Em dossiê intitulado Surrealismo a palavra mágica do século XX, que preparei para a
revista Athena (Portugal, outubro de
2018), logo na apresentação expressei a minha defesa de que no ambiente cultural, onde naturalmente se
inclui o domínio artístico, dois foram os fenômenos mais vultosos que
influenciaram a cartografia espiritual de todo o planeta e até hoje se mantêm
plenamente atualizados, em estado perene de convulsão: Surrealismo e Beatles. Quando escutamos
Beatles hoje não é ao passado que somos levados, mas sim a uma antevisão do
futuro, considerando a intensidade precursora e a chama vibrante de vozes,
composições, arranjos. Diante do Surrealismo também se pode ter a mesma
sensação. A partir daí se multiplicam os vasos influentes de ambos os
movimentos na cultura artística de nosso tempo. As correlações, que em momento
algum implicaram em adesão, mas antes em uma simpatia criativa, no caso dos
Beatles, envolvem tanto técnicas de montagem, quanto o ambiente fascinante de
criação compartilhada, a vertente pop e psicodélica que abria conexão com
happenings, grafites, comics etc.
Aparentemente a
afinidade esbarra na conhecida surdez de André Breton, bastando aqui recordar
uma lembrança de Louis Aragon, ao dizer que Breton
detestava toda música. Uma rara cumplicidade poderia ter se dado, à luz da
coincidência cronológica, em relação à música de Erik Satie (1866-1925).
Contudo, a única reciprocidade entre eles era a da rejeição mútua. Breton, pela
surdez; Satie, pelo amplo sentido de liberdade que não lhe permitia aceitar o
espírito excessivamente judicante de Breton. Em revelador ensaio intitulado Embriões dissecados: o surrealismo & a
música (O surrealismo, 2008), o
compositor Livio Tragtenberg (1961), tece uma feliz analogia, ao dizer que pode se colocar lado a lado Satie e Marcel
Duchamp, como dois polos gêmeos de influência na arte do século XX. Musique
d’ameublement (música-mobília) está para
o ready-made assim como Max Ernst
está para o frottage. E diz em seguida que talvez tenha sido Satie o primeiro e solitário surrealista musical.
Deixemos as
discordâncias para outro momento, pois aqui poderíamos evocar outros
solitários, tais como John Cage, Frank Zappa, a discografia parcial dos Beatles
e até mesmo o brasileiro Hermeto Paschoal. Técnicas como frottage, colagem, a
criação compartilhada, o experimentalismo de novas expressões sonoras
(variações de velocidade, duplicação de faixas, loops em teipes, utilização
não-convencional de microfones e instrumentos) etc., são componentes que
sugerem melhor verificação. No caso específico dos Beatles, podemos pensar em
todos eles, além da fluidez do inconsciente, fraseado livre a que recorria Paul
McCartney, a sós e quando compunha a quatro mãos com John Lennon. Outro aspecto
é o da obra coletiva, que tanto remete à criação conjunta de arranjos no
estúdio, onde também participava George Martin, quanto à marca Lennon-McCartney
com que a dupla assinava mesmo as canções compostas em isolado, por um ou
outro.
A decisão de, a partir
de agosto de 1966, não retornar aos palcos, deu aos Beatles um fascinante
apetite pelo experimentalismo. Tudo começa pelas férias que se deram após a
decisão de abandonar os palcos. Cada um afirmou e confirmou uma identidade que
enriqueceria, pela multiplicidade de tons, a nova travessia criativa. Os
estudos de instrumentos, as drogas, a política, uma melhor atenção para o
mundo, a boêmia, a descoberta das artes plásticas etc. Mesmo que a gravação de Rubber Soul (1965) tenha evidenciado a
entrada na maturidade, sobretudo pensando na forma como passaram a conceber a
estrutura musical do disco em si, bem como a melhor tessitura de letras e
melodias, o auge de sua revolução é alcançado com a gravação, em 1967, de dois
discos, Magical Mystery Tour e Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band. Os
dois discos descerram novas perspectivas para a música, em parte motivadas pelo
conceito de criação de um disco como projeto integral e a liberdade de
experimentalismos que o estúdio permitia.
Em precioso volume
intitulado Many years from now
(1997), de Barry Miles, recorda Paul acerca das férias de palcos: Eu finalmente tinha tempo para me expor a
algumas das coisas que me fascinavam havia muito, na verdade desde os quinze
anos mais ou menos, quando tinha começado a ler sobre a vivência dos artistas e
esse tipo de cultura, uma cultura inquiridora. Podia estar lendo sobre madame
Blavatsky ou André Breton, o que fosse, todas aquelas vertentes pequenas e
esquisitas, mas começou a despertar em mim a percepção de que esse tipo de
coisa boêmia, essa coisa artística, era
possível. De modo que comecei a dedicar bastante tempo a essa curiosidade,
porque ela se equilibrava tão bem com o outro lado, as coisas dos Beatles
propriamente ditas. E foi legal que essa curiosidade tivesse influenciado as
coisas dos Beatles do jeito que influenciou.
O interesse de Ringo
Starr pela fotografia, a descoberta do oriente que tanto marcou George
Harrison, a melhor atenção de John Lennon para os happenings e a arte
contemporânea, são parte disso que Paul McCartney chama de as coisas dos Beatles. Retomemos a gravação de Rubber Soul, que Ringo considerava o disco da mudança, opinião reforçada por George Martin, que o
considerava o primeiro álbum a apresentar
ao mundo os novos Beatles, aqueles em idade de crescimento. Diz ele que
todos se tornaram abertos a qualquer coisa depois
que George introduziu a cítara indiana. E George Martin, segundo lemos na
biografia The Beatles (2005), de Bob
Spitz, recorda que pela primeira vez,
começamos a pensar nos discos como obras de arte, como entidades completas.
Influiu também a mudança para um estúdio que estava repleto de instrumentos
diferentes: pianos preparados, um órgão Hammond, uma celesta, harmônios etc. O
que permitiu toda sorte de ousadia sonora, ampliada para as mesas de montagem
onde se podia reduzir e acelerar ritmos, inserir fragmentos de música
eletrônica, uma gama atrativa de ruídos… O músico Steve Winwood (1948) afirma,
na biografia acima referida, que Rubber Soul
derrubou todas as barreiras. Ele fez a música adquirir uma nova dimensão, foi o
marco inicial da era do rock da década de 1960 como a conhecemos hoje.
O ambiente
experimentalista não encontrava limites, se dando tanto nas ousadias
propiciadas pelas técnicas de estúdio, como no acento comportamental do
quarteto – aí incluindo a presença das drogas, infinitamente longe da esfera
autodestrutiva que as caracteriza atualmente –, a descoberta da música
eletrônica, os desdobramentos possíveis da música em relação a outras formas de
expressão artística, como o cinema e as artes plásticas, a originalidade das
letras com suas imagens oníricas buscadas na memória e na livre fluidez do
pensamento. Situa Bob Spitz que quando
estavam chapados – o que ocorria a maior parte do tempo, em que estavam no
estúdio –, os experimentos tornavam-se parte brincadeira, parte inovação.
Naquele tipo de estado onírico, alterado e carente de espírito prático, as possibilidades eram ilimitadas. O ato
de gravar deixava de ser somente outra forma de difundir canções, passava a ser também uma maneira de criá-las.
Impossível não recordar aqui as sessões de escritura compartilhada em que André
Breton e Phillipe Soupault criaram os textos do livro Les champs magnétiques (1919). A própria ideia de mergulhar no
desconcerto de uma ausência de argumento, por exemplo, verifica-se, na mesma
época, quando da filmagem de Magical
Mystery Tour (1967), aventura impregnada de improvisos de toda ordem.
Igualmente recorda, pelo ambiente propício ao borbulhar de fontes do
inconsciente, as sessões mediúnicas e de sonho hipnótico, levadas a termo pelos
surrealistas envolvendo, dentre outros, René Crevel e Robert Desnos.
Quanto aos loops, mesmo
considerando a escolha de alguns timbres, as passagens orquestradas, o jogo de
aceleração/redução, tudo se dava, em essência, como uma espécie de happening,
puro improviso, do modo mais intensamente aleatório, a ponto de cada gravação
ser impossível de repetir-se. Ainda mais impossível reproduzir tudo aquilo em um
palco. Como evocava em um poema o surrealista belga Paul Nougé (1895-1967), os
Beatles livraram suas mãos de ataduras.
Ao tomar a decisão de ser a própria obra, só o conseguiram pela alta ingestão
de liberdade.
A expansão do ambiente
musical, em busca de algo como uma arte total, abrangeu o cinema e as artes
plásticas, dentre outras formas de expressão, cuja resultante máxima surge da
cumplicidade dos Beatles com o canadense George Dunning (1920-1979) e o sueco
Peter Goldman (1932-2005). O primeiro assina a fantástica animação de Yellow Submarine (1968), enquanto que o
segundo dirigiu os pioneiros e influentes videoclipes de Strawberry Fields Forever e Penny
Lane, em 1967. Imprescindível incluir aqui o nome do inglês Bernard
Knowles
(1900-1975) que, juntamente com os Beatles, assina a direção coletiva do filme Magical Mystery Tour.
Desde a decisão por
abandonar os palcos, portanto, que se extravasa a sede por experimentalismos,
até mesmo do ponto de vista estratégico, considerando que videoclipes e filmes
desempenhariam papel fundamental na permanente difusão dos novos discos. Peter
Goldman trouxe ao cenário das experimentações as reduções e acelerações de
movimento na câmara, assim como a superposição de imagens e os ângulos
inusitados, o que se encaixava à perfeição no senso de humor dos Beatles. Com
atmosfera igualmente inovadora e voltagem mais intensa de transposição do Surrealismo
para o ambiente cinematográfico, o quarteto, aliado à cumplicidade de Bernard
Knowles, alcança, em Magical Mystery Tour
uma das páginas mais frenéticas e enigmáticas do cinema experimental. Obra
conjunta – bem na linha da proposição de Lautréamont de que arte deva ser feita
por todos –, o filme se inscreve na seara fascinante do então chamado Teatro do
Absurdo. Um dos exemplos mais radicais surgiria em 1971, com a filmagem 200 Motels, idealizado por Frank Zappa (1940-1993),
em cujo elenco se encontra Ringo Starr, no papel de Larry, que, na sinopse do
filme, é descrito como um anão que é obrigado
por Zappa a se vestir como o próprio e usar uma lâmpada mágica em Pamala.
Inicialmente, Larry fala de modo excêntrico e peculiar, mas ao longo do filme
ele passa a agir exatamente como Zappa.
Frank Zappa encarna uma
vertente ainda mais vertiginosa, na música pop, de afinidades com o
Surrealismo, pela extrapolação no nonsense,
do humor negro, da sátira impiedosa, dos transbordamentos oníricos… Ao lado dos
Beatles são as duas maiores expressões de um surrealismo pop na música. Em meu
livro Sala de Retratos (2016), em
extenso diálogo que mantenho com o compositor Mário Montaut (1957), refiro que Zappa teve uma percepção extraordinária
acerca da influência que a música pop teria no mundo e tratou de meter-se com
ela não somente para explorar todas as possibilidades musicais e tecnológicas
como também para afirmar uma ideia.
Paul recorda a presença
algo inesperada e decisiva do humor negro na letra de canções como Drive my car e Norwegian wood, aquele mesmo humor negro que Breton considerava, por excelência, o inimigo mortal do
sentimentalismo. No caso dos Beatles muitos desses truques de linguagem
recorriam a pitadas brilhantes de certo sarcasmo erótico. Acerca desses
intrigantes jogos de palavras, improvisados entre e Paul, recorto fala deste,
extraída do livro de Barry Miles, no que diz respeito à composição de Girl: Era sempre divertido ver se a gente conseguia por uma palavra picante
no disco, fisher and finger pie, prick teaser, tit tit tit tit. Os Beach Boys tinham uma canção em que
faziam la la la la; adoramos a
inocência daquilo e quisemos copiar, mas sem usar a mesma frase. Assim,
procuramos outra, e foi dit dit dit dit,
que, de gaiatos, resolvemos mudar para tit tit tit tit [teta teta teta teta], coisa que é praticamente indistinguível de dit
dit dit dit. E aquilo nos fez rir. Serviu
de algum alívio no meio daquela baita carreira que estávamos criando. Se dava
para por alguma coisinha subversiva, a gente punha.
Cabe mencionar que a
volúpia experimental dos Beatles os levaria também pelos acidentados
territórios da música eletrônica, pelo universo dos sons aleatórios, ruídos,
dissonâncias, não esquecendo que certa vez declarou Paul McCartney que John
Cage (1912-1992) foi um dos compositores modernos que mais o teria
influenciado. Outro nome a ser lembrado é o do compositor alemão Karlheinz
Stockhausen
(1928-2007), não apenas pela declarada influência na composição Revolution 9, de 1968, mas também pelo
universo das colagens sonoras que encontramos nos dois discos de 1967, Magical Mystery Tour e Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band. Não
esquecer que a mezzo-soprano Cathy Berberian (1925-1983) chegou a gravar, em
1967, o disco Beatles Arias, por
sugestão do notável compositor Luciano Berio (1925-2003), um dos mestres do
vanguardismo na música. Berio também arranjou algumas canções dos Beatles que
foram cantadas pelo grupo vocal Les Swingle Singers. Este ambiente foi muito absorvido
por Paul McCartney, em um mesmo momento em que lhe fascinara o happening
musical e a Beat Generation.
Todo o ambiente
aproximativo entre Beatles e Surrealismo até o momento evocado se completa, de
modo não menos intenso, com uma leitura atenta das imagens poéticas nas letras
das canções. A entrada no ambiente mágico e poético
dos Beatles poderia usar como epígrafe o convite que encontramos em Magical Mystery Tour: venha para a turnê misteriosa.
Naturalmente seguida por uma frase de I
am the walrus: nós estamos todos
juntos. Atmosfera onírica e psicodélica ambientava essa poesia, a ela se
juntando outro elemento essencial: o humor. I
am the walrus é de uma cativante singularidade: Creme
de matéria amarelada / Pingando dos olhos de um cachorro morto / Esposa do
caçador de caranguejo / Sacerdotisas pornográficas / Menino, você tem sido uma
garota pervertida / Você abaixa sua calcinha. Aí encontramos afinidades com
Hans Arp: As paredes são de carne humana
/ os fungos têm voz de trovão / e hasteiam espadas enormes / contra as
ratazanas ancestrais / que têm dentes de elefantes. Facilmente
encontraríamos similaridades entre um livro como Les chambres: poème du temps qui ne passe pas (1969), de Louis
Aragon e a letra de Penny Lane: Em Penny lane há um bombeiro com uma
ampulheta / E em seu bolso há uma foto da rainha / Ele gosta de manter seu
caminhão limpo / E fica limpo mesmo. Lemos em Aragon: Em todos os quartos chega um dia em que o homem nelas / se esfola vivo
/ em que cai de joelhos pede piedade / balbucia e se emborca como um copo / e
sofre o espantoso suplício do tempo. Curiosamente Les chambres foi escrito após a edição de Magical Mystery Tour.
André Breton
defendia incondicionalmente o que ele chamava de livre pensamento integral, lembrando que a obra surrealista é assim
qualificada, antes de tudo, com base no espírito em que ela foi concebida. Em
1956, o poeta surrealista Jacques Sénelier declarou que o primeiro desejo do
surrealismo, a necessidade de desmoralizar, até então não havia sido
satisfeito. Nisto radicava a sabedoria do velho tolo da montanha, em The fool on the hill. Em versos
admiráveis, Sénelier nos diz que vai dormir o bom
sono daqueles que finalmente entenderam / Que não há descanso se o tempo não
parar / Eu escapei de todos os pensamentos / E ainda assim eles são / Eu não
posso me tornar o belo mecanismo / Prometido pelo meu corpo e minhas mãos e
minhas ações / E choro de terror antes do dia que vem. De imediato voltamos
aos Beatles, com Fixing a hole: Estou consertando um buraco onde a chuva cai / E me
impede de saber / Onde ela irá.
As
aproximações se multiplicam até o último momento, com a magnífica letra de Across the universe: Imagens de luzes quebradas / Que dançam na
minha frente como milhões de olhos / Eles me chamam de novo e de novo / Através
do universo // Pensamentos se movem
como um incansável / Vento dentro de uma caixa / Eles tropeçam cegamente
enquanto fazem / Seu caminho através do universo. Em relação ao destino da poesia,
concordavam Paul Éluard e René Char. O primeiro dizia que o poeta é aquele que inspira, muito mais do que o que é inspirado.
Enquanto que o segundo defendia que a
poesia se incorpora ao tempo e o absorve. Mesmo surdo em relação a qualquer
forma de expressão musical, já em 1952 Breton aceitava a ideia que, dada a
influência do surrealismo, não se deixariam nunca de ser produzidas obras que, sem ser exatamente surrealistas,
o são mais ou menos profundamente por seu espírito. Não é outra a dimensão
de influências dos Beatles. O que nos leva a concordar com a ótica de Paul
McCartney no sentido de que tudo o que até aqui foi feito – o que naturalmente
vale também para o Surrealismo – parece
um período mais no futuro que no passado.
*****
Edição
preparada por Floriano Martins. Agradecimentos a todos os colaboradores. Texto originalmente escrito para esta
edição. Foto inicial dos Beatles assinada por Bob Whitaker (Reino Unido,
1939-2011). Página ilustrada com obras de Peter Blake (Reino Unido, 1932),
artista convidado da presente edição.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 120 | Outubro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão |
FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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