítima inteira,
cada um lendo um trecho em voz alta, e aquilo perfaz uma hora e pouco de
leitura de poesia. Fazíamos esse tipo de coisa com total naturalidade, sempre,
regularmente.
RP - Willer, fale do seu primeiro livro, Anotações
para um Apocalipse.
CW - O Anotações para um Apocalipse…
Eu sempre gostei de literatura e de escrever, agora, fazer poesia mesmo e achar
que era poeta, foi no contexto desse ambiente cultural. Durante uma época,
quando eu li Saint-John Perse, fiquei escrevendo um monte de poemas, aquela
coisa apoteótica, grandiosa, do Saint-John Perse, que é um poeta grandioso. Aí,
descobri Lorca, principalmente o Lorca do Poeta em Nova York. Em um
dado momento, isso tudo, leituras como, por exemplo, Henri Michaux; o Robert
Desnos do Libertè ou l’Amour, aliás, foi você (Piva) quem me
alertou para esse livro entre outras coisas, aquela narrativa em prosa poética,
que é um exercício de liberdade, isso tudo, e várias outras coisas que
estávamos lendo, se juntaram naquilo que eu senti como sendo um estilo meu, e
que deu na série de poemas em prosa que estão nesse primeiro livro, que saiu em
64. Massao Ohno, muito generosamente, chegou: “Willer, quero te publicar!”. E
publicou ao mesmo tempo o Piazzas do Piva; oAnotações,
que foi prefaciado pelo Piva, e que tinha também um manifesto, uma espécie de
declaração de princípios nossa, certas coisas muito precursoras, e que não eram
pontos de vista apenas meus, mas da gente, daquele grupo de pessoas. Por
exemplo, citava muito no manifesto aquela insistência do Allen Ginsberg na
ampliação da consciência, e essa ideia de uma crítica ao mesmo tempo ao
capitalismo, à sociedade burguesa, e ao Estado comunista, à URSS, a Cuba e à
Tchecoslováquia, de onde Ginsberg foi expulso, mostrando que nenhum dos dois
sistemas teria respostas para a questão da ampliação da consciência. Então,
citava aquilo que ele falava na entrevista da Eco Contemporâneo: A
ordem é: ampliar a área de consciência.
(Público) - Ele abriu o caminho para a nova era,
não é?
CW - É. Eu fincava muito o pé em uma posição que
está muito bem expressa em um livro que líamos na época, de um autor que eu
acho um dos grande pensadores do século XX, Octavio Paz. Para mim, Octavio Paz
está para a segunda metade do século XX assim como Goethe está para o final do
século XVIII, ou seja, como um daqueles grandes humanistas em quem convergem o
conhecimento, a lucidez e a criatividade de uma época. Ele nem havia escrito
outros livros que lemos depois; ele não havia escrito, por exemplo, Los
Hijos del Limo, Os Filhos de Barro. Já tínhamos a ideia, que está, a meu
ver, muito claramente expressa em O Arco e a Lira, da
poesia como revolução.
RP - Aliás, não sei se você conhece o discurso
dele na ONU, em que ele falava do surrealismo: “O Século XX será conhecido não
como o século do marxismo, mas como o século do surrealismo.” Um prêmio Nobel
ao surrealista, ao poeta da metáfora.
CW - Da metáfora e da imagem poética. É um dos
autores, que para mim, são fundamentais. Talvez nesse ciclo que vai haver aqui
também, oAutoria do Século, eu devesse ter pego, ao invés do Ginsberg -
Ginsberg, também é um belo tema para palestras, de quem eu falo com prazer [6]
- mas devesse ter pego o Octávio Paz, acho que não foi devidamente examinado
por aqui.
RP - Você leria um poema para a gente, do Anotações?
CW - Eu estou com vontade sabe do quê, Piva? De
você fazer um pouco mais de perguntas, e eu fazer um pouco de leitura de poesia
no final, na ordem inversa, pegando primeiro alguns inéditos e depois
retrocedendo até o Anotações.
RP - Então, esse foi o primeiro livro, o segundo
foi o Dias Circulares?
CW - O Dias Circulares… Olha, houve
uma coisa curiosa. Por algum tempo…
RP - O Dias Circulares é de… ?
CW - 76, foi lançado na Feira de Poesia e Arte,
no Teatro Municipal, e esse lançamento é o capítulo 2 do meu livro Volta,
onde mais ou menos eu relato como foi, e do qual o Piva fez parte muito
ativamente.
Houve uma coisa curiosa: de 68 até 75, durante
sete anos, parei de escrever poesia. Como poeta eu sou bissexto, escrevo pouco,
tenho ciclos de fazer muita poesia e ciclos que podem durar anos de não sair
nada. De um lado, foi um tempo em que a gente, nós dois e muitos amigos, nos
encontrávamos menos, naquele período bravo de repressão pesada. A gente voltou
a se ver mais naquela época de Feira de Poesia e Arte.
RP - Mas não por causa de repressão pesada. Eu
fui ser produtor de rock…
CW - Você estava na Sociologia [7], e eu tinha
empresa de pesquisa de mercado, e aí você reapareceu. E eu também dava aula na
USP. Esse negócio de carreira acadêmica, uma coisa meio trabalho, meio
atividade intelectual e meio diletantismo também, talvez me tivesse travado um
pouco, isso de estar com um pé em uma coisa e um pé em outra. Então, de repente
uma coisa mais burocrática, mais pragmática, trabalhar em pesquisa de mercado,
na hora que eu dividi, digamos assim, a coisa do trabalho e a coisa da criação,
a criação voltou. Pode ser isso, e pode ser também que eu sentisse os ventos de
abertura e de reativação do ambiente cultural soprando.
Mas eu sei que o Massao Ohno disse que me
publicava, ele sempre me publicou numa boa… Ele sempre foi extremamente
generoso comigo, considerando ser alguém que vive de publicar livros de poesia
e da remuneração desses livros, e não tem esquemas de vendas. Mas então ele
chegou: “Willer, vou te publicar, mas você me organiza o lançamento de uns
livros…”, e isso deu em um enorme acontecimento anárquico, que juntou milhares
e milhares de pessoas e mobilizou muitos artistas, não só poetas, mas artistas
plásticos, músicos, performers e coisa e tal. O livro, Dias Circulares,
peguei alguns poemas pós-Anotações, ainda da década de 60 - uma série
que eu acho muito bonita, gosto daqueles poemas em prosa - e alguma coisa que
estava fazendo recentemente, uma espécie de exercício de estilo, quase de
fragmentação da imagem, que depois fui juntando em um processo de criação muito
pessoal, onde de repente entrou algo que não havia antes em meus poemas, o
tema, a capacidade de fazer um poema de imagens, de associações livres e
espontâneas, e ao mesmo tempo escrever sobre um tema. Foram os poemas que eu
comecei a escrever em 76, que deram no Jardins da Provocação, que é
meu livro de 81; poema sobre Dashiell Hammett, poema sobre a morte de García
Lorca, poema sobre o mar, esse que eu transcrevo e conto como criei
no meu livro em prosa, Volta. Minha poesia sempre foi lírica, lírica
nos dois sentidos: lírica no sentido de poesia amorosa, e lírica também no
sentido que a palavra lirismo tem em teoria literária, como expressão do
sujeito. A poesia lírica é a poesia da expressão pessoal, diferenciada da épica
ou da epopeia; a poesia que está narrando ou relatando algo exterior ao
narrador. Mas, enfim, sempre fui lírico. De qualquer forma, pelo menos uma
parte dos poemas do Jardins da Provocação, até um poema descrevendo
uma noite orgiástica, aquela que houve depois da leitura da Livraria Lorca, e
coisas desse tipo, é de poemas quase narrativos, e ao mesmo tempo também com as
características dos poemas em prosa do Anotações para um Apocalipse e
do Dias Circulares. É como se houvesse um processo de criação, onde
comecei sem tema nenhum e criando só com imagens; no Jardins da
Provocação já tenho vários poemas temáticos, e agora fiz uma narrativa
em prosa, Volta, onde estou contando uma história. Se bem que é uma
história não-linear, e que, ao contrário do que se espera de uma história, não
chega a lugar algum. É uma história, uma narrativa, mas tem uma estrutura de
poema, já que ela é circular, não-linear, e o discurso é linear, tem uma
seqüência. Como diz Octavio Paz: O discurso vai em linha reta e a
poesia se move em círculos. Nesse aspecto, minha narrativa em prosa tem
estrutura poética, embora os textos sejam em prosa, e até haja textos
ensaísticos, mas também textos em prosa poética. O que não me impede de estar
escrevendo poemas também, evidentemente diferentes, pois você nunca escreve
igual, mas com características semelhantes aos poemas que eu fazia na década de
60, e também poemas temáticos, e pretendo reunir tudo, tenho vontade de fazer
uma espécie de Selected Poems com esses poemas recentes e uma
boa parte do que tem no Jardins da Provocação, no Dias
Circulares e no Anotações para um Apocalipse. Vai se
chamar Estranhas Experiências, e talvez eu publique este ano, se eu
conseguir sair desta coisa interminável que é preparar a obra completa do
Lautréamont, que eu não consigo parar, estou até tirando férias da Secretaria…
[8]
CW - Quando eu conseguir terminar. O Samuel León
(Editora Iluminuras) está preocupado, porque estou complicando a programação
dele, que significa programar gráfica, revisor e tal. Já era para ter entregue,
mas não consegui parar.
RP - Mas você não consegue parar o quê?
CW - O ensaio… Eu fiz duas traduções do
Lautréamont, a de 70 e a de 86, e havia feito prefácios e, já que estava
citando autores, resolvi citar corretamente, dizer de onde eu havia tirado,
assim: Lautréamont de Gaston Bachelard, Librairie José Corti,
Paris, 1934. Fazer uma coisa decente em matéria de informar direito o leitor. E
isso foi aumentando, pois é claro que eu tenho mais coisas para falar sobre
Lautréamont agora do que tinha antes. Esse prefácio virou quase um livro, se eu
detalhasse mais um pouco virava livro. Do jeito como está, vai dar quarenta ou
cinqüenta páginas, só o prefácio, e o troço todo vai dar quatrocentas páginas.
De qualquer modo, há uma tradição de Lautréamont ganhar prefácios imensos, o de
Maurice Blanchot, Lautréamont et Sade, foi publicado como livro e
também como prefácio de uma das edições da Obra Completa, não
lembro se a de José Corti ou qual delas.
RP - Falávamos do Dias Circulares. E
o Jardins da Provocação, é de quando?
CW - É de 81. Aí, entrei em um período de
escrever muito, muitos poemas. Tem até coisa que sobrou, que está engavetado e
talvez eu publique. E foi essa coisa de juntar a criação espontânea, a criação
imagética surrealista, e o tratamento do tema. Também coloquei um manifesto com
algumas ideias, inclusive a ideia do poder mágico da palavra poética, que
tentei traduzir nos termos da semiologia e da teoria literária, e hoje acho que
esse texto ficou um pouco acadêmico. Então, retomei isso nesse livro que eu
escrevi agora, Volta, de uma forma mais clara. Quer dizer, a
relação entre magia e poesia, onde a poesia é magia.
RP - Como assim?
CW - O incidente fulcral, que é central nesse
meu livro, Volta, é a história de André Breton no Amor
Louco. Ele conhece uma mulher que era dançarina, que tinha um número que
era muito comum nos cabarés na França, de mergulhar em um aquário e ficar se
exibindo dentro dele. Ele havia estado em um restaurante antes, onde havia
ouvido o seguinte trocadilho: Ici l’on dîne (aqui se
janta.), Ici l’ondine (aqui a ondina). Aí, ele percebe que
essa mulher era a ondina, pois estava dentro d’água, era aquática. Marca um
encontro depois de ela sair do cabaré, faz uma caminhada com ela, saindo de
Montmartre, percorreram um pedação de Paris, daquele pedaço de Place Pigalle
até a zona do Quartier Latin, e o trecho que vai do Les Halles, passando pelo
Hôtel De Ville, atravessando Notre Dame, entrando no Quartier; e ele percebeu,
depois, que tudo isso estava referido, que havia um monte de alusões e de
referência até claras a esses lugares e situações em um poema que havia escrito
muitos anos antes, em 1923, Girassol, Tournessol. Então, ele
havia feito, sem perceber, um poema profético.
RP - É curioso, o Ginsberg tem um poema para o
girassol também.
CW - Ginsberg tem o Sutra do Girassol.
E também tem episódios assim na biografia dele, de poemas que depois se
transformaram em acontecimentos, de experiências de revelação ligadas à criação
poética. Você tem uma conexão, magia e misticismo, evidentemente magia é uma
coisa, e misticismo é outra, e ocultismo é outra, mas elas se comunicam, e
poesia de outro lado, que é riquíssima. Então, eu pego duas situações ou dois
exemplos, e coloco um ao lado do outro. Um deles, é o caso da poesia que vai
chamando a magia. É evidente que os surrealistas gostavam de magia, gostavam de
ocultismo, gostavam de astrologia, estudavam, mas não eram iniciados.
RP - O Artaud era, veja o Taraumara.
CW - Não. Aí é que está, ele se iniciou depois,
à maneira dele, no rito Taraumara, que é outra coisa, outro departamento, que é
justamente o xamanismo. Os surrealistas tinham as referências culturais daquela
tradição ocultista ocidental, dos Iluminados, de Martinez de
Pascalis, uma tradição que começa no final do século XVIII e provavelmente
continua até hoje, e que foi fundamental para Baudelaire, para Gérard de
Nerval, principalmente para os simbolistas. Mallarmé talvez fosse um iniciado,
e os simbolistas liam, estudavam e freqüentavam grupos iniciáticos, um tipo de
ambiente que é muito bem retratado naquele livro do Huysmans, Lá Bas,
um autor que Breton adorava, diga-se de passagem. Enfim, havia tudo isso, mas
os surrealistas não eram iniciados, e nem poderiam ser, pelo caráter anárquico
do surrealismo. O que acontecia muito era de os poemas terem uma face, um
componente mágico - como foi nesse caso que contei, do Girassol -
ou ocorrerem coisas meio mágicas, meio sobrenaturais na vida deles, mas fora
dos quadros da disciplina iniciática. Então, eu os coloco frente a frente,
diante de exemplos de poetas iniciados como Yeats, um poeta grandioso, eu acho
a poesia dele luminosa. Sem dúvida, numa época de movimentos vanguardistas,
Yeats é um tradicionalista, eu digo que é como se fosse um poeta do século XIX
que invade o século XX. Pois Yeats, desde o começo, freqüentava mesmo: começou
freqüentando Madame Blavatsky, depois a Ordem da Aurora Dourada, e depois mais
uma de que eu não me lembro agora. E há uma coisa curiosa na poesia do Yeats,
ele melhora à medida que vai avançando no esoterismo; além do que, a poesia
dele é consciente e propositadamente esotérica. Yeats deixou claro que não se
devia ler sua poesia apenas como operação com símbolos esotéricos,
principalmente com símbolos do Tarô, mas ele fazia isso, e fazia
propositadamente. Aquele pessoal da Aurora Dourada trabalhava muito com o Tarô,
assim como os maçons e outros grupos iniciáticos mexem muito com o Tarô e os
arcanos, e Yeats usava essa simbologia nos seus poemas. Foi um poeta esotérico
mesmo, fazia poesia hermética e ocultista, embora não se deva reduzi-la apenas
a uma transcrição do ocultismo ou esoterismo. Com isso, melhorou como poeta, e
cresceu à medida que se aprofundou e ganhou graus de iniciação. Aquele episódio
espantoso do livro dele que sua mulher escreveu, A Vision -
ela escrevia em transe, em escrita automática, e, ao mesmo tempo, se pegarmos
os ensaios do próprio Yeats e as suas ideias anteriores a esse livro, ideias
sobre a busca de uma tipologia humana com base esotérica, então A
Vision é o que Yeats estava tentando fazer, e que de repente a mulher
dele, como se fosse uma sibila, lhe deu. É um episódio notável. Esse
contraponto, colocar frente a frente, imaginariamente, essas duas figuras,
Breton e Yeats, ambas presentes no meu livro, eu acho fascinante.
RP - Tem uma pergunta do Bicelli, ele quer que
você fale sobre sua iniciação na Umbanda Omolocô da Mãezinha, onde
freqüentávamos todos. Eu relatei a um pai de santo, ele falou que a
Umbanda Omolocô é um sincretismo do Candomblé e Umbanda, e ele sabe da história
que, quando ela incorporava, o galo de São Benedito cantava. Isso está em
livros de Umbanda, ele me falou.
CW - Eu acho que foi muito enriquecedor, pois
Cidade Dutra era pura periferia de São Paulo, havia umas poucas casas no meio
dos terrenos baldios, e nós conhecemos outros lugares e pessoas. Íamos
regularmente a Cidade Dutra, e conhecer São Paulo é sair do circuito que, hoje
em dia, vai da Avenida Faria Lima ao Centro, e ver que existem bem mais coisas
que isso. Essa experiência humana foi riquíssima. Vimos coisas, e vi coisas em
mesas espíritas, em Candomblé, em ocultistas. Já vi coisas “pra burro”, mas
nunca, mesmo freqüentando com regularidade, eu me filiei. Eu sou eclético e
heterodoxo e, evidentemente, é muito difícil aceitar tal e qual, qualquer que
seja, alguma das cosmogonias, seja a cosmogonia da tradição ocultista, seja a
cosmogonia afro-brasileira, aquela genuinamente africana do Candomblé, com
toques sincréticos, seja o sincretismo da Umbanda, que na verdade é um
sincretismo brasileiro com diferentes influências africanas, tanto da Nigéria
quanto da região mais embaixo, do vale do Congo, Zambeze, onde tem esses cultos
mais animistas que no Candomblé não são admitidos, a ideia de falar com mortos,
e também influências da tradições esotéricas, do espiritismo; quer dizer, a
Umbanda é a religião mais antropofágica de todas, no sentido de haver pego
elementos e símbolos de tudo quanto é lado, e tê-los combinado à sua maneira. É
um tipo de devoração antropofágica, culturalmente falando e, de todas as
religiões, é a mais genuinamente brasileira. Tenho a impressão que surgiu mais
em Minas Gerais do que na Bahia. Sou conhecedor fragmentário, mais que
iniciado. Mas o desfile de tipos, de situações e histórias, é de uma riqueza
impressionante.
RP - O que você viu lá que o impressionou?
CW - Vi muita coisa. É curioso que, em muitos
desses centros terreiros, há uma espécie de pacto, ao mesmo tempo com Deus e o
diabo. A linha branca e a linha negra ao mesmo tempo. O homem da linha negra da
Quimbanda era o Vô. Um dia, entre outras coisas, vi ele, em transe, tirar a
camisa, pegar um punhal e, bem na minha frente, a uma distância pequena, riscar
o peito, sair sangue, e ele sair do transe, olhar o peito com aqueles cortes,
passar uma toalha, e rapidamente o sangue e os cortes irem desaparecendo. Havia
outro tipo, o Lindolfo, talvez o mais competente que eu já tenha conhecido, que
trabalhava de um modo totalmente diferente, não era sessão, não era gira. Ele
passava a mão na cabeça da pessoa, e ia dizendo coisas. Não havia ritual de
Umbanda, apesar de usar a simbologia da Umbanda. Era um psíquico, aliás, todos
eles são, se é que a gente pode chamá-los de psíquicos. Vou explicar esse
negócio, como é, vou explicar por alto, dar uma hipótese. É uma questão de
forma e conteúdo. O mesmo tipo de energia, seja o que for essa energia, se a
pessoa estiver em um ambiente judaico cabalista, pode se tornar um cabalista;
se estiver em um ambiente umbandista, pode se tornar umbandista; se estiver no
ambiente de candomblé, ou espírita de mesa branca, ou maçom… Ou seja, há
capacidades que talvez estejam íntegras no sentido de orientação de algumas
espécies animais, que é algo meio sobrenatural, inexplicado. Essa hipótese é de
Colin Wilson, o autor de O Oculto: há uma espécie de radar interno
que persiste no ser humano. E isso precisa, eu penso, de um contexto, de uma
simbologia, ou seja, de uma linguagem para se traduzir. Então, tudo isso, seja
umbanda, candomblé, cabala ou maçonaria, dependendo das inclinações da pessoa e
também do contexto, do grupo social com que se relaciona, é que fornece o
repertório para manifestar essa paranormalidade, ou xamanismo, que é a forma
original, a matriz de tudo isso, direta ou indiretamente. Além dos casos em que
o xamanismo se conserva como tal até hoje.
Voltando ao Lindolfo, que era um típico
psíquico, que apenas usava a forma ritual da Umbanda - isso era muito evidente,
tanto é que ele não tinha uma linha de médiums, nem nada disso -, fazia anos
que eu não ia lá, era em Santo André, e resolvi ir. Eu estava publicando
livros, tinha aquela série Feira de Poesia, em que saíram o Piva, a
Marilda Pedroso, e outros poetas que publiquei. Uma espécie de sucursal de
Massao Ohno que estava me tomando muito tempo e dinheiro. Cheguei lá, depois de
uns anos que não ia, entrei, botei a mão na cabeça dele, ele falava de uma
forma infantilizada, uma mistura de Preto Velho com criança, olhou para mim e
disse: “Livrinho! Livrinho! Está fazendo livrinho! Vai dar certo! Vai dar
certo! Vai dar certo, viu!” [9]. Nem era o que eu queria perguntar a ele.
Então, há coisas inquestionáveis, e eu contaria
mais uns dez ou vinte episódio desses, que, contudo, a meu ver, não justificam
a adesão, a não ser por uma vocação pessoal, uma coisa íntima. Por exemplo, não
dá para você criticar Yeats por haver entrado na Aurora Dourada e ter-se
tornado ocultista, pois, se não, ele não teria sido quem foi. Aquele foi um
componente fundamental da sua identidade e da sua criação. Então, qualquer
pessoa que se enriquecer, em qualquer dessas manifestações, isso é ótimo.
Excelente. Acabei tendo um contato muito pluralista, eclético e heterodoxo, sem
me fixar em nada. Conheci Umbanda, Candomblé, espíritas, ocultistas de vários
naipes e vários tipos de seitas iniciáticas. Agora, repito e volto a insistir -
e isso é uma coisa que o Piva assimilou muito bem na poesia dele, pós-Quizumba [10]
principalmente, embora já estivesse evidente antes: essa questão dos diferentes
modos de conhecer o Brasil. Trata-se de mediações, de instrumentos de contato
com aquilo que se poderia se chamar de “realidade brasileira”, fora das grandes
generalizações sociológicas e da pobreza e aridez acadêmica. Uma coisa é você
falar do povo, do proletariado lato sensu, falar disso como
categoria, e outra coisa é ir lá, ver eles, e ver não só no ritual, mas ver no
dia-a-dia deles, porque isso é indissociável, como nós víamos.
Público - E o Fernando Pessoa? Não era discípulo
de Crowley?
CW - Não. Fernando Pessoa tem um poema em
homenagem a Crowley e traduziu Crowley. Agora, isso é controvertido, porque
Fernando Pessoa era fechado. Parece que foi um grande estudioso de astrologia,
teosofista de Madame Blavatsky e rosacruz. Mas isso não é nada extraordinário
em si, quero dizer, o quanto tem de esoterismo na poesia dele - e tem muito,
Ricardo Reis é poesia de fundo metafísico e esotérico ao mesmo tempo, sem
dúvida alguma, e pode haver coisas em Bernardo Soares e Fernando Pessoa ele
mesmo que sejam iniciáticas, mas eu teria que dominar esses códigos melhor do
que domino, para fazer o estudo mais conclusivo, e quanto à biografia de
Fernando Pessoa, ele era recluso, havia aquilo de entender a criação literária
como mascaramento, a ideia dos heterônimos, talvez aquela ideia rimbaudiana
do eu é um outro, talvez, então, a ideia de Pessoa fosse que o “eu”
são muitos - assim, o que sabemos sobre Fernando Pessoa leva mais a crer que
ele fosse um rosacruz e um teosofista de Madame Blavatsky, o que não é, em si,
nada de extraordinário [11]. Extraordinário é o modo talentoso, genial, como
Fernando Pessoa recodificou isso poeticamente, pois todo mundo era teosofista
ou iniciado em alguma coisa. A gente tem que levar em conta, quando falamos em
Yeats, em Crowley, em Pessoa ou em Mallarmé, o caldo de cultura esotérica em
que o ambiente cultural estava mergulhado naquele período Acho que diálogos com
esses esoterismos, de diferentes modos -: o modo de dialogar do surrealismo é
um; o modo de dialogar dos simbolistas é outro; e dos irlandeses e ingleses do
começo do século era outro - são diálogos enriquecedores, por causa dessa
relação muito íntima que existe entre poesia e magia, a começar pelo fato de
ambas pertencerem à ordem do mítico, do pensamento mítico, da percepção mítica
do real, da lógica analógica, contraposta ou diferenciada da razão discursiva e
cartesiana.
Isso existia muito mais, talvez, na Antiguidade,
mas na modernidade está presente no Romantismo e nesses pós-românticos, nesse
período fascinante de loucura que é o final do século XIX francês, por exemplo.
Uma espécie de simbolismo ou coisa parecida que na verdade continha uma
quantidade de poetas e prosadores completamente doidos, genialmente criativos,
como Rimbaud, Lautréamont, Tristan Corbière, Laforgue, e de quebra Villiers de
l’Isle Adam e Huysmans. Um período de ebulição, que acho único na história da
cultura. Quando dizem que o surrealismo é delirante, eu discordo. Quer dizer, o
surrealismo é delirante; agora, com relação ao tamanho da loucura daquela
gente, do período que vai de Baudelaire até Dada, eles estavam tentando pôr a
casa em ordem, estavam tentando sistematizar, traduzir aquilo em ideias
políticas e filosóficas. Um empreendimento impossível, é evidente, e
fracassado, mas grandioso, e de uma extraordinária riqueza. Mas o delírio para
valer aconteceu antes. O que Breton fez foi assimilar esse delírio, aceitá-lo e
tentar uma recodificação.
Bicelli - Claudio Willer, quero te pedir
desculpas pela pergunta que farei agora. Porque quem está aqui está vivendo
esta profunda emoção transmitida pelo teu depoimento, e quero te propor algo
que poderá parecer prosaico, mas vamos lá: Sei que você sempre procurou fazer
uma reflexão política sobre a experiência humana. Você continua se interessando
por política?
CW - Essa pergunta é fundamental. Eu acho que
tinha que falar em política, porque há uma dimensão revolucionária da criação
poética que nunca conseguiu se transformar até hoje em movimento político. De
certa forma, os reflexos disso estão presentes na contracultura, que foi um
movimento político, evidentemente. Mas, na hora em que a contracultura tentou
se organizar politicamente, em 68, fragmentou-se, pois caiu nos impasses e
problemas da organização política, naquela contradição entre a burocratização
inevitável em qualquer movimento político, e a busca da liberdade. Foi no
momento em que houve o racha do SDS [12], em 68. Foi então que acabou a
contracultura. Aquilo que parece ter sido o apogeu da contracultura, 1968, na
verdade foi o seu canto do cisne, embora a contracultura tenha perdurado, em um
ambiente contracultural que sempre achei ótimo, muito divertido, ao longo dos
anos 70.
Contudo, o que aconteceu com o surrealismo, as
tentativas de dialogar com as diferentes correntes políticas, o Partidão
primeiro, os trotskistas depois, e os anarquistas finalmente, e que nunca deram
certo, é exemplar e paradigmático de uma contradição real e profunda que existe
entre poesia e política, a militância política e a prática política e até o
pensamento político. Quando eu falo de política no sentido amplo, e digo, por
exemplo, que a poesia é revolucionária, isso é política em outro sentido.
Então, há uma relação contraditória mesmo. É absolutamente natural que nunca
nos tivéssemos vinculado a partido políticos. No caso específico da nosso
geração, uma das expressões disso que eu critico como caretice burguesa - o Zé
Celso tocou no assunto, ele já deixou isso bem claro na sessão passada - era,
sem dúvida alguma, o Partido Comunista. A priori, para nós, era uma
coisa inviável, muito mais inviável do que foi para o Zé Celso, que tentou uma
espécie de esquerda temática, extra-Partidão e extra Teatro de Arena, na fase
de Vida impressa em dólar. Não tinha como, porque era a caretice
burguesa e mais o bitolamento da criação artísticas. E meu relacionamento com
aquela militância mais à esquerda, com algumas correntes, foi muito ruim. Eu me
lembro que, na época das leituras da geração Beat, 1967, houve um boicote
ostensivo de algumas correntes e movimentos estudantis. Cheguei para o pessoal
que estava, na época, no TUSP (Teatro da USP), e que só fazia Brecht, era só
Brecht direto, era cartilha brechtiniana e tinha que ser Brecht, então, cheguei
para os caras em um restaurante, e disse: “Por que vocês não encenam aquela
peça do Günther Grass.”- é uma em que Brecht é o personagem principal, onde
Grass critica a omissão e calhordice do Brecht durante os levantes de Berlim,
aquelas manifestações da Alemanha Oriental em 54, tentando se libertar, que
precederam o levante húngaro. Eu fazia essas coisas também, na lata! (risos) Ao
mesmo tempo, outros grupos, a Iara Iavelberg, que era muito minha amiga, e por
osmose o José Dirceu [13], que na época era namorado dela, mobilizaram os
respectivos centros acadêmicos para vender meu espetáculo, e levaram os alunos
para assistir a encenação da geração Beat. É evidente que havia muita gente de
mente aberta, como Iara Iavelberg, que já estava com um pé na militância para
valer. Gente militante de esquerda que era nossa amiga, pessoas que militaram
radicalmente, mas que tinham uma percepção crítica daquilo.
Talvez a última tentativa de diálogo com a
esquerda tenha sido o período da livraria Kairós [14]. Aliás, a penúltima. O
que acontecia foi que os trotskistas eram excelentes pessoas, o Castilho de
Kairós é um sujeito encantador, uma pessoa com quem converso com o maior
prazer, e não tenho qualquer preconceito contra alguém ser quadro militante,
fundador de qualquer organização de esquerda, o PT inclusive. Insuportável
mesmo, porque havia uma pressão dogmática, era o Partidão. O Partidão até tinha
gente simpática e interessante - o Mautner tinha uma visão delirante do
Partidão, e o Regastein também chegou a se aproximar. Mas o Mautner nunca foi o
quadro típico de Partidão. Ele se dizia comunista, mas é evidente que era um
discurso pessoal, uma reinterpretação pessoal do comunismo. Ele se aproximar do
Partidão foi um gesto delirante. De qualquer forma, voltando ao episódio dos
trotskistas da Kairós, a livraria virou um point nosso, pois
os trotskistas, por antagonismo com relação aos comunistas do Partidão,
cultivavam muito aquela coisa de aproximação com o surrealismo, herança de
Trotsky, da visão de Trotsky pós-União Soviética, porque se tivesse sido
Trotsky no lugar de Stalin, poderia ter sido tão pesado, parecido ou pior sob
certos aspectos, quanto com Stalin. Trotsky, afinal de contas, foi quem esmagou
os revoltosos de Kronstad e quem partiu para cima do anarquismo de Nestor
Makhnó.
Teve aquela fase da livraria Kairós, e depois a
fase Versus, com a Convergência Socialista, que era uma versão
piorada do Libelu [15]. E houve o episódio feio de estragarem uma boa publicação
cultural, o trabalho do Marcos Faerman noVersus, e nos obrigarem a nos
defenestrar de lá, com o ‘aparelhamento’ do jornal Versus. Foi uma
pena, se bem que, se não tivesse acontecido isso, o Versus cumpriria
o ciclo da imprensa alternativa dos anos 70, ou seja, acabaria. De qualquer
forma, tive total distanciamento de organizações políticas, nunca tive
paciência para a militância, e mesmo o paradigma marxista, eu tive um
distanciamento maior que algumas pessoas do nosso grupo durante aquela época,
inclusive um entrevistador e também poeta das minhas relações, que eu acho que
está presente aqui (Piva), e que em alguns momentos chegou a se proclamar como
muito mais leninista do que eu (risos). Quero deixar claro o seguinte: o
radicalismo é fundamental. Os radicalismos do Piva são indissociáveis da
criatividade dele, não dá para querer que ele não seja radical no seu modo de
manifestar ideias políticas ou antipolíticas. Eu acho, também, que a
provocação, de se fazer passar por mais reacionário do que é, também é um
instrumento político. A provocação é uma das modalidades da sátira.
Bicelli - Percebe-se uma coisa. Esse tipo de
caminho que você adotou, ele é corajoso, e ao mesmo tempo você paga um preço
por isso, num certo sentido. Porque a grande parte da imprensa é comunista, de
esquerda, etc., até hoje. Se você se diz antiburguês, então você já tinha
naquela época o Estadão contra você. E se você se diz, ao
mesmo tempo, anti-Partidão, crítico em relação a isso tudo, porque tem grandes
nulidades no Brasil que se fizeram no Partido…
CW - Olha, eu tenho um manifesto de 65, Bicelli,
que nós dois assinamos, o texto básico eu escrevi, onde questionávamos em
primeira instância, evidentemente, o regime militar. Aí, todas as frentes, com
tudo quanto fosse organização de esquerda, evidentemente valiam. Realmente, era
com o que não se podia transigir. E eu nunca aceitei muito aquele discurso
anti-esquerdista, e valia uma política de frente, pois nós não estávamos em um
regime soviético, mas em um regime militar brasileiro. Que, aliás, acabou
construindo o Estado burocrático com características soviéticas, que hoje em
dia está difícil de transformar, em parte por causa do corporativismo e da
oposição da própria esquerda, que acha que o Estado dentro do paradigma soviético
pode trazer algo de bom. Quer dizer, no momento em que os militares, depois de
controlarem a política, as instituições políticas, passaram a tentar controlar
a economia, através da criação de empresas estatais e da estatização de setores
produtivos, principalmente na infra-estrutura, então caminharam para uma
espécie de sovietismo de militar brasileiro, que não prosperou porque o fato de
haverem entrado em crise econômica, e o projeto ter fracassado, alertou setores
maiores da população, fortaleceu a oposição e levou à democratização.
Então, nós assinamos um manifesto, em 65,
reclamando em primeiro lugar do regime militar, mas reclamando também das
bitolas do Partidão, dos críticos fascistas de cinema, do Lindolf Bell, e, da
minha parte, eu não alteraria nenhuma linha do estava escrito lá. O que eu
acho, para completar, é que, de um lado, Marx tinha razão em uma série de
aspectos da sua produção teórica que os próprios marxistas não entenderam. Todo
o processo de globalização, essa expansão capitalista de hoje em dia, essa
internacionalização, essa dinâmica capitalista, essa capacidade de se
transformar, isso tudo está claramente em Marx, até naquela metáfora de que no
capitalismo tudo o que é sólido se desmancha no ar. É um modo de produção e
conseqüentemente uma sociedade dinâmica, ao contrário de outras sociedades,
feudais, etc., que são fechadas, querem-se estáticas. O caráter aberto do
capitalismo foi melhor entendido por Marx, do que pela maioria dos marxistas, à
exceção de Gramsci e de figuras divergentes, como Marcuse. Se bem que Marcuse é
brilhante em Eros e Civilização e maniqueísta, a meu ver,
em Ideologia da Sociedade Industrial, assim como todo o grupo de
Frankfurt. Enfim, feito o reconhecimento desses aspectos da contribuição de
Marx, acho que a política tem que ser repensada em suas bases, e ainda precisa
haver algum tipo de compreensão teórica que avance sobre Marx, pensando alternativas
ao capitalismo, à sociedade burguesa, e também um pensamento que possa traduzir
e recodificar em termos políticos aquilo que a contracultura tentou fazer e não
conseguiu, a revolução poética, a rebelião romântica, transformadora da
sociedade. Neste ponto, aquilo que você (Piva) falou de Octavio Paz, de que o
século XX vai ser lembrado, não como o século do comunismo, mas sim do
surrealismo, nisso ele tocou no nervo, ou na veia, seja onde for, pelo
seguinte: a rebelião romântica, da qual o surrealismo é a expressão mais
elaborada e mais complexa, é tão ou mais transformadora da sociedade quanto a
revolução socialista.
Quando eu acentuei a caretice e a repressão
pesada que vivíamos em São Paulo, sem chegar a falar de outras épocas, como o
século XIX vitoriano, é para acentuar a importância da liberdade individual, e
o quanto nós devemos a essas conquistas, sem dúvida alguma a essas várias
expressões da rebelião romântica, inclusive o surrealismo, geração Beat,
contracultura e o impacto de Antonin Artaud sobre a contracultura. Tudo isso
ainda está para ser traduzido em termos de teoria política. Eu vejo lampejos ou
esboços dessa teoria em Octavio Paz, e, de uma forma diferente, talvez em
pensadores como Michel Foucault. Mas não há uma tradução para o pensamento
político disso que acontece ao longo da história da sociedade burguesa e é
político.
RP - Só queria lembrar que e eu falo sempre para
o pessoal, nas conferências, que o PT deve gostar muito do General Geisel, que
criava uma estatal por dia, e, em segundo lugar, lembrar aquela frase do
Artaud: “Todo ato individual é anti-social”.
CW - Muito bem lembrado.
RP - Depois disso, gostaria que você lesse os
originais pra gente.
CW - Eu ia propor isto, fazer uma rodada de
poesia e outras de perguntas de vocês. Voltando ao plano imediato, à imanência,
o Estado burocrático é a pior praga que existe. Por enquanto, estou conseguindo
sobreviver psiquicamente numa organização burocrática, mas de boa qualidade,
Secretaria de Cultura na gestão Konder. Eu me lembro de quando o Bicelli, que é
um quadro muito competente na administração pública, chegou lá, e viu como o
pessoal que trabalhava comigo fazia os contratos e aquela burocracia toda, ele
se virou pra mim: “O jeito como esse pessoal trabalha, nem parece funcionário
público!” (risos). Na primeira, ele flagrou isso, porque sabe como é o estado
burocrático. Eu não tenho nenhuma confiança em uma capacidade do capitalismo e
da empresa capitalista de evoluírem e produzir progresso por si. Acho que as
esquerdas, comunismo inclusive, deram uma grande contribuição ao pressionarem o
capitalismo na direção de uma ampliação de direitos sociais. É provável que sem
comunismo, e tudo isso, tivéssemos hoje um quadro semelhante ao que Victor
Serge descreve em Memórias de um Revolucionário, de como era a vida
do operário no começo do século. As esquerdas em geral, comunismo inclusive,
obrigaram o capitalismo a reconhecer sindicatos, melhorar salários, dar
direitos trabalhistas, e acabaram contribuindo decisivamente para a expansão e
prosperidade do próprio capitalismo. Duvido que a empresa capitalista, em si,
tivesse essa dinâmica, se não fosse essa polaridade. Essa polaridade
desaparecer, de uma lado abre uma nova era, tira da frente algumas coisas
desagradáveis, já que ninguém tem a mínima vontade de ver pela frente um estado
burocrático, mas talvez faça desaparecer um tipo de situação contraditória que,
no mínimo, obrigava o capitalismo a se renovar. Acho essa nova era preocupante.
Não a vejo com otimismo e não dou de barato, de jeito nenhum, qualquer
possibilidade do capitalismo, da sociedade burguesa capitalista, evoluir por si
mesma. Mas, de qualquer forma, descontando tudo que teria de ser dito sobre
empresa capitalista e o capital monopolista, sem dúvida alguma a pior praga que
existe é o estado burocrático. Pára tudo, atrasa tudo, o estado corporativista.
Então, se for para fazer militância política… é
claro que não dá para endossar nenhum tipo de ideologia neoliberal. Se for para
discutir política, a questão do estado burocrático, da desburocratização
inclusive, pois desburocratização é democratização, é devolver para a sociedade
- e é curioso como tem gente que faz discurso de participação da sociedade, da
democracia, e, ao mesmo tempo, defende a coisa mais antidemocrática que existe,
que é o estado burocrático, e o corporativismo, a corporação dentro do estado.
Corporativismo fora do estado, até que tem efeitos positivos. Dentro do estado
só dá em atraso. Então, isso de desburocratização do Estado, e conseqüente
democratização, é sem dúvida nenhuma, um grande tema político hoje em dia… e
que eu topo discutir, pois sei o que é.
[LEITURA DE POEMAS - Willer lê vários
poemas de seus livros, e também alguns inéditos - ao final da leitura, um dos
participantes pede que seja lido, ainda, um poema de Dias Circulares sobre
Paris - e, depois de mais essa leitura, faz uma pergunta sobre Paris]
CW - Olha, uma vez eu passei de raspão pelo Bois
de Boulogne, e nem fui, até hoje, às Buttes Chaumont, aquele jardim que Aragon
descreve noCamponês de Paris, que ele achava um lugar estranho. Até hoje
não fui [16]. Acho que, se ficasse seis meses lá, ainda ia ter o que ver,
porque é muita coisa. Muita coisa no seguinte sentido: coisas que,
culturalmente, são para se ver - grandes concertos, exposições de alta
qualidade - e coisas simbólicas. É o que eu digo no meu livro, Volta:
Paris é a cidade escrita, cidade de referências literárias. Por exemplo, o
lugar que eu quero ver na próxima vez, aonde nunca fui, e é perto da onde eu
fico em Paris, perto do Marais, é esse museu da ciência ou coisa que o valha
que tem lá, eu nem havia reparado que existia, onde está o Pêndulo
do Foucault. Pois o livro do Umberto Eco, O Pêndulo do Foucault, é
muito bom, é muito inteligente.
(respondendo a mais uma pergunta, sobre a
relação de sua poesia com o romantismo alemão):
CW - Eu acho o seguinte… Octavio Paz falou uma
coisa certa em Os Filhos do Barro: aquele período de loucura
francês é erradamente chamado de pós-simbolismo. Segundo ele, o pós-simbolismo
é continuação do romantismo alemão. Novalis é tremendamente denso, agora, o que
mais me fascinou nesse período (do romantismo alemão) foi aquela fase longa de
esquizofrenia do Hölderlin, com aqueles poemas fragmentários, que são
extremamente modernos. Por que são modernos? Ou por que Gérard Nerval é
moderno? Um psicanalista importante, Isaias Mehlson, estava me dizendo que,
para ele, o inconsciente é uma consciência não-discursiva. Aí, percebi a razão
da modernidade de um Hölderlin na fase de loucura, ou um Nerval de Aurélia:
como eles estavam loucos, faziam um texto não-discursivo. Algo que hoje em dia,
pós-vanguardas, é normal, a ideia do texto não-discursivo, que está
completamente incorporada à cultura. Naquela época, a poesia era discursiva. A
loucura, a não-discursividade do inconsciente que aflorava nas psicoses deles,
os tornou, além de serem grandes escritores e grandes poetas independentemente
disso, quero dizer que, sem loucura, tanto Hölderlin quanto Nerval seriam
grandes, mas na loucura deram um passo adiante e criaram obras vanguardistas,
por causa do caráter não-discursivo antecipando-se à vanguarda, por ser uma
escrita do inconsciente.
(público) - Eu vi um prefácio seu muito
interessante do Subterrâneos, que você fez, sobre o Kerouac. Eu
acho um prefácio muito legal, em que você evidencia as qualidades dele como
prosador. Eu queria saber o que você acha dele enquanto poeta? Se você
gosta dele enquanto poeta e se ele tem qualidades como poeta?
CW - Tem. Naquele prefácio, porque se criou
muito estereótipo em cima da geração Beat, principalmente naquele prefácio, e
em algumas outras coisas que escrevi sobre geração Beat, eu bati muito na tecla
do intertexto. Todo mundo fica vendo a Beat como rebelião individual, uma
rebelião neo-romântica contra o establishment americano,
contra o academicismo da literatura que se fazia na época, e ninguém dá atenção
ao quanto eles eram extremamente cultos. Subterrâneos é
transcrição de Dostoievsky. Então, pego isso, nesse prefácio. E escrever é
escrever o que você leu, também. Um bom exemplo disso, nós temos no Piva.
NOTAS
[1] Bairro oriental em São Paulo.
[1] Bairro oriental em São Paulo.
[2] ACM: Associação Cristã de Moços.
[3] Zé Celso Martinez Corrêa, realizador teatral, entrevistado por Piva
na seção anterior do “Meditações de Emergência”.
[4] Peça teatral do modernista brasileiro Oswald de Andrade.
[5] Como o personagem é conhecido, e não o consultei, omiti seu nome
(CW).
[6] Ginsberg morreu cerca de três semanas depois. A palestra sobre
Ginsberg na série Autoria do Século, ciclo de palestras também
promovido pela Funarte, tornou-se homenagem póstuma (CW).
[7] Escola de Sociologia e Política, na qual Piva efetivamente se
graduou.
[8] Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, onde eu trabalhava,
fazia programação literária.
[9] Observação adicional: eu nunca, nas poucas vezes em que havia estado
lá, havia dado qualquer indicação de que era escritor ou teria alguma atividade
editorial.
[10] Livro de poesias de Piva publicado em 1983.
[11] Hoje (em 2003) já não diria o mesmo – o neopaganismo em Pessoa (em
Alberto Caeiro) tem afinidade com o pensamento de Crowley, e no ortônimo (ele
mesmo) há muita poesia hermética, de influência ocultista.
[12] SDS é a sigla de Students for a Democratic Society, a
grande organização estudantil americana dos anos 60.
[13] Atual Ministro-Chefe da Casa Civil do governo Lula.
[14] Em 1977/78.
[15] Libelu: Liberdade e Luta, tendência trotskista do
movimento estudantil; Convergência: a Convergência Socialista,
outra tendência trotskista.
[16] Fui, mais recentemente.
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado: Jorge de Lima
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de
Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua
espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas
de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a
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