Uma das mais inquietantes experiências de leitura
ficcional é a d’A paixão segundo G. H.
de Clarice Lispector. O livro é verdadeiramente insuportável, no sentido de que
estabelece um pacto penoso com o leitor. É-lhe solicitado que dê a sua mão à narradora
(para apoiá-la, para dar-lhe sustentação) a fim de que ela atravesse, já então por
meio do verbo e do discurso, o inferno (e a glória) que conheceu – para que comece
um novo talento de existir. Ampará-la nessa contingência tão radical é muito desconfortante,
e o leitor não pode nem mesmo se relaxar nessa travessia de inesperados e desculturalizados
incidentes. Deveras: ao iniciar o romance, ele ingressa numa temperatura máxima
que vai conservá-lo, sem descanso, no mesmo grau de ansiedade até o final. Em regime
de máxima intensidade, o persistente clímax não oscila e vai tensionando a linha
narrativa quase a ponto de esgarçá-la. Conhece, então, o leitor de Clarice Lispector
que este sim é o verdadeiro livro do desassossego.
Diversa receptividade terá ele aquando da
leitura de Agustina Bessa-Luís. [01] O romance A sibila, ao contrário, permite que ele se instale no bembom, no aconchego
de uma linguagem (digamos) materna, [02]
que parece agasalhá-lo e ritmá-lo na narração de histórias pitorescas do povo, que
avivam costumes antigos, crenças, expressões e linguajar populares, para a transmissão
de uma herança cultural, no colo da qual ele se sente seguro e protegido. Mas nem
tudo transcorre em berço esplêndido. Um ou outro tropeço parecerá se dever, no entanto,
a um vocabulário castiço do Norte de Portugal, de onde emergem a autora e sua sabedoria
ancestral, e, talvez, à sinuosidade das orações muito alongadas. Através de encaixes
subordinados e coordenados, estas proliferam a narrativa e a irradiam por diferentes
tempos e paragens numa escrita em “tapeçaria aberta”, no dizer de Eduardo Lourenço,
[03] num fluxo contínuo do pensamento,
à maneira da durée bergsoniana, como a
vê Maria Alzira Barahona. [04] Agustina
não tem compromisso algum com o tempo, que usa como mola para saltar e retornar
de uma para diversas épocas ao longo de mais de cem anos, numa especulação constante
que vai varando esse tecido e se abrindo em múltiplas hipóteses.
O estilo de Clarice é já bem outro: frases
curtas, fragmentadas, discurso que avança em caleidoscópio semântico e que se esforça
por traduzir a si mesmo continuamente, valendo-se de fecundos intervalos de sentido
ou de meandros de significados cada vez mais disparatados ou desconcertantes. O
que causa ao enredo uma estranheza ambulante já que, parecendo não gerar novos episódios,
a trama não se encontra de fato emperrada mas antes fincada numa expansão que se
aprofunda, em lugar de se espalhar, condensação que a vai fertilizando com ressonâncias
imprevistas. Porque a acústica de sensações machuca e implode, com novas nervuras,
a face do que se diz, transmutando-a em outra e outra superfície, em moto contínuo.
No caso do romance a que me refiro, a ação
é escassa; e o tempo linear, embora marcado por rigorosa e precisa anotação de horas,
é, entretanto, quase nulo. [05] E isso
porque o presente do discurso, que é o tempo da escrita, se realiza no denso testemunho
do que ontem se passou, a fim de que a narradora possa seguir imediatamente em frente,
visto que luta, a partir de então, contra a esperança e o adiamento que esta implica
Já a efabulação de Agustina é, em tudo, diversa.
Abundante, ela transborda, no sentido de que se prolifera em ações, comentários
e aforismos, numa espécie de didascália que aponta para onde olhar o leitor e no
que reparar. [06] Repleto de pequenos
detalhes e afeito a minúcias que, acompanhando a fala de um personagem, podem dilatar-se
infinitamente, o entrecho se permite também desviar-se na direção do mais ínfimo
componente. E vai, assim, povoando alentados parágrafos, numa profusão de orações
incrustadas umas nas outras. [07]
Uma personagem, por exemplo, ao se despedir
de uma segunda, se prepara para dialogar com aquela que está a seu lado, e que se
acha entretida numa outra função: no caso, cear. Ora, a narradora de Agustina segue
não só essa pessoa ao lado, como vai mais além, detendo-se nos motivos que ilustram
a porcelana que ela segura na mão, a ponto de também dar vida à cena estampada na
tigela do caldo que ela toma. Assim temos que, “Quando ele partiu, ela meneou várias
vezes a cabeça, calada; depois, com o seu trejeito de mão sacudido e quase irônico,
que ela empregava por acirrado hábito e que lhe servia para testemunhar desdém e,
sobretudo, esconder o seu pensamento real, dirigiu-se à moça, que ceava, cabisbaixa
e esmoendo boroa na malga, em cujo bojo uma espécie de S. Tiago com tiara de pope
parecia prestes a lançar-se num galope glorioso abaixo do seu pedestal” (p.138).
Já Clarice pratica muitas vezes uma linguagem
que passa rimbaudianamente por “un long, immense et raisonné dérèglement de tous
les sens” o que obriga o leitor a se apoiar sobre um território movente e minado.
[08] No 22º. segmento do romance, por
exemplo, G.H., numa das múltiplas alegorias, rouba o cavalo de caça do Rei do sabá,
visto que procura “a danação como uma alegria”. E durante todo o tempo, na noite
enquanto dorme, ao entardecer ou de madrugada, o ginete respira chamando-a, porque
o trote continua nela. O cavalo conduz seu pensamento, se é pensamento, ela questiona,
“esta hora entre latidos. Os cães latem, começo a entristecer porque sei, com o
olho já resplandecendo, que irei. Quando de noite ele me chama para o inferno, eu
vou (...). Correm atrás de nós cinqüenta e três flautas. À nossa frente uma clarineta
nos alumia. E nada mais me é dado saber.
De madrugada eu nos verei exaustos junto ao
regato, sem saber que crimes cometemos até chegar a madrugada. [09] Na minha boca e nas suas patas a marca
do sangue. O que imolamos? De madrugada estarei de pé ao lado do ginete mudo, com
os primeiros sinos de uma Igreja escorrendo pelo regato, com o resto das flautas
ainda escorrendo dos cabelos” (p.128).
Não é preciso frisar: os dois exemplos que
venho de citar evidenciam que cada autora solicita do seu leitor um comportamento
específico. Há, de um lado, a escritora brasileira, que age quase perversamente,
partilhando com ele um acontecimento impossível e dilacerante para a comunicação
do qual ela precisa fabricar uma linguagem; e há, de outro, a escritora portuguesa
que o traz para o seu regaço e que o vai acalentando com histórias tão saborosas
quanto arrebatadoras.
Mas diante de tal desigualdade de tratamento,
com razão o leitor se perguntará o que leva a serem tão distintas duas romancistas
contemporâneas, nascidas quase no mesmo ano (Clarice é de 1920, [10] Agustina é de 1922), criadas na província
(Clarice em Alagoas, no Nordeste Brasileiro; Agustina em Vila Meã, no entre Douro-e-Minho,
Norte Português), adaptadas depois em grandes capitais (Clarice no Rio de Janeiro;
Agustina em Coimbra e no Porto), escrevendo seus romances na mesma década (A sibila é de 1954; A paixão segundo G. H. é de 1964) – e que usam a mesma língua para se
comunicarem. Por que deve ele se acautelar com Clarice e se entregar à Agustina?
Por que fica apreensivo com uma enquanto à outra se rende?
A pergunta é inútil pois que, ao fim e ao
cabo, ele convirá que tanto uma quanto outra fazem um mesmíssimo trabalho de sapa,
solapando as bases culturais, estruturais e ideológicas de onde partem – este o
grande elo a uni-las afinal. Clarice trabalha em aparência de maneira pouco misericordiosa
e direta, enquanto Agustina tem um modo mais matreiro de seduzir o leitor, desenvolvendo
“uma sutil insídia da linguagem”. Agustina desmonta, num “hibridismo suspeito”,
os universos fechados de que trata, “na tentativa de desviar a verdade dos arquivos
para o errante da verdade”, como percebe Silvina Rodrigues Lopes. [11]
E o nosso leitor concluirá que os dois procedimentos
tão diversos não passam de simples estratégias de persuasão… para que as matérias
de que elas se ocupam possam atingir, com eficácia, esse interlocutor. Vejamos.
O
feixe de motivos que anima tanto um quanto outro romance parece ser semelhante.
Observo que em ambos topamos com uma temática de natureza mística envolvendo a esfera
do feminino.
No caso de Clarice, G.H. terá um momento de
revelação do que é a sua vida bem constituída de escultora burguesa (e dos impasses
que a cercam), quando penetra no insuspeitável universo do outro. [12] Ou seja: quando, inopinadamente, ingressa
na existência que se desenvolvera na surdina, paralelamente à sua, debaixo do seu
teto, no quarto agora vazio de Janair, a ex-empregada da cobertura do prédio de
classe média alta carioca, nos píncaros da qual o romance transcorre. [13]
O relevo geográfico não é gratuito, já que
esse primeiro espanto, que ilumina G.H. a si mesma a partir de outra perspectiva,
será o trampolim inicial para o mergulho nas profundezas do seu ser, nas raízes
da existência que compartilha com toda a matéria. E é nesse instante que começa,
também rimbaudianamente, a sua “saison en enfer”.
Porque, ultrapassando esse estágio inaugural
de um auto-conhecimento apenas psicológico, G.H. será arremessada a uma experiência
mística de descida ao caos primordial, numa desintegração da sua identidade, numa
morte iniciática que, todavia, a revivificará e a situará em harmonia com a Natureza,
com o Cosmos, com Deus. Dá-se, então, simbolicamente, a reintegração dela ao estado
originário do Homem, e o conhecimento revelado é de que tudo o que tem não é seu
- ela mesma pertença do desconhecido. Ao final dessa operação místico-esotérica,
G.H. encontrará em si “a mulher de todas as mulheres” (p. 174): eis como, então,
um tema se enrosca no outro; eis como a mística, em Clarice, desemboca no feminino.
[14]
Mas tal ritual só é processado mercê da participação
de um ser primitivo, testemunha do imensurável tempo: a barata. [15] É este inseto que empiricamente G.H.
se obriga a provar, numa comunhão difusa entre o sabath e a missa negra, [16] num ritual que desafia a náusea e a
nojo. Por meio dessa recusa à aculturação, ela ingressa, por fim, na revisão radical
de tudo o que compõe o nosso mundo civilizado: o Amor, o Tempo, a Verdade, a Maternidade,
a Dor, Deus – a Linguagem. [17] Sim,
porque se tal penoso processo só existe à medida que é pronunciado, o nomear tem
de implicar uma alquimia do verbo, já que para conhecer algo tão colado à coisa,
a designação torna-se impedimento, distanciando o contacto direto com a ela. [18]
E é por essa razão que o romance se perfaz
como um obsediante tateio da linguagem. [19]
É preciso reinventá-la, vergá-la para que ela dê conta dessa evidência, de modo
a que possa transmitir tal absoluto, esse apogeu de ignorância que consiste no nada,
no neutro, no caos, no vazio, no opaco, na mudez, no inexpressivo, no inumano –
na falência de todos os valores da estética, da ética e da metafísica. [20] De modo que a “paixão” constante no
título da obra, mostrando-se ao longo da narrativa uma experiência mística, acaba
por se transmutar, em Clarice, numa operação ontológica. [21] E a maneira de comunicação empregada por G.H. não pode ser senão
a de uma “linguagem sonâmbula”, de uma espécie de tosca e impossível tradução de
sinais, de uma linguagem de toques telegráficos (telepáticos?), de algo como uma
transcrição fonética, um grafismo - um murmúrio. De modo que ela só pode nomear
negando, exercitando obsessivamente a contradição e o oxímoro, que está na base
dessa linguagem, [22] visto que descobre
esta pequena coisa: “falar é mudo”. [23]
Em
Agustina, é como um dom inato, uma predestinação, revelada sobretudo após uma morosa
doença adolescente de Quina, senhora da Casa da Vessada, [24] que a qualidade de conselheira, de força espiritual ligada ao sobrenatural
nela se manifesta. Mas a floração dessa predisposição de abertura para o impalpável
e para o iluminado está associada, em Agustina, ao desenvolvimento de outras qualidades
que, no romance, realizam o valor feminino. É como se cada mulher tivesse em si
uma sibila dormente, que é preciso despertar.
A conversa atual entre os primos Germana e
Bernardo, três anos após a morte de Quina, abre e fecha, como uma moldura, o romance
de Agustina. E a narrativa vai se ocupar, saltitantemente, da geração feminina da
Casa da Vessada, onde o casal se encontra, propriedade atual de Germa – de todos
da Casa, a única descendente. [25] Germa
guarda etimologicamente no seu nome o germe dessa Casa de mulheres, e, por um golpe
do acaso, também o sobrenome da matriarca, a sua avó. [26] Se, como diz a narradora, os nomes das casas transmitem-se pelos
filhos varões e os costumes são herança das mulheres, aqui ambas as prerrogativas
serão exercidas pela mulher. Germa, sobrinha e espelho de Quina, parece propagar
e levar para adiante, ao final do romance, a aprendizagem acerca dessa força espiritual
feminina que a tia, reedificando a Casa, em tempos afundada pelo desbragamento do
pai e irmãos, concentrou. De maneira que o romance se encerra acenando para adiante,
projetando-se através do lastro meritório que Germa extrai do retrospecto de mais
de cem anos (que é o corpo do romance), e que tem início com as mulheres do tempo
da sua bisavó.
Naquela época, era ainda vigente o anátema
que recaía sobre os rebentos-fêmeas. As filhas eram desprezadas pelo pai e criadas
em separado dos membros masculinos da família, nos casebres dos caseiros – esse
o caso da mãe de Isidra. O casamento consistia então na união de dois patrimônios,
de modo que quando a Casa desanda, tanto Quina quanto sua irmã Estina perdem seus
pretendentes. Esse duro golpe repercutirá para sempre na vida de Quina, que escolhe
o respeito em lugar do desejo, alçando-se, em seguida como cobiçado partido que,
todavia, recusa quaisquer investidas, permanecendo solteira por decisão própria.
Caso contrário é o de Estina: sua infeliz escolha há de comprometer os filhos, falecidos
por maus tratos do pai, enquanto a filha enlouquece e morre.
Mulheres há, em contrapartida, que desandam
sua vida apenas por prazer em desafiar o nome que trazem (o caso de Isidra) e outras,
como a amortalhadeira Domingas, que providencia ela mesma a sua justiça, envenenando
um a um os maridos e dando fim aos indesejados filhos. Mas aquelas que mais ojeriza
causam a Quina, são as da sociedade, as fidalgas, cuja intimidade ela conhece: segundo
ela, parecem viver como numa cela de loucas, sem pudores, sem moral, sem leis.
À medida que Quina constrói sua independência
econômica, entranha-se mais nela a aversão aos homens que não ultrapassam a inferioridade
que ela fora capaz de vencer. Às mulheres, de maneira geral, atribui-lhes uma “categoria
deprimente”, considerando que usam o amor com instinto de ganância, enquanto parasitas
e não companheiras de seus homens, deplorando-lhes a condição de “escravas regaladas”
(p. 117). Por isso, o seu conselho a Germa não pode ser diferente: “Menina (...)
não te cases nunca. É a maior desgraça que pode acontecer a uma mulher” (p.142).
Não por acaso, o lema de Germa será preferir
o perigo embora o tema; odiar a dádiva embora a cobice; ter a consciência de que
aceitar é ser vencida; e que a luta é um apelo constante, uma necessidade absurda
e inapelável (p. 147). Esta poderia ser também a divisa da própria Agustina que,
segundo Silvina Rodrigues Lopes “pensa sem temor nem repouso no pensável e no impensável,
arriscando saltar no escuro todos os muros até hoje estabelecidos.” [27]
Pois
bem. O que importa considerar, em sintonia com o romance de Clarice, é que a perspectiva
ideológica implícita no romance de Agustina indica que a aceitação da condição feminina
é deplorável, sendo em contrapartida a insurreição da mulher, qualquer que seja
ela, um valor poderoso e diferenciador. De todos os atributos que Germa retira de
Quina, o mais proeminente é o de constatar que ela “acusava e defendia com o mesmo
denodo de consciência”, como se estivesse sempre do outro lado do muro, “fazendo
saltos à vara por cima dele”, por puro desafio (pp.127-128). Afinal, a “contradição
era o seu profundo conteúdo humano” (p. 128). Era essa força de espírito o que fazia
dela, um “ser trivial e sem gênio”, “uma mulher vaidosa e fraca”, com desejo de
expansão e de público, carente de adulação e de admiração (p.134) – uma mística,
uma sibila. E esse misticismo era humanista, sim, porque era uma revolta; era a
rebelião audaciosa e admirável da sua ignorância.
É esse exemplo substancial de energias humanas
que entre si se devoraram e se deram vida, que Germa reterá definitivamente de Quina.
E, como a indicar sibilinamente em si mesma tal contradição, é no vai-e-vem da cadeira
de balanço da tia (o seu trono de herdeira), num movimento de ser-e-não-ser muito
próprio da contradição, que Germa chega a essas conclusões.
Quanto
a mim, concluo, sempre provisoriamente que, seguindo de perto suas personagens,
Agustina e Clarice também fazem finca-pé
numa condição paradoxal de entremeio, num estado de periclitância, de estar à beira
de, aplicando-se no desmanche do código romanesco, ostentando a inadaptação ao mundo
estabilizado, quebrando a rotina literária. Não diversamente de Agustina, também
há, em Clarice, um “triunfo da escrita, o assomar da desordem absoluta, de onde
nasce a obra que guarda o segredo dos seus enigmas prodigalizando os vestígios que
a eles conduzem”. [28]
Semelhante selo
vigora nas personagens de ambas as escritoras, graças à fresta que nelas vislumbraram
para expressarem os seus valores femininos. Não é à toa que criaram, cada qual no
seu próprio registro, uma personagem mística, visto que “o misticismo tornou-se, na história do Ocidente,
o único lugar onde às mulheres era permitida voz e agência públicas”. [29]
Ora, a figura da sibila e de G.H. se manifesta
no ponto de clivagem entre o rejeitado e o afirmado, lugar onde têm-se inscrito
as mulheres dessa “comunidade infigurável”. [30] As “ilusas”, as “beatas” e as “alumbradas” que, pelo menos desde
o século XVI, têm representado, mercê do viés místico, um modelo feminino mais desenvolto
(e que, por isso mesmo beira tanto à emancipação quanto à heresia) - são certamente
as ancestrais destas místicas criadas por ambas. [31]
Esse espaço intervalar existente tanto em
G.H. quanto em Quina, espaço que é trégua do sistema e empenho em ouvir as vozes
interiores que delas irrompe, subverte a ordem simbólica e situa-as num patamar
fora do controle social. Esse o “ponto exterior” onde elas se localizam em relação
à vida; esse o “círculo” que constroem em torno de si e que ninguém pode transpor
(como bem se dá conta Germa); esse o “absoluto” a que elas se dedicam (p.237).
Porque, em estado de êxtase, de transe, apartadas
da restante Humanidade, deixando vazar seus sonhos, devaneios, visões, matéria móvel
e pulsante em puro estado selvagem, o que elas elaboram é, antes de constituir-se
construção social, uma incandescente e irradiante transgressão. [32]
NOTAS
1. Uso as seguintes edições:
LISPECTOR, Clarice – A paixão segundo G.H.
Rio de Janeiro: Rocco, 2009 e BESSA-LUÍS. Agustina – A sibila. Lisboa: Guimarães Editores, 1970, 4ª. edição.
2. A expressão
é de Silvina Rodrigues Lopes (A alegria da
comunicação. Lisboa: IN/CM, 1989), que a utiliza para designar a linguagem da
consolidação e do hábito que Agustina aparentemente professa, com o intuito de abrir
nela um movimento de desterritorialização - o que revela, afinal, a linguagem de
Agustina como (sou eu que concluo) uma linguagem “madrasta”.
3. LOURENÇO,
Eduardo – “Des-concertante Agustina”. O tempo
e o modo n. 22. Lisboa, dezembro de 1964, pp. 110-117.
Publicado também
em O canto do signo. Existência e Literatura
(1957-1993). Lisboa: Presença, 1994, pp. 164-171.
4. BARAHONA,
Maria Alzira – “Agustina Bessa Luís. Um tempo de derivação”. Para um estudo da expressão do tempo no romance
português. Lisboa: Publicações do Centro e Estudos Filológicos, 1968, pp. 45-98.
Sobre o tempo
em Agustina, ver também MAGALHÃES, Isabel Allegro de – “Agustina Bessa-Luís”. O tempo das mulheres. Lisboa: IN/CM, 1987,
pp. 205-258.
5. Sobretudo
uma das onze categorias agenciadas por Clarice sobre a obra romanesca tradicional,
e indicadas por Lúcia Helena em Nem musa,
nem medusa. Itinerários da escrita em Clarice Lispector (Niterói: Editora da
UFF, 1997), parece referendar perfeitamente este romance. Visto que ele apossa-se
“livremente de uma série de modalidades de textualização, de fragmentos e ‘ruínas’
culturais de referência histórica e bíblica, com que elabora uma nova geografia da imaginação e do espírito através
da intertextualização deste material” (p. 107).
6. Inês Pedrosa
repara acertadamente que “os limites” é que apuram em Agustina “a consciência do
infinito” (PEDROSA, Inês – 20 mulheres para
o século XX. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, 2ª. Ed, p. 67).
7. Em outro
texto, Inês refere o “inacabamento voluntariamente esperançoso nos romances de Agustina”
(PEDROSA, Inês – “A orquestra do imprevisível”. Agustina. As chamas e as almas. Crónica do Cruzado Obs. As Fúrias. Lisboa:
Guimarães Editores, 2007, p. 15).
8. As indicações
sobre Rimbaud dizem respeito à celebre carta dirigida por ele a Paul Démeny, conhecida
como Lettre du Voyant, e que data de 15
de maio de 1871. E também se espraiam pela sua obra poética, notadamente por Une saison en enfer.
9. Alfredo
Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira
(São Paulo: Cultrix, 1994, 39ª. edição), anota que Clarice articula a experiência
metafísica por que passa em A paixão segundo
G.H. “valendo-se do verbo ‘ser’ e de construções sintáticas anômalas que obrigam
o leitor a repensar as relações convencionais praticadas pela sua própria linguagem”
(p.425). Este é bem o caso da estranheza que causa ao leitor o “eu nos verei exaustos”,
constante do trecho citado.
10. Nádia Battella
Gotlib, reconhecidamente a mais importante estudiosa da vida de Clarice, dedicada
ensaísta de sua obra, depois de contracenar os dados controversos acerca da data
de nascimento da escritora (discordância, aliás, fomentada pela própria Clarice),
conclui que quando ela chegou ao Brasil, desembarcando no colo de seus pais em Maceió,
em fevereiro de 1921, tinha 2 meses. GOTLIB, Nádia B. – Clarice. Uma vida que se conta. São Paulo: Editora Ática, 1995, 2ª.
edição, p. 63.
11. LOPES,
Silvina Rodrigues – A alegria da comunicação.
Opus Cit. p.16.
12. Este “outro”
é pronunciadamente o “diferente” de G.H. - Janair é a “estrangeira”: negra, subtraída,
muito bela (tem traços e postura de “rainha africana”, como só agora nota G.H.),
representante da favela que, de cima, da sua cobertura, G.H. vislumbra em baixo.
De resto, Janair é “achatada como um baixo-relevo preso a uma tábua” (p.40).
13. É bom de notar que “Janair”
é quase um anagrama de “rainha”...
14. Raimunda
Bedasee, que estuda a Violência e ideologia
feminista na obra de Clarice Lispector (Salvador: UFBA, 1999), conclui a respeito
deste romance que Clarice representa um “modelo extremamente positivo da, e para,
a mulher contemporânea.” Tal modelo que, segundo ela, não incorpora estereótipos
femininos e assume pulsões ditas masculinas, como a violência, ou como a independência,
“está de acordo com o desenho feito por Janair, onde são representados um homem
e uma mulher, o que significa ‘a falta de
lugar’ atribuída a G.H. tanto sexualmente quanto na sociedade, por exercer a
profissão de escultora e pela independência que possui – o que faz com que G.H.
não pertença a lugar algum. Em outras palavras, G.H. reúne características da androginia.”
(p.106). E a androginia, como a concebe Jacques Vidal (Symboles et religions. Paris: Julian Ries, 1990) significa, afinal, que “l´entiereté de la condition
humaine est masculine et feminine” (p.371).
15. Benedito
Nunes comenta que o aparecimento da barata vem consumar o processo subterrâneo e
fatal da desagregação de G.H. que já se iniciara quando sua vida começara a ser
esvaziada da sua personalidade ao entrar no quarto de Janair, onde lhe aparecem
os contrastes inconciliáveis da existência. Cf. NUNES, Benedito – Clarice Lispector. São Paulo: Edições Quíron.
1973.
16. Cf. o inspirado
texto de WALDMAN, Berta – “Uma cadeira e duas maçãs: presença judaica no texto clariciano”.
Cadernos de Literatura Brasileira. Clarice
Lispector. São Paulo: Instituto Moreira Salles, dezembro de 2004, pp. 241-260.
17. Alfredo
Bosi, num dos traços precisos com que revela os autores estudados na sua História Concisa da Literatura Brasileira (Opus
Cit.), considera esta obra um “romance de educação existencial”, e que o monólogo
de G.H. decreta “o fim dos recursos habituais do romance psicológico”. Por isso
mesmo apreende no enfrentamento da narradora com a barata um “salto do psicológico
para o metafísico” (p.424). E acrescenta, citando Lévy-Bruhl, que “a diferença entre
a mente primitiva e a civilizada” se dá em “termos de participação” , de “integração
dos pólos”, para a primeira, e de “distância” para a segunda. (p.425).
18. Vilma Arêas
(Clarice Lispector com a ponta dos dedos.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005) indica que o “reconhecimento, uma vez assumido,
impede a aventura e impele ao fabrico de uma cartilha que reinstaure a harmonia
quebrada pelo excesso, ultrapassagem da medida humana” - provável caminho que Clarice
buscará em Uma aprendizagem ou O livro dos
prazeres, onde “a comunhão agora é feita através do corpo amoroso, numa longa
e minuciosa cerimônia de iniciação, evitando-se o abismo que G.H. não recusou mas
que terminou numa instrução.” (p.49)
19. Em “Clarice
Lispector: mulher macho, sim senhor!”, Fátima da Silva (Mulheres que escrevem. Mulheres que lêem. Repensar a literatura pelo gênero
(org. Chatarina Elfreldt e Ana Galhardo Couto). Lisboa: 101 Noites, s/d, pp.
93-106) salienta que, de uma maneira geral, os personagens de Clarice não só questionam
a linguagem mas refletem sobre o ato criador.
20. Carlos
Mendes de Sousa (“A relação do nome”. Cadernos
de Literatura Brasileira. Opus Cit.
pp. 14-192) esclarece que o “neutro, o insosso equivaleriam àquilo que está próximo
de Deus na tradição mística” (p.171).
Ver também
deste autor o recente e alentado volume publicado no Brasil: Clarice Lispector. Figuras de escrita. São
Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011.
21. Cf. SÁ,
Olga de – “Uma metafísica da matéria ou uma poética do corpo”. Cadernos de Literatura Brasileira. Opus Cit.
pp. 280-301.
22. Na análise
deste romance, Benjamin Moser ( Clarice, -
São Paulo: Cosacnaify, 2009. trad. José Geraldo Couto) conclui que o resultado obtido
por Clarice “que talvez possa ser chamado de espinosismo místico ou ateísmo religioso,
é o seu mais rico paradoxo até então” (p.38).
23. cf. ROSENBAUM,
Yudith – “No território das pulsões”. Cadernos
de Literatura Brasileira. Opus Cit.
pp. 264-276.
Talvez o incômodo
e torturante comportamento de leitura a que tenho referido se deva ao fato de que
G.H., segundo Rosenbaum, “ao abrir-se para o ilimitado, distancia-se do mundo construído
e partilha da lógica dos paradoxos, que é na verdade o campo do Real (como quer
Lacan), do impossível de ser figurado. Ela se aproxima perigosamente da experiência
psicótica, que seria a irrupção crua do Real sem a rede simbólica que o sustenta;
é habitar uma trama sem contornos, sem limites, onde a linguagem compartilhada não
alcança.” (p.267 – o grifo é meu).
24. Catherine
Dumas afirma, em “Les demeures d´Agustina”, que em A sibila “l´esprit des lieux se situe dans cet espace unissant la Maison
et la terre possédée, cette ‘quinta’ animée par l’esprit féminin allié à l’eau.”
(p.65). Correntes d´Escritas. Revista de Cultura
Literária. Dossier Agustina Bessa-Luís.
Póvoa de Varzim, fev. 2010, pp. 62-66)
25. Vale lembrar
que não há exatamente uma hierarquia de personagens. Agustina acompanha as ramificações
entre elas (que pode ser de natureza muito diversa), segue essa imensa família,
parentes, agregados, amigos, vizinhos, e vai criando o contexto onde Quina aparece,
personagem que também não é a sua única ocupação narrativa. Por isso mesmo Inês
Pedrosa se dá conta de que nos “romances de Agustina, precisamente porque movidos
por um democrático sentido de composição ou justiça, dilui-se a noção de personagem
secundária: todas as figuras têm o seu momento de intervenção essencial – é isso
o que de imediato torna os seus livros sedutores e acessíveis a leitores intuitivos
e não-iniciados.” Cf. “A orquestra do imprevisível” Opus cit. (pp.15-16)
26. A ideia
de Germa como germe também está em Monica Rector – “A sibila de Agustina Bessa-Luís”.
Mulher, objeto e sujeito da Literatura Portuguesa.
Porto: Universidade Fernando Pessoa, s/d, pp. 207-214.
27. LOPES,
Silvina Rodrigues – Agustina Bessa-Luís. As
hipóteses do romance. Lisboa: Asa, 1992, p. 30.
28. Cf. LOPES,
Silvina Rodrigues – “Sobre Agustina Bessa-Luís”, p. 185. Exercícios de aproximação. Lisboa: Edições Vendaval, 2003, pp. 115-185.
Silvina está se referindo à Agustina e não à Clarice, coisa que eu faço.
29. IRIGARAY,
Luce – Speculum – de l´autre femme. Paris:
Éditions de Minuit, 1974. Citado à p. 119 por FERREIRA, Ana Maria – “O voo silencioso”.
Mulheres que escrevem. Mulheres que lêem.
Opus Cit. pp. 117-141.
30. O conceito
é de Teresa Joaquim, que o elucida em “A (im)possibilidade de ser filósofa” (Também há mulheres filósofas (org. Luísa
Ribeiro Ferreira). Lisboa: Caminho, 2001, pp. 17-40), como ensina Ana Maria Ferreira,
na obra citada, considerando que ele expressa mais plenamente a “invisibilidade
das mulheres”. Cf. também JOAQUIM, Teresa – As
causas das mulheres. A comunidade infigurável. Lisboa: Livros Horizonte, 2006.
31. Esclareço
o significado de tais categorias através da citação direta de Ana Maria Ferreira
(pp.120-121).
As “ilusas”
compreendiam as “mulheres que viviam fora do controle da Igreja que não as reconhecia
como dignas por lhes atribuir vícios não compatíveis com o espírito feminino-submisso
da época. Eram prostitutas, viúvas sem recursos econômicos, órfãs ou mulheres abandonadas
pelos maridos. Eram denominadas ilusas por iludirem os confessores a fim de terem
acesso à confissão – o que não seria possível se o seu “estado” fosse reconhecido.
Foram perseguidas pela Inquisição, embora não fossem consideras bruxas – se o fossem,
só a fogueira lhes estaria destinada.”
As “beatas”
eram “mulheres laicas, independentes da tutela masculina (viúvas, órfãs ou sem irmãos
a quem por força haveriam de submeter-se), que reclamam o direito à espiritualidade
e o seu lugar no processo de reforma da igreja católica. Impõem-se sem aval ou agrado
da hierarquia masculina, como forma alternativa de ingressar na vida religiosa cujo
nascimento ou falta de recursos econômicos lhes vedava a entrada no convento. Poderiam
ser também monjas, com ou sem hábito, mas com ligações à comunidade, no que diferiam
da Monja a quem o Concílio de Trento veio obrigar a clausura e transformar no símbolo
de pureza e devoção, emblema de redenção da mulher/Eva aos olhos da Igreja Católica.”
As “alumbradas”
eram conhecidas na Península Ibérica, nos séculos XVI e XVII, pela sua ligação com
a Reforma e com os Luteranos. “Religiosos de devoção e conhecimento espiritual iluminado
pelo santo sacramento do baptismo, a sua principal doutrina consistia em, por meio
da oração, atingirem um estado tão perfeito que não lhes seria necessário abraçar
ordens nem sacramentos. Foram, por tal heresia, ferozmente perseguidos pela Inquisição.”
32. Sigo, com Ana Maria Ferreira,
parte de suas conclusões. Opus Cit. p.
140.
*****
MARIA
LÚCIA DAL FARRA (Brasil,
1944). Poeta e ensaísta. Foi professora da Usp, da Unicamp, da Universidade da Califórnia
(Berkeley) e aposentou-se como titular da Universidade Federal de Sergipe, onde
foi pró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa. Continua trabalhando como pesquisadora
do CNPq e tem publicados sobre Vergílio Ferreira, O narrador ensimesmado (São Paulo: Ática, 1978), sobre Herberto Helder,
A alquimia da linguagem (Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1986) e tem sete obras sobre Florbela Espanca, publicadas
no Brasil e em Portugal. Autora de ficções, Inquilina
do intervalo (São Paulo: Iluminuras, 2005) e poesia: Livro de auras (1994), Livro de
possuídos (2002) e Alumbramentos (2011),
todos pela Iluminuras de São Paulo. Página ilustrada com obras de Arcangelo Ianelli (Brasil),
artista convidado desta edição de ARC.
Obras de Arcangelo
Ianelli que constam desta página:
1. S/Título, óleo sobre tela, 180x130cm, 1969,
Coleção particular.
2. Grafismo em azul, óleo sobre tela, 180x130cm,
1968, Coleção particular.
3. S/Título, óleo sobre tela, 180x130cm, 1973,
Coleção particular.
4. S/Título, óleo sobre tela, 100x80cm, 1973,
Acervo do Banco Itaú.
*****
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 27 | Maio de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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