Ivor Francis foi um
pintor australiano nascido na Inglaterra em 1906. Tendo vivido a maior parte de
sua vida na Austrália, ali conheceu, às vésperas de 1940, o jovem poeta Max
Harris, atraído por seu envolvente ânimo surrealista. A amizade de ambos foi
bastante frutífera. Francis é considerado o primeiro artista surrealista
australiano. Max Harris, em 1941, cria a revista The Angry Penguins, de capital importância para a difusão do surrealismo
na Oceania. Em 1942, ao lado de alguns pintores amigos, Ivor Francis realizou a
primeira grande exposição de arte modernista do país. É possível mencionar que
a importância de ambos, sobretudo de Max Harris, seria algo equivalente à
contribuição de Roland Penrose (1900-1984), este último no tocante ao
surrealismo na Inglaterra. No entanto, não houve nunca um encontro entre Roland
e qualquer um dos dois australianos. Mesmo em um livro tão criterioso e
revelador quanto 80 anos de surrealismo
1900-1981, de Penrose, não há referência à presença australiana. Mesmo
nomes essenciais nas artes plásticas, como Sidney Nolan (1917-1992) e James
Gleeson (1915-2008), não encontraram ambiente relevante fora de seu país para a
circulação de suas obras. Absurdo ainda maior é que mesmo na Austrália seja
insuficiente, para dizer o mínimo, e em alguns casos, como o de Max Harris,
seja mesmo inencontrável qualquer menção àquela geração.
Outro expressivo pintor
surrealista, Eric Thake (1904-1982), cuja tela Archaeopteryx compartilha, em 1941, com James Gleeson, o prêmio
principal da Sociedade de Arte Contemporânea de Melbourne. Homenagem a
Magritte, esta obra de Thake trazia já a marca de um surrealismo engenhoso.
Thake, também era gráfico e fotógrafo, e posteriormente se aproximou do
letrismo e do mundo pop. Os dois artistas, Thake em Melbourne e Gleeson em
Sidney, foram os grandes semeadores de uma expansão de horizontes na criação
artística de seu país. E a base dessa expansão era justamente dada pelo
Surrealismo, pela leitura de uma paisagem inóspita e misteriosa como parte de
um sonho que representa a própria vida. Essa fecundação de estranhezas, que
encontramos, por exemplo, em Yves Tanguy ou Salvador Dalí, era o fluxo
germinativo do que havia de mais profundo em termos de arte na Austrália
naquele momento. E me inclino por dizê-lo que aí radica o de mais importante
que até hoje se produz nesta região.
As trilhas históricas desse surrealismo foram
casual ou sistematicamente apagadas? Talvez uma leitura da cronologia de vida e
obra de Max Harris nos ajude a compreender. Ainda é possível encontrar em
livrarias australianas livros de arte em que há capítulos dedicados à pintura
de Sidney Nolan ou James Gleeson, porém sem que o texto se detenha demasiado em
sua íntima relação com o surrealismo. O caso de Max Harris é o que, no entanto,
mais me preocupa. Exceto por uma edição em pdf (www.nla.gov.au/sites/default/files/theangrypenguin.pdf) que circula na
Internet, uma antologia de sua poesia, não há mais exemplares da revista,
livros seus ou mesmo estudos a seu respeito em qualquer livraria em Sidney. Pior
ainda: as mais destacadas antologias panorâmicas da lírica australiana do
século XX não incluem este poeta. E ainda mais grave: o surgimento de um grupo
surrealista na Austrália nos anos 1970 desconhece a própria história do país,
ou então a resolve apagar por alguma inaceitável razão.
Dados biográficos
rápidos: Max Harris nasceu em Adelaide em 1921. Entre Adelaide e Melbourne fez
sua residência de vida inteira, sendo impressionante seu conhecimento sempre
atualizado de tudo o que se passava na Europa naquele momento. Essencialmente
poeta, Max Harris já aos 19 anos trata de editar a mais importante revista de
vanguarda de seu país, The Angry Penguins,
onde encontraram palco tanto os expoentes iniciais do surrealismo e do
expressionismo na Austrália quanto uma diversidade de nomes estrangeiros, uma
mescla que inclui autores como Dylan Thomas e Gabriel García Márquez, e
intrigantes vozes estadunidenses, a exemplo de James Dickey e Harry Roskolenko.
Os três primeiros números de The Angry
Penguins foram patrocinados pela mãe do poeta. A publicação da primeira
edição causou certa agitação no meio local, o que despertou a atenção de John
Reed (1901-1981), um dos mais meritórios editores de arte da Austrália. Reed
foi a Adelaide conhecer Harris e lhe propôs ir morar em Melbourne. Os dois
passaram a editar conjuntamente a revista. Reed & Harris tornou-se
expansiva companhia editorial, tratando não apenas de difundir a arte local como
também de cumprir a necessária missão de trazer nomes destacados da Inglaterra
e da América para o país. Logo a revista se envolve no escândalo em torno dos
poemas de Ern Malley. Max Harris, sentindo-se derrotado retorna a Adelaide,
porém mesmo ali ele se alia a uma amiga, Mary Martin (1915-1973), que,
apaixonada pela cultura indiana, mudou-se para a Índia em 1962 e transferiu a
livraria para seu nome. O poeta, com o passar do tempo, recolheu-se em um
retiro rural. Morreu em 1995 por conta de um câncer na próstata. Há menções de
que seja um dos maiores poetas líricos da Austrália, assim como também
momentaneamente ficou conhecido como o pai do modernismo nas artes deste país.
No entanto, a realidade é bem outra, e seu nome caiu hoje em um complexo e injusto
esquecimento.
Sua bibliografia inclui
os seguintes títulos: The Gift of Blood: Poetry
(1940), Dramas From the Sky (1942), The Coorong and Other Poems
(1955), The Circus and Other Poems (1961), A Window at Night, ABR
Publications, Adelaide (1967), Poetic Gems (1979) e a já referida
antologia The Angry Penguin – Selected poems (1996). Também é autor de
uma novela:
The
Vegetative Eye (1943) e, em 1968 publicou, juntamente com
Geoffrey Dutton The Vital Decade: Ten Years of Australian Art and Letters. Há ainda uma série de
estudos críticos encontrados em The Angry Eye
(1973), Ockers : essays on the bad old new Australia (1974), The
Unknown Great Australian and Other Psychobiographical Portraits (1983) e The
Best of Max Harris – 21 Years of Browsing (1986).
No decorrer dessa breve
biografia, mencionei um escândalo e a ele vamos agora retornar. Antes é preciso
entender que o mundo literário na Austrália sempre foi profundamente
conservador. A inquietude de Max Harris rapidamente o pôs na condição de um enfant terrible, e suas ideias políticas
e estéticas a todo custo precisavam ser freadas. The Angry penguins, com preocupante receptividade, dava a conhecer
ideias subterrâneas e estrangeiras que de algum modo se chocavam com os
interesses da comunidade cultural local. Surgiu então a ideia de uma
maquinação. Certo dia Max Harris recebe correspondência de Ethel Malley, na
redação da revista, a ele confiando poemas de um irmão morto bem jovem, e que
ela, confiante no valor de The Angry
penguins, acreditava ser o melhor meio para divulgar os versos de Ern
Malley. Max os lê como versos românticos, repletos de uma aura renovada, e
então os publica na revista. A aceitação dos leitores é imediata. Ern Malley
torna-se uma valiosa descoberta da revista. Em uma edição seguinte, Max Harris
reúne uma série de análise aos poemas de Malley assinadas por destacados
críticos, dentre eles sir Herbert Read.
O que houve então?
Relações entre as forças armadas e a comunidade retrógada intelectual
manipularam uma acusação de que The Angry
Penguins havia publicado um poeta indecente, com versos que feriam os
padrões morais da sociedade. Foi então forjado um julgamento, a revista dada
como culpada e Max Harris teve que pagar uma multa. O escândalo, contudo, não
era este. O que se descobriu em seguida é que jamais existiram Ethel e Ern
Malley. Foram uma invenção de dois militares que pinçaram fragmentos de textos
de inúmeras fontes, quase todas não literárias. A criminosa fanfarrice foi
suficiente para eliminar da história de um país sua mais expressiva referência
revolucionária, no ambiente das artes.
A Austrália não se
livrou do surrealismo, como queria então sua retrógrada comunidade intelectual.
Do que ela se livrou foi da confiabilidade internacional de uma cultura que em
todo momento pode ser uma fraude. Este episódio marca de tal forma a idoneidade
cultural de um país que, por mais que reconheçamos sua invejável condição
social nos dias de hoje, é impossível não considerar o custo de tal
condicionante. Talvez coubesse a algum intelectual australiano sensibilizar o
governo da urgência em se desculpar pelos danos de silêncio impostos à obra de
um de seus mais importantes intelectuais: Max Harris. No entanto, até o momento
o que se tem processado é justamente o inverso. Nos anos 1970 surge um Grupo
Surrealista na Austrália, atuante por duas décadas, onde não se faz sequer
menção a este momento da história. Em 1993 Christopher Chapman (1966) publica
um volumoso catálogo da exposição Surrealism
– Revolution by night, que contém alentado, porém incompleto dossiê sobre o
surrealismo na Austrália. Cria-se com isto uma errônea ideia de quase
inexistência de atividades surrealistas no país e, mesmo assim, vinculada
exclusivamente ao mundo plástico.
Exemplo dessa distorção
é que em seu livro Surrealismo: el oro
del tempo (2013), o espanhol Miguel Pérez Corrales, ao comentar a edição de
Christopher Chapman, deduz e difunde:
Duas coisas essenciais devem ser apontadas sobre o
surrealismo naquele território durante a etapa que cobre este estudo, ou seja,
1923-1949. A primeira é que a projeção surrealista na Austrália se reduz
praticamente à linguagem plástica. A segunda é que há somente uma figura que se
identificou plenamente com o surrealismo, e que continuou a aventura surrealista
pelo resto de sua vida: James Gleeson. Com ele há, ao final do livro, uma longa
entrevista, feita pelo próprio Chapman, que podia ter sido mais iluminadora.
Desnecessário dizer algo mais, considerando as
menções já feitas por mim a James Gleeson – além de pintor, ele foi também
poeta, crítico de arte e curador – no tocante às suas relações com Max Harris e
The Angry Penguins. Concluo estas
breves notas com três poemas de Harris, na tradução realizada por Allan
Vidigal, para o volume que ainda mantenho inédito: Viagens do Surrealismo. E uma sugestão de leitura: “Comentário
sobre a poesia australiana”, de Max Harris, que publicamos aqui mesmo na Agulha
Revista de Cultura, também na tradução de Allan Vidigal: http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/02/max-harris-comentario-sobre-poesia.html.
R.S.V.P.
Para Paul Eluard
poderei te
conhecer, irmã distante do tempo,
vestida de
verde,
olhando o canto
esvaziado dos trens
a lançar fúria e
lixo contra as luas?
Estive
prendendo entre
os dedos a transição
da fumaça,
lançando aos teus pés o pedido
de clemência, o
desejo cortesão
de servir a tua
mesa
e levar teus
pratos até os lábios negros de júpiter, grávido
e escaldado de
excremento.
Que belos dias, estes, em que o amor lambe as areias da manhã.
ama a garçonete
dançarina que fuma e fuma
para que eu
esconda a chama do passado
dentro da manga
e pareça um
grande mago
arrastando
esperanças por aí
numa longa
fieira de pérolas particulares.
O PÁSSARO
é chamado de
amigo da árvore
e seus pés
delicados dão forças ao tronco
enquanto ele
canta, perverso.
O pássaro que
cantarola para a seiva
e as grutas de
vermes escondidos
é o desejo que
faz troça da terra cínica
e dos corações
lacrados.
O pássaro
empoleirado no ramo do meu olho
bicou o nervo da
retina
trouxe o
tormento da chuva e o frescor do sangue
ao longo da
curva do coração.
NECROMANCIA
Sete são as
tentações,
Nove as horas do
dia,
Dois a distância
entre nós
E uma só a via.
Verde a ideia em
que há amor,
Branca a ideia
que divide,
Negra a sombra
que nos julga
Pela destruição
da nossa lide.
Um sinal nos
basta para viver,
Uma forma
traçada no ar;
Longa a linha de
tempo que seguimos.
Levará a algum
lugar?
FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta,
tradutor, artista plástico e editor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e a ARC Edições. Poemas traduzidos por Allan Vidigal. Página ilustrada com
obras de Ana Mendoza (Venezuela), artista convidada desta edição de ARC.
*****
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 26 | Abril de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da
revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não
solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
Artigos encantatórios. Grande Floriano.
ResponderExcluir