Para a filosofia
tradicional todos os opostos estão separados, não tem a mesma origem, e não
podem nascer um do outro. Os filósofos utilizam as oposições bem e mal, falso e
verdadeiro, certo e errado, supondo que as coisas “boas” têm uma origem e as
coisas “más” outra; ou que as coisas verdadeiras têm uma origem e as coisas
falsas outra. São dadas assim, fontes diferentes para cada um dos opostos.
Nietzsche desvia-se deste caminho, dizendo que os opostos têm a mesma origem.
Não existe uma origem para o bem e outra para o mal. Os opostos, tendo a mesma
origem, estão enredados, são as mesmas forças que transitam de um polo a outro.
Essa questão dos opostos
não parece ser mistério para filólogos. Algumas línguas antigas faziam uso de
uma só palavra para designá-los. Sabe-se que além de Nietzsche, a Alemanha
contava com muitos filólogos no século XIX, dentre eles Karl Abel (1837-1906).
Abel publicou, em 1884, um trabalho intitulado A Significação Antitética das
Palavras Primitivas, incluído, no ano seguinte, nos Ensaios Filológicos.
[1] Não tenho conhecimento se
Nietzsche teve acesso ao referido trabalho, ou se ele próprio fez um estudo
neste sentido. Mas, o conteúdo da exposição de Karl Abel me parece muito
pertinente no que se refere ao “conceito” de polaridade dentro do pensamento
nietzschiano. De acordo com Abel, a língua egípcia antiga comporta muitas
palavras com dois significados, sendo um o oposto do outro. É como se, em
português ou alemão, por exemplo, tivéssemos a mesma palavra para designar
grande e pequeno, em vez de duas. E, de acordo com o estudo de Abel, em um
estágio ulterior dessa língua antiga, havia palavras compostas, que continham
dois opostos, mas significando apenas um. Por exemplo, a palavra velho-jovem
significava jovem e a palavra longe-perto significava perto. A explicação para
esse fenômeno da linguagem, segundo o filólogo, é que só conhecemos algo pela
existência de seu oposto – se não houvesse noite, mas apenas luz, não haveria
como distinguir luz e escuridão. Dessa forma, todo conceito vem de seu
contrário e um não existe sem o outro. Assim, para comunicar um conceito, os
antigos tinham como medida o seu contrário. Quando queriam comunicar que algo é
forte, por exemplo, a palavra forte continha o seu oposto fraco. Segundo Abel,
os significados opostos presentes na língua egípcia encontram-se também nas
línguas semita e indo-europeia. E é muito provável que estejam presentes em
outros grupos linguísticos. Em latim, por exemplo, há uma só
palavra para designar sagrado e maldito, que é a palavra “sacer”. Interessante notar que em alemão “stumm” é mudo, calado, e “stimme” é voz. Resquícios dessa característica de línguas antigas podem ser encontrados nas línguas modernas. Um exemplo típico é a palavra “without”, da língua inglesa. Seu significado é “sem”, mas a palavra vem acompanhada de seu oposto “com”. Tudo indica que foi através de um processo gradativo que o homem aprendeu a separar os dois lados de uma antítese e a pensar um deles de forma completamente isolada do outro. Antes se pensava junto – a ligação entre os opostos era natural, espontânea. Uma vez feita a separação na linguagem, foi uma questão de tempo para que o homem pensasse que a separação existe de fato. Geração após geração nasceu já imbuída de uma linguagem na qual a separação dos opostos já era completa, efetiva e aceita. Uma vez que há uma palavra para designar uma coisa, e outra, completamente diferente, para designar seu oposto, parece obvio que os opostos têm origens diferentes. Só um filólogo para dizer que não.
palavra para designar sagrado e maldito, que é a palavra “sacer”. Interessante notar que em alemão “stumm” é mudo, calado, e “stimme” é voz. Resquícios dessa característica de línguas antigas podem ser encontrados nas línguas modernas. Um exemplo típico é a palavra “without”, da língua inglesa. Seu significado é “sem”, mas a palavra vem acompanhada de seu oposto “com”. Tudo indica que foi através de um processo gradativo que o homem aprendeu a separar os dois lados de uma antítese e a pensar um deles de forma completamente isolada do outro. Antes se pensava junto – a ligação entre os opostos era natural, espontânea. Uma vez feita a separação na linguagem, foi uma questão de tempo para que o homem pensasse que a separação existe de fato. Geração após geração nasceu já imbuída de uma linguagem na qual a separação dos opostos já era completa, efetiva e aceita. Uma vez que há uma palavra para designar uma coisa, e outra, completamente diferente, para designar seu oposto, parece obvio que os opostos têm origens diferentes. Só um filólogo para dizer que não.
Se toda essa questão
ficasse somente entre os filólogos, seria apenas mais uma curiosidade
interessante sobre a linguagem. Mas Nietzsche trouxe isso para a filosofia, ou
seja, para a vida. A ciência foge das ambiguidades e não se dá conta do quanto
elas fazem parte da vida. O vocabulário das línguas antigas, composto por
palavras ambíguas, estava mais próximo da origem dos opostos. Muitas respostas às
questões filosóficas já estavam na própria palavra. Hoje designamos os opostos
com palavras diferentes e desconexas, perdendo assim a compreensão imediata de
seu parentesco.
Enquanto Nietzsche
falava da origem comum dos opostos, Freud, investigando os sonhos de seus
pacientes, notou que
o modo pelo qual os
sonhos tratam a categoria de contrários e contradições é bastante singular.
Eles simplesmente a ignoram. O “não” parece não existir, no que se refere aos
sonhos. Eles mostram uma preferência particular para combinar os contrários
numa unidade ou para representá-los como uma e mesma coisa. [2]
A linguagem dos sonhos
não é a mesma linguagem do estado de vigília. A psicologia trabalha com a
hipótese de que a linguagem onírica é uma linguagem do inconsciente. Este
parece lidar mais com símbolos do que com conceitos, tanto é que depois de
Freud e, principalmente, depois de Jung, os terapeutas tentam interpretar os
símbolos contidos nos sonhos de seus pacientes. Os símbolos remeteriam à
totalidade do homem, o self, para
usar o termo junguiano, enquanto que a linguagem conceitual do estado de
vigília remeteria apenas à parte racional do homem, à pequena razão, para usar
um termo nietzscheano.
A questão dos opostos
chamou a atenção de Freud não só com relação aos sonhos, mas também com relação
ao tema do “estranho”, ao qual dedicou um artigo. [3] Estranho em alemão é “Unheimlich”, oposto à “Heimlich”, que
significa doméstico. Estranho, portanto, teria a conotação de não familiar. Ao
examinar os significados dessas palavras, Freud descobre que
entre os seus diferentes
matizes de significado a palavra ”Heimlich” exibe um que é idêntico ao seu
oposto, “Unheimlich”. Assim, o que é “Heimlich” vem a ser “Unheimlich”. Em
geral, somos lembrados de que a palavra ”Heimlich” não deixa de ser ambígua,
mas pertence a dois conjuntos de ideias que, sem serem contraditórias, ainda
assim são muito diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável
e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista. (…) Por outro lado,
percebemos que Schelling diz algo que dá um novo esclarecimento ao conceito do Unheimlich, para o qual certamente não estávamos preparados. Segundo
Schelling, Unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido
secreto e oculto, mas veio à luz. [4]
Para quem achar
“estranho” o que Schelling afirma, Freud acrescenta: “Dúvidas serão afastadas
ao consultar o dicionário de Grimm (1877, 4, Parte 2, 873 e segs.)”. [5]
NOTAS
1. ABEL, K., Über den Gegensinn der Urworte, Leipzig,
(154,155-61), 1884 e Sprachwissenschaftliche
Abhandlungen, Leipzig, (155,160), 1885 (citado por Freud em um artigo
intitulado A Significação Antitética das
Palavras Primitivas, in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, Vol. XI, p. 226.
2. Sigmund FREUD, Obras Completas, vol.
XI, p. 141
3. O ‘estranho’, Obras Completas, vol.
XVII, p. 273
4. Obras Completas, vol. XVII, p. 282
5. Obras Completas, vol. XVII p. 282 e
283
ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963). Filósofa e escritora,
pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado foi A Linguagem
Simbólica no Zaratustra de Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da Índia,
escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos Kleshas no Yoga Sutra de Patanjali.
Contato: ester8fri@gmail.com. Página ilustrada com obras de Ana Mendoza (Venezuela), artista convidada
desta edição de ARC.
*****
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 26 | Abril de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da
revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não
solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
Nenhum comentário:
Postar um comentário