quarta-feira, 10 de outubro de 2018

FILIPE GARCIA | The Beatles, o tempo da música mais colorida


Era só mais um miúdo de 15 anos que, nessa quarta-feira, 17 de julho de 1968, se aproximara de Piccadilly Circus para tentar chegar aos Beatles. Entre as ruas engarrafadas com milhares de fãs e as dezenas de polícias que tentavam manter desimpedida a entrada do London Pavillion, David Stark e um amigo acabaram por chegar a uma porta lateral do teatro e, daí, a um elevador que os levou ao interior da sala de espetáculos mais concorrida nessa noite londrina. Hoje reputado jornalista musical, editor do site Song Link e membro do júri dos Brit Awards, Stark recordou o momento em que foi apanhado por um camareiro. “Dissemos-lhe que tínhamos deixado os bilhetes logo na entrada”, contou a um fanzine dos Beatles.
Depois, bastou um desavergonhado cumprimento a um membro da equipa da banda de Liverpool, Dick James, para parecer que, de facto, ali pertenciam e serem encaminhados à sala. A sorte ditou que ficassem sentados ao lado de Keith Richards e imediatamente atrás do quarteto mais famoso do mundo. No ecrã seria exibido Yellow Submarine, o devaneio psicodélico em que uma banda imaginária, a Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band, enfrenta monstros azuis, avessos à música da Pepperlândia, um reino subaquático. Passados 50 anos, do enredo pouco resta, mas o filme, o terceiro dos Beatles, ficou para a história não só como um marco na arte psicodélica como um importante passo para a credibilização dos filmes de animação como arte.
Depois da exibição de Yellow Submarine, terminada a ovação em pé na plateia e uma curta espera para que as autoridades autorizassem a saída do edifício, Stark e o amigo perderam de vista as estrelas da noite. Na companhia de Yoko Ono, Lennon seguiu no seu Rolls-Royce, tal como chegara, McCartney partiu sozinho, enquanto Ringo Starr, impecavelmente vestido de fato e camisa de folhos amarelos, e George Harrison, de chapéu de abas com um pequeno submarino desenhado, foram com as namoradas para a festa no exclusivo Royal Lancaster Hotel. Essa teria controlo de segurança mais apertado. Afinal, em 1968, mais do que Isabel II ou qualquer um dos seus familiares, a verdadeira realeza britânica eram os quatro de Liverpool e o traje oficial de gala o mais colorido possível, com folhos e os mais alucinados padrões.
Com a economia britânica finalmente refeita do rombo causado pela II Guerra Mundial e com uma geração, nascida dos seus destroços, apostada em marcar a diferença para as anteriores, o batismo chegou com a força de uma capa da revista Time que, em abril de 1966, chamou à capital Swinging London. Mais que Paris ou qualquer cidade nos Estados Unidos, Londres transformava-se na capital cultural do mundo.
Se, em 1967, Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band abrira oficialmente a era psicodélica, o próprio Paul McCartney reconhecia que sem Pet Sounds  dos californianos Beach Boys, editado um ano antes  o disco nunca teria nascido. Também fruto da misturada entre norte-americanos e europeus que acontecia em Londres, a rivalidade estava bem no topo da hierarquia de guitarristas. Com os Cream, Eric Clapton tinha conquistado o estatuto de Deus – assim garantia o graffito mais famoso de Londres , dos Estados Unidos chegara Jimi Hendrix. Demasiado negro para o rock’n’roll norte-americano, demasiado branco para as rádios de negros, Hendrix procurava em Londres um mercado mais tolerante e a adaptação foi imediata.
A colisão também. De um lado, “Deus” e uma das guitarras mais famosas da época – uma Gibson SG, batizada The Fool, com uma pintura bem psicodélica. Do outro, o candidato a que a imprensa começou por chamar o “Selvagem do Borneo” tal a fúria com que atacava tanto os clássicos de blues como os mais recentes sucessos da música britânica. Para a história ficou a primeira vez que tocou Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band, três dias depois da edição do disco e com Paul McCartney e George Harrison na plateia. “O Jimi abriu, as cortinas recolheram e ele apareceu a andar a tocar o Sgt Peppers, só tinha sido lançado na quinta-feira por isso foi o maior dos cumprimentos. É obviamente uma das minhas memórias mais luminosas. Pensar que aquele disco tinha significado tanto para ele ao ponto de o tocar no domingo à noite. É um grande elogio, está entre as grandes honras da minha carreira”, recordou Paul McCartney em Many Years from Now, a biografia editada em 1997.






 Se Hendrix se fez rival de Clapton e fã de Beatles, se os Beatles foram inspirados pelos Beach Boys e se até a mais famosa banda de Londres roubara o seu nome a uma música de Muddy Waters, Rolling Stone, é seguro dizer que foi da mistura de sons sobre o Atlântico que nasceu a banda sonora para o verão mais colorido da história. E os efeitos notavam-se em todo o lado.
O mais famoso carro dos Beatles? O Rolls-Royce Phantom V com que John Lennon se passeava por Londres. O modelo até era o idêntico ao que Isabel II usava, a diferença estava nos detalhes - o banco de trás transformava-se em cama de casal, havia cinzeiros nos descansos dos braços e um gira-discos e uma televisão a bordo; no exterior, a pintura psicodélica, em amarelo berrante e com motivos inspirados em caravanas ciganas. Do outro lado do oceano? Era de Janis Joplin o carro mais famoso, um Porsche 356, comprado branco em 1968, mas imediatamente transformado em obra de arte. A pintura psicodélica, além da notoriedade da dona, o tornou recordista quando em 2015 foi leiloado – em vez dos 500 mil dólares esperados, o carro foi vendido por mais de um milhão e meio.
Movidos a LSD ou pela ânsia de se libertarem das regras sociais impostas pelas gerações anteriores, apostados em dançar como nunca, em vestir o que os pais nunca vestiriam e em cantar o que nunca os mais velhos se atreveriam em pensar, a geração psicodélica foi tão rápida como marcante. Logo em 1968, já com Yoko Ono bem instalada no estúdio em Abbey Road, os Beatles haveriam de lançar em novembro aquele que muitos consideram como o seu melhor disco, conhecido como o Álbum Branco. Maioritariamente composto durante o famoso retiro espiritual na Índia, das 30 músicas em apenas quatro se ouvem todos os Beatles e até a capa seria sinal de uma nova era. Aos espalhafatosos de Sgt Peppers e Magical Mistery Tour, seguia-se uma capa completamente branca, um disco sem título e apenas numerado na sua primeira edição – cinco milhões de cópias.
Até 1971 o mundo perderia Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison (Doors) e Brian Jones (Rolling Stones), mas nem por isso o trono do rock alucinado ficaria desocupado. De Londres também sairiam os miúdos Pink Floyd e esses já conheciam os riscos das drogas que resultavam em música às cores. Logo em 1968 tinham perdido Syd Barret, para uma loucura alimentada a ácidos. A homenagem que lhe fizeram também não passou despercebida. Como ninguém acreditou que Lucy in the Sky with Diamonds fosse sobre uma Lúcia com um gosto especial por joias, Shine on You Crazy Diamond também não é para interpretar à letra.


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Edição preparada por Floriano Martins. Agradecimentos a todos os colaboradores. Artigo reproduzido do Diário de Notícias (Lisboa, 25/07/2o18). Foto inicial dos Beatles assinada por Bob Whitaker (Reino Unido, 1939-2011). Página ilustrada com obras de Peter Blake (Reino Unido, 1932), artista convidado da presente edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 120 | Outubro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES





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